domingo, setembro 22, 2013

Desabafo

(ou de conhecimentos e sabedorias) (ou, para não dizer que não falei do mensalão...)

           

Aline Alexandrino

Quando ainda dava aulas na universidade, um dos assuntos que mais chamava atenção dos alunos era aquele referente ao conhecimento. Estávamos numa instituição criada para o repasse e desenvolvimento do mesmo e, no entanto, isto não parecia claro. Boa parte do tempo, os alunos reclamavam do acúmulo de dados que tinham de reter na memória, sem que muitas vezes entendessem como aquilo tudo iria servir à sua futura atividade profissional. O que eu tentava explicar-lhes era que para chegar ao conhecimento são necessárias algumas etapas. Como minha área de atuação se refere à saúde, vou dar como exemplo o caso do conhecimento adquirido sobre a prevenção e tratamento da pressão alta.

Em primeiro lugar, foi preciso coletar dados, ou seja, mensurar inúmeras vezes a pressão arterial, até que se estabelecesse uma média e, a partir daí, ficasse determinado o que seria uma pressão alta.
A segunda etapa referiu-se às informações, que nada mais são do que o resultado de uma análise cuidadosa de vários dados. Constatando-se, a partir de dados confiáveis, que o indivíduo que apresenta pressão arterial alta, também apresenta correlações, por exemplo, com diabetes, arteriosclerose, derrame, problemas cardíacos, e problemas renais, aos poucos vai sendo construído um conjunto de informações que possibilitam ao médico entender melhor o funcionamento de um organismo humano submetido a uma pressão alta.
Finalmente, o conhecimento resulta da análise dessas informações, quando então o médico adquire uma visão geral do que deve ser feito para prevenir e tratar a pressão alta.
O que não se enfatiza devidamente, na formação dos profissionais, é que o uso deste conhecimento deve, necessariamente, ser aplicado com sabedoria, caso contrário, corre-se o risco de uniformizar o tratamento, ou a prevenção, pelo uso dos chamados protocolos, que nem sempre se adéquam a todos os indivíduos, pelo fato de que cada ser é único no que se refere às suas características fisiológicas. E a aplicação com sabedoria só ocorre quando o profissional pratica, de forma sistemática, uma qualidade chamada sensibilidade.

É a sensibilidade que faz com que o médico seja mais firme nas explicações e exigências para com um dado paciente, enquanto que com outro seja mais cuidadoso na exposição do problema, sob pena de que ocorra uma não-adesão ao tratamento, devido a medo, negação, ou qualquer outra situação que inviabilize a aceitação de que terá de haver mudanças essenciais no comportamento do indivíduo afetado. Portanto, para que o conhecimento seja aplicado da melhor maneira possível, faz-se necessário que o profissional em questão tenha sensibilidade bastante para utilizá-lo com sabedoria.

Tudo isto foi para dizer que esta semana vi novamente acontecer a contradição entre conhecimento e sabedoria. Uma grande parte da nação ficou esperando uma decisão da mais alta corte do judiciário.

Esta decisão estava eivada de expectativas, em função de anos (para não dizer séculos...) de esperança de que os princípios do direito fossem aplicados a todo e qualquer indivíduo, cumprindo o preceito de que todos são iguais perante a lei. Algo aberrante já havia acontecido na semana anterior, onde um “representante” do povo foi mantido no cargo pelos seus pares, apesar de condenado pela justiça e preso numa cadeia. A esperança foi ferida de morte quando quatro dos onze ministros votaram a favor de que se protelasse mais uma vez (além dos sete anos que já tinham se passado), um processo onde todas as chances tinham sido dadas para que explicações satisfatórias fossem apresentadas, onde os advogados dos réus eram devidamente qualificados para atuar em favor dos mesmos, e onde já havia uma condenação obtida após a apresentação de todas as provas e de um amplo direito de defesa.
Porém, o golpe final foi dado pelo último juiz que devia votar, e que o fez baseado num amplo conhecimento das leis, justificando por intermédio desse conhecimento que o processo deveria ser revisto em algumas de suas partes, para que os réus tivessem uma chance de revisão do julgamento. Foram duas horas em que se ouviu um homem expor todo o conhecimento acumulado em séculos de estudo do direito, mas onde não se observou a sensibilidade que levaria à aplicação com sabedoria.
Não houve sensibilidade em relação ao fato de que o povo brasileiro está cansado de ser explorado, enganado e humilhado pelas pessoas que deveriam protegê-lo e representá-lo. Não houve sensibilidade para entender que o sentimento de impunidade reinante nos últimos anos deixa uma insegurança e um medo que fazem com que as pessoas saiam de casa para trabalhar, ou estudar, como prováveis vítimas e voltem para casa como sobreviventes. Não houve sensibilidade para entender que a aplicação da lei nem sempre significa que a justiça se fez e que isto é um motivo de frustração social que pode levar à apatia, ou à violência gratuita.

A frustração foi de tal ordem que o que deveria acontecer normalmente, ou seja, a ida das pessoas às ruas para protestar e reivindicar os seus direitos, não aconteceu. Também ficou a sensação incômoda (e perigosa) de que a mais alta corte de justiça do país não está muito segura do que julga, uma vez que pode voltar atrás no julgamento, apesar do tempo decorrido no processo e das defesas apresentadas. Dessa sensação decorre o sentimento de que não adianta de nada recorrer à justiça, uma vez que as pessoas que deveriam tomar a atitude necessária para mudar a situação apenas expõem seu conhecimento (amplo e bem fundamentado) sobre o assunto, mas esquecem de usá-lo com sabedoria. Finalmente, apesar de ainda não estarem claras todas as conseqüências dos atos de cinco juízes do STF, o cheiro de pizza no ar resulta na incômoda sensação de que Rui Barbosa tinha razão quando disse (em 1914): “De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude. A rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto”...
    

Nenhum comentário: