segunda-feira, agosto 21, 2006

O PRIMEIRO COM AS ÚLTIMAS


Carlos Mello


Eudoro é o tipo do homem bonito. Pode-se afirmar isso sem sombra de dúvida, é mais que evidente sua beleza física. O rosto é gracioso e ao mesmo tempo másculo, os dentes perfeitos, a pele moreno-clara, tersa e viril, os lábios carnudos e generosos, o cabelo negro e basto. Mas não é só isso. Ele é também culto, leu bastante, não somente os livros da faculdade, mas outros, até de literatura, viu muitos filmes, na TV e no cinema, vai normalmente ao teatro, conversa com professores, com doutores, empresários, homens de grande saber. E como se veste bem! Basta acompanhá-lo hoje, dia de sua formatura, desde a hora em que desperta da sesta. Lozinha foi sua babá, agora é uma espécie de governanta, dirige as criadas, a arrumadeira, a copeira, o cozinheiro. Que o apartamento é grande, as peças amplas. Ela é a única empregada a morar ali, os outros vêm todo dia. E que cheguem na hora, ora essa! Que o salário é bom e o trato melhor ainda.
Acorda, Dorinho, já são quatro horas da tarde! Quatro horas! Direto para o banheiro, fazer barba, tomar um grande banho, vestir-se. Que a solenidade é às sete horas, e três horas não são nada. Lozinha sai rápido do quarto, desde que Eudoro era adolescente tinha mania de deixar o peru de fora e fingir que dormia, para que ela visse. Agora não faz mais isso. Mas dá vontade, dá. É uma brincadeira, mas proporciona um certo gozo. Ficar pelado também é bom, ainda mais no banheiro. E que banheiro! Todo de mármore, igual ao da suíte dos pais. Mais uma vantagem de ser filho único, ter um quarto e um banheiro exclusivos. A bancada brilha de tão limpa, os metais das torneiras também resplandecem, tudo faísca à iluminação exuberante.
Talvez eu seja a única pessoa da sociedade a fazer a barba com navalha. Eu e o Papai. Ele me ensinou, nossas navalhas – e temos três, cada um – são alemãs, a tira de afiar a lâmina também é importada, americana. Aqui não se fabricam essas coisas. Primeiro vamos tirar o creme do rosto, é uma solução emoliente à base de polpa de abacate, refresca, reidrata a pele; tira-se com lenço-papel especial, macio e hidrófilo. O creme de barbear tem um perfume discreto, que some depois do banho, não concorre com outros odores – do desodorante, do creme após-barba, do parfum de toilette. É como o xampu e o creme de rinçagem, tudo leve e harmonioso. Mas que braços, que peito! Musculoso, mas sem aquela musculatura ridícula de super-herói. Braços de quem joga tênis, de quem pilota jet-ski. Vamos dar mais uma escovada nos dentes, depois banho. É pena não poder mostrar esse banheiro a todo mundo.
Primeiro a cueca, depois a calça, já com o suspensório e a faixa. É tudo zero quilômetro, hoje é um dia especial, o dia da formatura. Agora as meias de seda preta. Diabo, ninguém vê as meias. Só se houvesse uma brincadeira, um concurso de meias, entre rapazes. O sapato é italiano, de couro de bezerro, macio, com design napolitano, foi comprado em Roma. A camisa de cambraia de linho, com peitilho, botões e abotoaduras de ouro, a gravata borboleta de seda brilhante, tudo se compõe com o casaco do smoking. Muita gente, quase toda a turma, não tem smoking, precisou alugar. Por mim a festa seria a rigor para todos, mas muitos protestaram, acharam excessivo. Na verdade, não quiseram confessar que teriam de alugar roupas de rigor e longos para toda a família. É incrível, numa universidade particular, cara, ultra selecionada, como pôde entrar tanta gente chinfrim! Pelo menos só terá acesso à festa quem estiver de terno e gravata, tennue de ville, como queria pôr no convite, mas não deixaram, tudo que não entendem dizem logo que é frescura. Pois seja! Mas dei ordem expressa aos seguranças: não entra ninguém de calça e camisa ou de vestido curto.
Prefiro ir sozinho, tenho de chegar mais cedo. Se for esperar pela Patrícia, é atraso certo. Ela que vá com os pais. Falar nisso, essa aliança de noivado é meio cafona. Dá vontade de tirar, dizer que foi esquecimento. Mas aí vai ficar essa mancha infamante no dedo, é pior. Esqueci o gargarejo! Agora não dá, se respinga na camisa, adeus! Uma pastilha de hortelã podia ajudar, mas aí suja os dentes, a língua. Falar em público, ser orador da turma exige não só um belo discurso, mas também uma aparência impecável. Afinal, não é todo dia que se tem uma platéia cativa de professores, juizes, desembargadores, deputados, secretários de estado, grandes empresários. E aí, suprema audácia: falar de improviso. Isto é, não ler o texto, mas apenas seguir discretamente um roteiro. Começa com duas homenagens: a primeira é a lembrança, na primeira aula de