domingo, setembro 01, 2013

TEMPOS DE FRANQUEADO



HUGO CALDAS


Corria o ano da graça de 1992. Fernando Collor ainda na presidência. Passara apenas o curto período de alguns meses desde a bravata "uma só bala para matar o tigre da inflação". Eram tempos de muita tensão. Cada um que cuidasse de seu próprio interesse e qualquer idéia que se mostrasse pelo menos honesta, seria testada. Mas o que aconteceu, ainda hoje nos faz ranger os dentes. Terminaram por levar o nosso rico e sofrido dinheirinho. Me ví, de uma hora para outra equiparado a Antonio Ermirio de Morais. Apenas 50 cruzados no banco. Lembram?

Um pouco antes desses infelizes acontecidos, já há algum tempo atrás havia tomado conhecimento que o governo federal iria abrir a ECT para quem se despuzesse a gerenciar uma franquia/agência e evidentemente pagasse por ela. Achei a ideia de primeiro mundo. Sabia, por exemplo que na Inglaterra, toda e qualquer papelaria era uma pequena agência dos correios. Na luta do dia a dia, no trabalho árduo para garantir o leite das crianças, o fato terminou por cair no esquecimento. Eis que, em uma das minhas turmas, encontro por acaso, uma funcionária dos Correios. Lembrei-me das franquias e perguntei se o programa havia prosperado.

- Claro que sim, disse-me ela, as franquias estavam para se iniciar a qualquer hora. Por que eu não tentava uma inscrição? Ainda daria tempo.

Naquela noite não dormi direito pesando os prós e os contras. Estava amealhando todo e qualquer centavo para uma possível viagem à California. No dia seguinte marchei decidido para o edificio sede dos Correios e fiz a minha inscrição. Mais uma vez acreditei no país. Mais uma vez me dei mal. Não sabia o que me esperava no futuro. A minha proposição terminou sendo aceita. Fui aquinhoado com a Agência Franqueada do bairro dos Aflitos. Mais tarde, inimagináveis acontecimentos dentro e fora do âmbito da ECT me vieram provar o desacerto da minha decisão.

Se arrependimento matasse...

Para começo de conversa fui descobrindo, entre ansioso e agastado que havia muito chefe pra pouco índio. Havia pessoas na empresa que simplesmente adoravam tirar uma lasquinha da inexperiência dos novos franqueados, praticamente nos fazendo de bobos. Algum chefete nos visitava e dava uma ordem sobre uma tolice qualquer, como a colocação de um cartaz, por exemplo. No afã de fazer tudo certo, acatávamos toda e qualquer ordem, sugestão, o que fosse. Dia seguinte aparecia um outro bambambã para contestar, trocar o aviso novamente de lugar. Ficávamos nesse jogo de empurra. Com poucas e honrosas exceções a maioria desse pessoal parecia não se conformar em perder o poder e principalmente, uma receita bastante apreciável. Daí a necessidade de tornar a nossa vida um verdadeiro inferno. Esse tipo de reação geralmente vinha de quem ainda usava o expediente do "paletó na cadeira" acostumados que estavam ao bem-bom de anos e anos sem ninguém a perturbá-los. O fato é que esse pessoal usava de toda e qualquer artimanha para que déssemos com os burros n'água. O fato é, também, que a ECT é como um microcosmo desse malsinado universo brasileiro. Havia muita gente querendo ver a sua caveira com um grilo cantando dentro. Mas havia também muita gente boa, honesta e trabalhadora.

Um caso em particular, acontecido com a minha agência, ilustra muito bem esse período e essa atmosfera reinantes. Havia uns seis meses reinvidicava o envio de um mero quadro de avisos - horário limite de postagens e coisas afins - para colocar no atendimento. A resposta era sempre - "não há disponibilidade do material requisitado". O tempo passou. Mudou a Direção Regional. O novo Diretor veio a ser um conterrâneo velho de guerra, dono de uma longa, honesta e proveitosa folha de serviços prestados aos Correios. Corri a fazer-lhe uma visita de cortesia e ao final, ele gentil como sempre, veio me levar até o corredor com a mão no meu ombro. Quando o elevador chegou e a porta se abriu, sai ninguém menos que o tal chefete, o mesmo que havia meses nos negava um mísero quadro de avisos. Nos cumprimentamos ligeiramente. Fui ao banco resolver algo, e não demorei mais do que 30 minutos. Ao voltar à agencia oh, que bela surpresa! Havia um lindo quadro de avisos afixado (pelo próprio chefete) à parede. Dá pra perceber, não?

