terça-feira, outubro 16, 2007

O ÚLTIMO CAPÍTULO DO CRIME

CARLOS MELLO

Ao outro dia, o padre Amaro acordou alarmado. Sonhara toda a noite com turbas exaltadas de comunistas a atear fogo às igrejas, a espingardear condes e sacerdotes, a violentar as damas da alta sociedade. Mas agora, diante do espelho, sentindo lá fora a ordem costumeira da rua, verificava com agrado seu rosto ainda liso, quase sem ruga, o olhar vivo, o cabelo cheio, apenas com uma ou outra branca, que até lhe conferia um ar mais respeitável.

Decididamente o clima de Santo Tirso, as boas águas, a alimentação farta e bem preparada pela boa Gumercinda, o arroz de forno, o caldo de galinha que até lembrava o da Sanjoaneira, tudo lhe fizera um imenso bem. E esperava a infusa de água quente para escanhoar a cara, que trazia sempre bem rapada, habituara-se a isso para satisfazer a criaturinha que lhe fizera a felicidade naquela paróquia, aonde chegara infeliz e cabisbaixo depois da alhada por que passara em Leiria. Mas, ao cabo de tantos anos, a dor sumira, a tristeza se mudara em alegria. Na tarde seguinte ia estrear a batina nova, que lhe dera uma confessada rica, a Sr.ª D. Adelaide, esposa do abastado Comendador Teles, uma soberba batina de lustrina, sedosa e encorpada, com um brilho discreto nas dobras. Porque fora convidado para o chá no palacete do Conde de Ribamar, às 5 horas da tarde, e desde já ia preparando frases sobre a missão do sacerdote, nesse mundo conturbado pelo materialismo e pelos satânicos ideais republicanos.

Aquela mazorca em Paris era a prova cabal da catástrofe inevitável para onde levam essas idéias. Idéias que infelizmente já haviam chegado a Portugal, eram discutidas nas rodas intelectuais, apresentadas nos artigos de jornais. Amaro pretendia expor opiniões próprias, em apoio às afirmações conservadoras do conde, aquele esteio da ordem. Contava assim impressionar os presentes, facilitar seu empenho para Vila Franca.

Uma sombra entretanto toldava aquele dia radioso: a lembrança do problema que lhe sobreviera na paróquia e a solução difícil, mas definitiva que escolhera. Pois não é que a criaturinha tão doce, que tantas alegrias e gozos lhe dera, agora se lhe tornara um problema sem medida? Estava grávida, de três meses, já a cinta ia-se-lhe arredondando, os seios mostravam-se mais entumecidos. Amaro conhecia aqueles sinais, e como! Não estava disposto a passar por tudo de novo, que diabo, não podia um homem estar a seu gozo sem que as raparigas embuchassem? No início, gato escaldado, seguira os conselhos do cônego, com quem se carteava desde que saíra de Leiria: “Busque as mais idosas, em quem já haja cessado o costume das mulheres. Não corra risco de outra gravidez”

Mas qual! Engraçara-se daquela rapariga tão logo chegara à paróquia, ela tinha apenas dezasseis anos. Fora um caso bem diferente da Amélia. Esta era bem pobre, morava com uma tia fora da cidade, e vinha às terças-feiras trazer a roupa passada. Desde o início, Amaro procurara usar o artifício do coitus interruptus, mas nem sempre o conseguia. Até então a rapariga não engravidara por pura sorte. Mas de repente deu-se o que ele temia. E agora tratava de buscar uma solução urgente. Conseguira com muito custo um medicamento que provocava a parturição prematura, mas desconfiava que ela o deitara fora.

