domingo, julho 08, 2007

SEVERINO LUCENA FILHO - SILVINHA

HUGO CALDAS

A fila está andando. O meu amigo Silvinha, partiu. Há dias tento escrever algo e não consigo. Fiquei sem imaginação, mudo. O poeta Celso Almir, também seu amigo, cresceram praticamente juntos, diz ter perdido a infância quando ele se foi. Eu perdi parte da minha vida. Aliás venho sofrendo estas perdas há tempos. Com todos os outros que também já se foram. É, a fila está mesmo andando.



Severino Lucena Filho, o "Cego Silvinha", por causa de uns óculos fundo de garrafa que usava devido à um distúrbio visual brabo, forçando-o àquelas lentes que aumentavam em muito o tamanho dos seus olhos. Sua figura lembrava o "Dr. Silvana", célebre bandido dos Gibis, inimigo figadal do Capitão Marvel, dono de uma risadinha tétrica, "he, he, he"! Morava numa esquina da Avenida Bento da Gama. A casa ficava por trás de um posto de gasolina de propriedade do seu pai, o coronel da Polícia Militar, Severino Lucena. Tinha um irmão, se bem me lembro de nome Edílson, e uma porção de irmãs. Todos mais velhos, portanto não davam muita bola pros pirralhos como nós.

Silvinha, eu e Almir, os Três Mosqueteiros, Antonio Mercês, (por onde andará?) o quarto componente. O nosso D'Artagnan, morava na outra esquina. O pai de Antonio Mercês era caminhoneiro, o que me enchia de inveja só em ter aquele enorme caminhão estacionado em frente à casa.

Ah, quanta coisa passamos juntos. Íamos diariamente pela Rua Duarte da Silveira, que nem os quatro cavaleiros do oeste, para as aulas no velho Liceu. Éramos imbatíveis, elegantes em nosso uniforme cáqui igual ao da Policia Militar, cabelos penteados, Almir usava "Gumex" para sustentar uma trunfinha à Elvis e dizem, não se deitava durante o dia para não emaranhar o penteado. Passávamos pela casa de Marisa e Maria Antonia, garotas que povoavam o meu imaginário. Logo após, bem na esquina da Maximiano Figueiredo morava uma senhora viúva (dizia-se) e uma filha. Bonitas e gostosas as duas. Sentadas no terraço, sempre usando um penhoar negro esvoaçante, as malvadas, exibiam suas belas pernas torneadas apoiadas na mureta do alpendre, saia ligeiramente levantada... Ah, tormento. Passávamos em frente todos os dias e o espetáculo diário era esperado com tácita ansiedade. Todos davam uma olhada meio marota para não dar na vista, exceto o Silvinha que por conta dos óculos era uma indiscrição completa. As duas riam complacentes.

Logo ao chegar ao Liceu íamos, antes do inicio das aulas, direto ao nosso esconderijo, uma parte da calçada por trás da nossa classe onde continuávamos a prosa interrompida no caminho, e aproveitávamos para fumar umas piolas qua havíamos guardado desde a noite passada. As piolas, toco de cigarro, também conhecidas por "segundas" ainda davam pro gasto, pois era comum virarem objeto cobiçadíssimos na roda.

Íamos e vínhamos à pé, coisa inconcebível nos dias de hoje onde essa garotada considera o carro uma extensão das próprias canelas finas.

Festa da Padroeira na Torre. Lá estavam os Tres Mosqueteiros na pequena praça. A difusora da Fundação Padre Dehon a tocar um "de alguém para você"... Rapazes parados e garotas passeando de braços dados como em uma enorme cirandinha. Uma dessas garotas só faltou engolir o Antonio Mercês e ele, nada. Decidimos então chamar os brios do nosso D'artagnan. Silvinha foi o designado a sabatiná-lo para o devido sucesso quando fosse "encostar" com a garota. Dizia o Cego: "Você encosta e dá boa-noite. Daí solta uma piadinha e engrena uma conversa. Não tem erro."

O final da história foi o que se segue. Juro! Quando a garota passou, quase empurramos o coitado do Antonio Mercês em cima dela. Ele, seguindo à risca as instruções...

- Boa-noite!
- Boa-noite!

E como brincadeirinha, faz menção de puxar alguma coisa do cinto...

- Olha a faca! ... Você tem vindo todas as noites. Vai estar aqui amanhã, também?

- Vou, é claro!

- Então, até amanhã! E veio embora...

Levou a maior saraivada de cascudos. Bons tempos!

"Tiraste um firestone" dizia sempre me gozando, (pronunciava FI-restone ao invés de FAI-restone), juntando o polegar ao indicador no gesto conhecido, quando eu tirava, como de costume péssimas notas em matemática, matéria na qual era catedrático. Desde cedo Silvinha demonstra o maior tino comercial. Há uma genial história de compra e venda de umas garrafas se não me engano, tendo como coadjuvante o poeta Celso Almir. Os dois na mais tenra idade.