O princípio do fim:

Na implantação da agência gastei o dinheiro que tinha e o que não tinha. Enfrentei problemas condominiais - no princípio estávamos instalados numa pequena galeria. Os outros condôminos não aceitavam a loja dos Correios como uma loja "Ancora". Àquela que poderia atrair outros clientes para os demais estabelecimentos. Implicavam, por exemplo, com a nossa placa.

Tive que sair da galeria e construir uma loja ao lado. Juntamos forças, eu e a minha mulher que à época, na casa visinha, também lutava para manter uma pequena escola de inglês para crianças e tentamos segurar o pião na unha. Foi quando começamos a receber desditosas visitas de alguns "sócios" indesejáveis. Já não bastavam os impostos escorchantes (jurei que um dia ainda iria usar essa palavra) que os casacudos e venais (salve, Daniel) desse país nos impunham? Referidos e indesejáveis sócios eram assaltantes de verdade. Sem as casacas de Brasília. Num período de dois anos e meio fomos assaltados nove vezes. Como consegui sair vivo à visão do meu filho agarrado pelo pescoço por um individuo que simultâneamente apontava um revólver ora para a sua cabeça, ora para minha cara estupefata!

Da parte dos Correios nenhum refresco. Se o assalto aconteceu no dia 13 ou 14, por exemplo, a prestação de contas do dia 15 teria que ser integral. O dinheiro roubado tinha que ser pago de uma maneira ou de outra. Tivemos a contragosto que recorrer ao banco. E aí foi a nossa ruína. Quando se estava chegando à liquidação final do empréstimo, outro assalto nos tirava novamente o fôlego e os Correios nos pisava na goela. Ninguém a quem apelar. Entre nós franqueados, existia uma grande estranheza: A maioria das agências assaltadas eram franquias. Dava para pensar que "algo de podre estaria acontecendo no reino da Dinamarca..."

Vocês devem estar lembrados que o "Mensalão" foi desencadeado à partir de um alto funcionário ECT recebendo uma propina de três mil - a TV mostrou o capadócio embolsando a grana. Ou terá sido alucinação coletiva?!

A gota d' água:

Pois bem. Passado o perigo, chega-me dia seguinte ao assalto descrito acima, um funcionário da Gerência de Auditoria e começa a interrogar todos os meus empregados. Queria saber se eles não haviam sido instruídos pelo gerente (eu) para simular, forjar um assalto. E tudo isso na minha frente. Perdi as estribeiras. Coloquei o infeliz porta afora.

Alguns anos depois desse despropositado incidente encontro casualmente o tal gerente auditor em frente ao prédio dos Correios. Soubera que ele fora pego com a boca na botija, na prosaica atividade de super faturar compras, notadamente peças automotivas para uso nas kombis de coleta/entrega. Foi demitido por justa causa. Perdeu 28 anos de trabalho. Toda uma vida. Minha mãe sempre dizia: "Quem disso cuida, disso usa"!

Veio me cumprimentar todo frajola, como se nada houvesse acontecido. Não refresquei também e disse-lhe na cara:

- "Olha aqui, se naquela época você vivia perturbando Deus e todo mundo na busca de possíveis ladrões entre os franqueados... se o que você queria era pegar algum ladrão, nem precisava tanto esforço. Bastaria se olhar no espelho."

Ele engoliu no seco. Nunca mais o vi. Soube que morreu em um acidente de automóvel.

Ainda hoje, passados tantos anos, não sei ao certo, talvez por força de algum bloqueio, como alguns desses episódios realmente aconteceram. O certo é que fui forçado a vender a minha agência por qualquer dez tostões. Saí doente e endividado. Tudo por ter acreditado "neste país." Será que as coisas melhoraram desde então? Duvido muito! Ver o clipe abaixo...

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