Queria então enganá-lo, a songuinha, ter o filho, proclamar aos quatro ventos a paternidade de Amaro e assim expô-lo à censura do clero, ao escárnio da cidade, arrastá-lo a irrisões piores? Pois espera que te curo! Decidiu-se então por uma solução drástica: enviou a rapariga a Lisboa, com instruções para hospedar-se em uma pensão no Largo de Santa Bárbara. Afirmou que estava disposto a terem o filho, ela ficaria morando na capital, longe dos mexericos da província, ele a visitaria sempre. Obtida sua confiança, a convenceria a ingerir aquele medicamento, cujo vidro trazia no bolso, envolto em uma folha de jornal. Era láudano, esse não falharia. No dia seguinte, dariam por ela e, como não soubessem quem era, uma rapariga que se hospedara numa pensão reles e aparecera morta, julgariam ser alguma rameira qualquer, mandariam o corpo para o necrotério e dali para a vala comum.

Era uma solução de desespero, que ele tomara depois de muito meditar. Mas não havia outra, que diabo, não podia destruir sua carreira, justamente agora, que podia considerar-se quase um comensal do Conde. E depois, se estalasse o escândalo, perderia para sempre o prestígio com o Conde, seu protetor. Estava a vê-lo com seu ar austero, a pitada suspensa, a verberar-lhe o péssimo exemplo que dava ao clero, sobretudo aos padres mais novos! Não, por força! Não iria destruir sua carreira, as boas relações que já ia fazendo em Lisboa – para onde pensava um dia vir em definitivo, em uma posição superior. Um escândalo daqueles destruiria tudo. Com certeza a solução era aquela.
Nesse instante chamaram de baixo, da porta de entrada. Era a empregada da pensão, uma rapariga sardenta, de quadris empinados, que fizera muito olho ao Amaro ao mostrar-lhe o quarto. Aquela pensão fora recomendada pelo Sr. Chantre, que ali se hospedara de passagem para Santo Tirso:
- Em indo a Lisboa, colega, essa é a pensão, um lugar limpo, confortável e decente, onde um eclesiástico podia estar a seguro em Lisboa.

Era um prédio antigo, de quatro andares, e pertencia a uma senhora idosa, que na mocidade fora querida do desembargador Curvo Semedo, da Arcádia. Agora, obesa e hidrópica, tinha naquela pensão sua fonte de sustento, e a rapariga sardenta era seu braço direito, para varrer, lavar, passar, arrumar os quartos dos hóspedes. Viera do Minho, enviada pela mãe, sua antiga criada de quarto, nos tempos de fasto. Amaro chegou à escada, perguntou-lhe o que queria.

- Visita para o senhor – gritou a rapariga na sua voz minhota. – Diz que é o senhor cônego Dias!
- Que suba! – berrou Amaro. E rosnou baixo – Fracas horas para embaixadas! – repetindo um dito do cônego. Contava arrumar um pretexto qualquer para chamar a rapariga ao quarto, ver mais de perto seus quadris buliçosos. Que ela fazia-lhe olho, fazia-lhe. Mas depois lembrou da idade do cônego e ajuntou:
- Pode deixar! Diga ao senhor cônego que eu desço.

Embaixo, levou o cônego para a saleta “das visitas”, um quarto de frente, com um sofá, duas poltronas, e uma janela emperrada dando para a rua.

- Por aqui padre-mestre! E a essa hora da manhã! Pensei que já estava de volta a Leiria!
- Homem, não se me dava de já lá estar, mas ainda tenho de ver a demanda com a corja dos Pimentas. Mas o que me traz aqui é algo grave.

Amaro empalideceu. Que seria, santo Deus? Pensou logo em alguma desgraça, a morte da Sanjoaneira, um novo escândalo. Ultimamente dera para pensar no canalha do João Eduardo, que se fizera rico com a herança do Morgado de Poiais. Todas as propriedades de Alcobaça, a carruagem, os cavalos, e até dinheiro de contado tinham ficado para ele. E, agora rico, provavelmente aguardava uma oportunidade de vingança. Só recobrou a calma quando o cônego explicou o que o trazia ali. É que na noite anterior fora visitar o padre Saldanha – agora protonotário apostólico em Lisboa e preso à cama com um ataque de gota – e este lhe pedira um grande favor. Uma das atribuições do Saldanha era informar por relatório a Roma qualquer ataque sofrido pelo clero português, quer vindos da imprensa, quer de outra fonte com larga repercussão no país. E ele soubera de uma opereta, estreada no São Carlos, que dava uma desanda no clero. Como ele não podia ir até lá, e o cônego era desconhecido em Lisboa, solicitava-lhe o favor de substituí-lo nessa tarefa. Ora, o cônego não podia furtar-se a um pedido dele. Mas, habituado à pachorra de Leiria, sem jamais ter entrado em uma casa de espetáculos em toda a vida, não sabia como fazer e contava com o amigo Amaro para aquela empreitada.

- Ora essa, padre mestre, e que temos nós a ver com isso? Eu não freqüento teatros, muito menos o luxo do São Carlos. E que diferença faz mais uma desanda no clero, nesses tempos de irreligião e materialismo? Com franqueza, isso era caso para a polícia correcional, não para padres...
- Mas não se trata disso, Amaro. Trata-se do autor!
- Do autor? Que autor?
- O autor da ópera, do drama, sei lá do que... É o maldito do Agostinho, que nos volta. E em Lisboa, com tantos intelectuais e escritores a favor desses achincalhes, a coisa pode ser séria.
- Agostinho... Que Agostinho?
- O Agostinho Pinheiro, da Voz do Distrito, pois não lembra? Veio para Lisboa, deu para escrever burletas contra o clero. O maldito levou-lhe tempo, mas sempre aprendeu com o João Eduardo.
- O Agostinho? É o mesmo da Voz do Distrito? E agora escreve comédias? Mas ainda não vi onde isso possa nos trazer algum mal.
- É que o diabo do homem ficou amigo do João Eduardo, e conhece muita coisa de nós. E creio que é o escrevente quem o financia...
- Canalha de gente! Bem dizia o Natário, é necessário esmagá-los. Mas crê que haja alguma alusão a nós?
- Homem, eu não sei. Quem me falou que os dois tornaram-se grandes amigos foi o Brito, que agora é pároco da sé de Lamego e está aqui em férias, em casa de uma irmã.
- O Brito! Bela figura! Então o Brito conseguiu a sé de Lamego? Boa posta é, e com a côngrua, e os presentinhos... Deve estar bem de vida, então.
- Muito bem, vê-se-lhe pelo cordão de ouro que exibe no bolso da batina, pela boceta de rapé, de ouro e marfim. Uma jóia! Que o Brito tomou juízo, o ar da serra arejou-lhe a cabeça. E aí está o motivo da minha visita.
- De forma que espera que lhe faça companhia?
- Na verdade, Amaro, gostaria que fosse sozinho. Que me poupasse esse esforço, se é que acha que mereço...
- Por quem é, padre-mestre! Sei muito bem o quanto lhe devo. E a que horas é a tal ópera?
- Creio que os jornais devem trazer o horário, os preços. Há jornal de hoje por aqui? Ótimo. E quanto a despesa da entrada, do transporte, não lhe dê isso cuidado.
- Não se incomode. E logo de manhã já terá um relatório, se puder vir novamente visitar-me. É que tenho um encontro à tarde, na casa do senhor conde de Ribamar, a condessa estará presente e não quero atrasar-me.
- Cáspite! É você quem lavra aquilo, ladrão?

Amaro sorriu envaidecido. Aquela admiração do cônego o envaidecia. Não quis explicar que a condessa já era velhusca, cheia de caturrices, e com um buço mais eriçado que uma escova de arame.

- Muito bem, padre-mestre, até amanhã então.
- Até amanhã. E creia que esse favor não cairá em terreno sáfaro.

Amaro subiu as escadas contrariado. Não era só a despesa da carruagem, do ingresso, mas também a maçada, entrar no teatro sorrateiro, de casaca preta, com receio que lhe vissem a tonsura. Mas não podia negar-se ao cônego. Que diabo, seria deveras uma ingratidão! Decidiu ir.

Agora, no quarto, voltou-lhe o desejo de ver de perto a rapariga sardenta. Chamou-a, pretextando necessitar de mais uma toalha. A rapariga já vinha mesmo subindo, com uma braçada de toalhas limpas. Entrou no quarto com a tranqüilidade de quem é dona de si. Amaro entrou atrás, já sentindo um calor percorrer-lhe o corpo.

- Mas que mal anda isto cá, senhor pároco! São quase dez horas, a cama por fazer... Não quer sair um instante, enquanto arrumo?
- Não posso.
- E por quê?
- Porque sim.
- Ora essa, senhor padre Amaro. O quarto é seu, ponha-se à vontade. Pensei que estaria melhor lá embaixo. Ainda nem almoçou...
- É que prefiro ficar aqui, ao pé da menina.
- Não diga isso, senhor padre. – riu-se a rapariga.

Amaro aproximou-se, suas mãos tremiam um pouco. Acariciou seus cabelos, puxou-a devagarinho contra si. Beijaram-se. Mas o homem do quarto vizinho vinha subindo a escada, escarrou alto. De um pulo Amaro colocou-se na porta. Falou alto, para que ele ouvisse.

- Pois então, a menina fica à vontade para arrumar o quarto, que já estou de saída. Logo mais subo para barbear-me.
- Pois até logo mais, senhor pároco.

Ao cruzar com o homem na escada, Amaro tocou de leve no chapéu, cumprimentando.

- Muitos bons dias, senhor padre. Se vai sair, olhe que está ameaçando chover. É melhor levar guarda-chuva.
- Muito agradecido a V. Excia. Vou somente tomar um café à esquina.

À noite, Amaro mandou buscar carruagem, saiu teso na camisa engomada, de colarinho virado. Ia um pouco temeroso, como em uma missão perigosa. Mas uma vez dentro do teatro, conscientizou-se que ninguém olhava para ele. Todos pareciam antes preocupados em aparecer, em mostrar-se. Pôde assim gozar à vontade do espetáculo que se passava na platéia, as pessoas entrando, homens graves, de monóculo de ouro, mulheres com largos vestidos de seda, que faziam um frou-frou delicioso. Antes, essas visões do luxo mundano o acabrunhavam e entristeciam. Quem era ele, pobre padre de aldeia, para usufruir daqueles luxos, da companhia daquelas mulheres perfumadas, que riam e falavam alto? Mas desde o caso com a Ameliazinha, vira que podia levar uma vida bem agradável. Aprendera muito sobre isso com o cônego, e aí via mais um motivo para tratá-lo de “padre-mestre”.

No palco, as cortinas fechadas, a orquestra preparava-se para entrar em ação. A platéia já ia silenciando, na expectativa do espetáculo. A orquestra rompera os primeiros acordes, o pano erguera-se. O cenário era um átrio de convento, as freiras passavam com seus longos terços na mão. Mas de repente risadas estouraram, alguns fungavam de riso. Amaro viu que uma das freiras era muito bonita, tinha um rosto claro, e conversava com outra que mais parecia um homem, de voz grossa, e compreendeu vagamente que contava alguma coisa para a outra, que se fez muito triste. No final do primeiro ato, não teve coragem de levantar-se da cadeira. Um sujeito ao lado, gordo e de pêra, que continuava a rir, perguntou-lhe se gostara.

- Sim, muito. – respondeu intimidado.
- Pois hoje é o terceiro dia de espetáculo e olhe que tenho vindo todos os dias. É uma delícia. Vem sempre ao São Carlos?
- Não, quase nunca. Na verdade moro na província, venho pouco a Lisboa.
- É, na província não há dessas coisas. Verá como o segundo ato é ainda mais gaiato, embora com instantes dramáticos.
- Gaiato?
- Sim, gaiato. Como sabe, trata-se de uma ópera bufa, a intenção é fazer rir ridicularizar, tudo com intenções de crítica social.
- Ah, compreendo. É que não percebo bem o que dizem quando estão cantando. Parece-me que há uma intriga...