Introdução, da definição de Direito – sistema de normas jurídicas que regulam a conduta do homem na sociedade. E em seguida as observações do mestre: “sistema” e não “conjunto” de leis, para deixar clara a hierarquia, no topo da qual está a sacratíssima Carta Magna; “reguladoras da conduta do homem”, porque só este, direta ou indiretamente, pode ser objeto da norma jurídica; “em sociedade”, pois as leis têm como escopo permitir a convivência pacífica e propiciar a forma justa de dirimir conflitos em um meio civilizado; e, nessa regulação, o “caráter coercitivo da norma jurídica”, que obriga até mesmo aos que não a conhecem, já que Nemo jus ignorare censetur. O latim é fundamental, mas as citações em outras línguas não vai ficar só nessa.
A outra frase é a do próprio Papai, ouvida quando ainda criança: “Procure fazer tudo certo, porque se errar, restará a boa intenção para amenizar o veredicto dos que o julgarem”. Bela frase. Não foi bem isso, era um pouco diferente, mas a essa altura o que vale é a relação com o discurso: que esses dois sólidos princípios, da sacralidade da lei e da obrigação da consciência, foram as balizas de um curso pontilhado de grandes ensinamentos, de toda uma sabedoria secular, transmitida por verdadeiros mestres, dos quais infelizmente alguns já não mais se encontram entre nós, como o citado mestre de Introdução, para o qual peço nesse instante um minuto de silêncio. Tiro e queda! Escorrido o minuto, e antes que retomasse a palavra, estalam as palmas. Há lágrimas em muitos dos presentes. Que generosa lembrança, a do mestre morto! Agora passemos à vida. Certo, o métier da profissão não é propriamente emocionante. O fórum, a burocracia, o andar sinuoso dos processos, quantos interesses a acomodar, quantas vaidades a contentar. Mas não é disso que estamos falando.
O fecho do discurso é uma frase em francês. Inglês todo mundo fala, mas quantos dali sabem falar francês? Nenhum dos colegas, talvez só alguns professores. E eu. Valeu a pena o curso da Aliança, os meses no frio de Paris, cá pra nós, a cidade é chata, antigona. Depois de muita escolha no dicionário de citações, essa: Les lois inutiles abolissent les lois nécessaires. É de Montesquieu, Charles-Louis de Secondat, barão de La Brède e de Montesquieu – o nome completo e a frase no original vão escritos no roteiro, para o caso de esquecimento. Vem muito a propósito da reforma dos códigos, obra monumental, serviço inestimável, que vem sendo prestado ao país por tão ilustres quanto impolutas capacidades. Faz-se com o francês como se fez com o latim: não se traduz nada. Quem quiser que entenda. O fecho é o agradecimento aos mestres, aos pais e finalmente a Deus, em forma de oração ecumênica. Palmas, muitas palmas, bravos, abraços. Na mesa da família estão, além da noiva, os pais, os futuros sogros, o quarteto forma uma significativa parcela do PIB local. Professores, juizes, até desembargadores, vêm cumprimentar. Patricinha o abraça comovida. É a glória!
Festa acabada, não vamos sair depois de todo mundo, é coisa de pobre! Levo a Patrícia, senão vai ser um escarcéu. Mas não vou ficar. Já sei como é. Os pais pedem licença, vão dormir, ela vai ao banheiro, volta lavada, fria, com cheiro de sabonete. E não me quer passivo, exige coisas. O carpete espeta, tem poeira. Vou logo me queixando de dor de cabeça, da tensão, do estômago. E caio fora, que ninguém é de ferro. Ainda na garagem do prédio dela, é preciso tirar o casaco, a camisa, os botões e abotoaduras de ouro, pôr tudo no porta-malas. E vestir a camiseta que está no banco traseiro. Agora, vamos lá! Já são quase quatro horas! Daqui a pouco o dia amanhece, estraga tudo. É longe, precisa pisar no acelerador. Aí está, já começam as ruas meio escuras, quase desertas àquela hora. Essa que vai caminhando aí parece bem, acho até que já conheço. É ela mesmo. Está sozinha? Arranja uma amiga. Muito prazer, Edileuza. Vamos lá que já é tarde. O porteiro do motel se amacia com duas notas de dez. E lá dentro, na penumbra, que cheiro acre, que cabelo duro, que pernas ásperas! Que festa, que loucura!
Deve ser bem tarde, tenho de me mandar. Acordem, meninas, olha a grana! (Que monstros, meu Deus!). E mais isso aqui para o táxi, vou sair sozinho, estou atrasado. É claro que elas vão pegar um ônibus, imagina! Caramba, a rua já está cheia de gente, tomara que os velhos não tenham acordado ainda. Agora, (uff!), em casa, um belo banho de banheira. Com sais de banho, aromáticos. Franceses, bien sûr! A vida é boa. Vou dormir até tarde, depois almoço na casa da Patrícia. À noite, quem sabe, no carpete...

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