Perdemos um pouco o contato quando vim para o Recife mas conseguimos nos reencontrar em outra época, um pouco mais velhos quando a amizade fica então mais sólida. Ele, por sua vez, a cada dia mais parecido com o Dr. Silvana. Distribuía gentilezas. Quase sempre que eu ia à João Pessoa e o encontrava almoçávamos juntos. Levou-nos certa vez, a mim e a minha mulher, a jantar na praia. Ele gostava de agir assim. Passávamos horas no papo. O tino comercial do garoto se revela no mais competente empresário. Teve várias lojas comerciais. As famosas "Tio Patinhas." Nunca tive o prazer de conhecer a sua família. Uma pena. Em 2001, os Três Mosqueteiros, ele, eu e Almir, exceto o Antonio Mercês, nos encontramos em João Pessoa. Pela última vez.

Soube, por amigo comum, logo no inicio do ano, que estava mal, sem chance de recuperação o que me doeu bastante. Mas estes são os desígnios dos homens lá em cima. Após longo infortúnio me deram conta do seu passamento. Prepara o ambiente por aí meu amigo, estamos chegando.

Missa de sétimo dia. Saí do Recife única e exclusivamente para assisti-la. Não tive, entretanto muita sorte. Consegui descobrir a igreja, mas não obtive sucesso em ver ou contatar alguém, amigo ou parente do Silvinha. Lá pras tantas a missa tomou o rumo do programa do Silvio Santos, todo mundo cantando e dançando, o que me forçou contrafeito, a retirada. Sai frustado. Que fazer! Acho que o velho amigo Silvinha deve ter visto que não foi má vontade. Quando eu chegar lá em cima a gente conversa.

6 comentários:

Anônimo disse...

Caro Hugo,
Solidarizo-me com sua tristeza. É duro perder um amigo, mas ao mesmo tempo que privilégio para ele e para você poderem ser incluindos não apenas na memória de alguém, mas também nos registros akásicos (Internet)contidos nesse saudoso artigo de sua autoria.
É Hugo, tudo isso faz parte de quem vive uma vida abundante!
Um abraço carinhoso cheio de consolo p'ra você e todos mais que viveram "aqueles tempos"...

Anônimo disse...

Huguíssimo
Também tenho os meus "Silvinha". Um deles, por sinal, o nosso querido Sílvio preto (por onde anda o Branco?) do qual nem me despedi porque estava nas estranjas quando ele resolveu subir. Mas é impressionante como ficamos "orfãos" quando um deles se vai. Quando a gente perde pai e mãe é outra estória, ou melhor, é a estória deles que se vai. Quando um dos "Silvinha" desencanta, é a nossa história que sobe junto. A gente vai ficando sem testemunhas do que a gente fez e/ou deixou de fazer. Não conheci o Silvinha, nem sabia que ele existia. Mas também fiquei com saudades... Abs
Aline

Anônimo disse...

Hugo,

Dois dos seus mosqueteiros foram meus colegas no 1º ano ginasial do Pio X. O que vem de falecer, apesar dos óculos, era valente: eu o vi, provocado, chamar um companheiro de classe "para a rua", e resolver a contenda no braço (não houve vencedor, porque a regra naquelas brigas era a turma da assistência apartar, depois de algum tempo, para evitar maiores estragos). O Antônio Mercês, depois, já no Liceu, tornou-se desafeto de Celso, sairam para o "pau" e foram levados à sala de Manuel Cavalcanti, então diretor. Me contou o Celso que, ainda provocado pelo outro, mandou-lhe a mão, ali mesmo, na sala do Diretor. Resultado: foram suspensos por 90 dias, Celso perdeu o ano e voltou para o Pio X. E por isso, ele, que era meu colega de classe, ficou atrasado um ano, em relação a mim.

Na Faculdade de Direito, fui colega de Edilson Lucena, que só agora sei que era irmão do Severino, e que também, como eu, foi para a Sudene. Este também já nos deixou há bastante tempo.
O mundo da província é pequeno, como vê. E está ficando menor.
Um abraço.
Clemente.

Anônimo disse...

Hugão, meu querido,

Visualizo a sua dor pela perda do amigo "Silvinha" através de sua quietude, tristeza mesmo.
Bom esse blog pela oportunidade de poder externar a sua amizade e gratidão pelo amigo ausente para os demais presentes.
Felizes os que tem amigos, porém especiais são aqueles que podem homenageá-los.
Te amo, Mary.

Márcia Barcellos da Cunha disse...

Hugo,
Muito bonito seu texto.
Que falta um amigo faz!
Até breve. Márcia

Unknown disse...

Hugo,

Quem vos fala é neto do homenageado, o qual ficou muito feliz e surpreso com todas estas histórias a respeito do meu querido avô o qual nos faz tanta falta e que foi muito amado por todos que estiveram ao seu redor.
Gustavo S. de Lucena Barros