O sujeito da pêra explicou-lhe miudamente o enredo, antecipou o desfecho. Amaro dava graças aos céus por aquele homem providencial. Assim poderia dar um relatório completo ao cônego. Resolveu ir embora, agora que o sujeito saíra para espairecer, acendendo um charuto meio fumado. Contava chegar em casa a tempo de encontrar a criada ainda acordada...

O cônego chegou na manhã seguinte à mesma hora da véspera. Amaro levou-o novamente para a saleta e contou o enredo da ópera. Explicou o que era uma ópera bufa, e como aquela apresentava uma calúnia assacada contra a vida claustral, uma freira apaixonada pelo jardineiro do convento, uma outra que mais parecia um homem. O cônego riu muito de tudo, embora achasse que aquilo realmente constituía um desacato à religião e ao clero.

- E enquanto a calúnias, Amaro, sabemos que há dessas coisas por lá também. Algumas religiosas têm amantes, empregados do convento, médicos, até padres...
- Que me diz, padre-mestre?!
- Pois é, que quer o amigo? Elas também sabem apreciar o que é bom. Disse-me o Natário, que já foi confessor da Encarnação. E ouviu poucas e boas.
- Mas contou-lhe o que ouviu em confissão? E o magnum sigilum?
- Ouviu em confissão sim, homem, o que tem? O que ouvimos no confessionário é segredo quando se trata de pessoas conhecidas. Mas essas religiosas, que nunca vimos... E isso foi aqui há anos...
- Tem razão padre-mestre.
- É claro que tenho. E agora vou deixá-lo que tenho um encontro com o meu procurador. Ainda nos vemos?
- Não creio, padre-mestre. Parto depois de amanhã para Santo Tirso.
- E o encontro com o senhor conde?
- Será hoje à tarde. Mas já está resolvido, dentro de uns três meses assumo a sé de Vila Franca.
- Seu maganão! Pois vá você na companhia dos anjos.
- Amém, padre-mestre.

Abraçaram-se carinhosamente. Amaro subiu para o quarto devagar, enquanto pensava. Bem boa tinha sido a vida para ele, desde Leiria. Tirando as aflições com a morte da Amélia, que tanto o afligira, o mais correra muito bem. Tivera a carne regalada em Santo Tirso, teria também em Vila Franca. Em todo lugar havia chance para um “padre janota”, como infamemente o qualificara o João Eduardo. Janota! Pois sim! Mas tivera nos braços a Amélia, depois a bela amante em Santo Tirso. E contava essa noite mesmo deliciar-se com a criada da pensão, rapariga fogosa como o demo. Bem dizia o padre-mestre: “É o melhor que a gente leva dessa vida!”

Na casa do Conde tudo correu melhor do que Amaro imaginara. Não ficara mais na posição acanhada e subalterna que tivera na primeira visita, quando a condessa era ainda jovem e bonita, e ele apenas um padreco recém-ordenado. Não. Dessa vez conversara, chegara mesmo a entoar uma canção que aprendera em Santo Tirso, de um padre que vivera na Bahia, e que dizia Lindas moças, lindas moças... Tudo aquilo fizera grande efeito e com certeza acelerara sua indicação. O Conde afirmara mesmo que “o Sr. Padre Amaro tem serviços prestados ao governo e ao país, merece ter atendida sua pretensão”. E lá estava com ela no bolso, num envelope fechado com o lacre do Conde. Calcou o bolso para sentir o envelope, e sentiu algo mais volumoso. Era o vidro de láudano! Pesquisara muito o assunto, era mais do que seguro, uma dose daquela faria adormecer um elefante. Para sempre!

É verdade, agora vinha a parte mais desagradável. Tinha de ir à pensão, trocar a batina pelo traje civil, cobrir-se com o chapéu e sair furtivamente. Àquela hora havia pouca gente nas ruas, podia ir e voltar sem ser visto.
Saiu da pensão em trajes civis e chapelão. Achou mais prudente andar alguns quarteirões, depois tomou uma tipóia. Deu a direção ao cocheiro procurando fazer uma voz diferente. Não queria deixar nenhuma pista. Desceu próximo ao local combinado e foi andando devagar. Lá estava a rapariga, com seu xaile desbotado e um ar infeliz. Amaro teve-lhe ódio, mas fingiu que estava ansioso para vê-la. Estreitou-a nos braços, beijou-lhe a cabeça. Ela apegava-se a ele com as mãos trêmulas, caminhava com dificuldade.

- Mas que tens tu, rapariga, que mal andas?
- Estou um pouco tonta. Não comi nada o dia todo.
- E por que fizeste isso? Não te dei eu dinheiro para comeres?
- É que... senti-me tão sozinha, tão infeliz...
- Ai que me vens com tonteiras! Minha rica, se nosso amor pudesse se passar às claras, bem o queria eu, botava casa para a menina e íamos viver juntos. Mas bem sabes que não posso. Se me amasses...
- Sim? E não te amo eu, mais que tudo neste mundo, mais até do que o nosso filho?
- Pois bem, então toma o remédio que te trouxe. É para teu bem.
- Deixe-me conversar um pouco antes. Vamo-nos sentar naquele banco de praça.
- Tenho pouco tempo, preciso chegar à pensão antes das onze, ou fico fora.
- Não podes dormir comigo onde estou? Sinto-me tão só, tenho pesadelos.
- É que estás a pôr as coisas difíceis. Pensas que para mim é pouco sacrifício, vir a Lisboa só para estar um pouco contigo? Aqui tens o remédio, toma-o.

A rapariga tomou o vidro desconfiada. Tirou a rolha, sentiu o cheiro forte do láudano. Tomou apenas um gole.

- Que tens tu? Por que não o tomaste?
- É que sabe tão mal! E que cheiro forte ele deita!
- Pois toma-o logo, não o fiques a cheirar.
- Não consigo.

Amaro exasperou-se. Agarrou o frasco, abriu-lhe a boca a força e despejou o conteúdo. A rapariga engasgou-se, esteve quase a vomitar. Depois começou a chorar baixinho. Amaro resolveu ser cauteloso.

- Que tens agora, meu amor?
- Apre, que me machucaste.
- Foi por facilitar as coisas. Não te ponhas lamuriosa. Nem sabes que bem esse remédio te fará. Vem, recosta-te em mim. Tens frio?
- Um pouco. Estou muito cansada.
- Pois descansa.
- Não tens de ir embora?
- Ficarei até que melhores. Estás melhor?
- Sim. Amaro, tu me amas deveras?
- Se não crês...
- Creio sim. É que o mundo é tão mau...Oh, sou tão infeliz...

Felizmente o tempo estava frio, ninguém se atrevia a enfrentar o descampado da praça àquela hora. Passou um pedestre de polícia, olhou e seguiu caminho. A rapariga estava agora inerte e ressonava. Amaro teve o cuidado de certificar-se de que dormia pesadamente. Embrulhou o vidro vazio no jornal, guardou-o no bolso. Olhou para os lados, não viu ninguém, reclinou a rapariga no banco da praça e abalou. Chegou à pensão depois da meia-noite, tivera de caminhar dois quarteirões e correr para tomar um americano que passava ao longe. Bateu à porta levemente, com os nós do dedo. A rapariga sardenta esperava-o, abriu sem dizer palavra. Subiram para o quarto de Amaro. Depois ela desceu em bicos de pés, ele enfiou-se debaixo das cobertas. Chovia forte. Àquela hora, no Largo de Santa Bárbara, o pedestre de polícia procurava acordar a rapariga, encharcada sob o temporal. Mas ela já não mais fazia parte do mundo dos vivos.

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