sábado, agosto 17, 2013

Minha Gente - Os Pereira

Hugo Caldas

Pelo o que eu sei a família Mercês provinha do patriarca Deodato José das Mercês Parahiba, do Rio Grande do Norte. Possuia casa à Rua Direita, (Duque de Caxias) no trecho que ia da antiga Rua do Rosário até o Pátio do Palácio. Bem mais tarde essa casa ficou conhecida por todos da família como "A Casa das Meninas". Essas tais "meninas" eram as minhas tias-avós, Marfisa, a misteriosa, Marly, que tinha trabalho na Secretaria de Saúde, Nenen, a intelectual que pronunciava como ninguém, excertos como "pilastras cilindricas" e Nilinha, a faz-tudo, para todos. Todas elas irmãs de Maria Eugênia das Mercês Parahiba que quando do seu casamento com Ambrósio Pereira suprimiu o Parahiba passando a se assinar Maria Eugênia das Mercês Pereira, Dona Dondinha, minha avó materna. Meu avô Ambrósio Pereira se estabeleceu no comércio. Os Pereira moravam em Pilar, pequena cidade do agreste paraibano, em um enorme sobrado conhecido até hoje como "O Sobrado de Seu Ambrósio". Dito sobrado era uma edificação comum como todas as outras, porém majestosa na sua simplicidade. Lembro da enorme escada externa que levava ao andar de cima onde todos moravam. No térreo era a loja de tecidos do meu avô. Por trás da loja existia sua oficina de marceneiro. No descampado da parte térrea, bem ao lado da escadaria havia um pomar coalhado de diversas fruteiras e uma horta para onde a minha mãe, manhã cedo, me levava a passear, arrancando e comendo tomates e me fazendo comer também. Eu, indefeso nos meus dois anos de idade, detestava. Diz ainda a lenda que Dona Dondinha foi a primeira professora diplomada a chegar na cidade. Maior festa para recebê-la, com banda de música, pompa e circunstância. Logo começou a lecionar e se torna mestra de Zé Lins do Rego, que ainda menino, de traquinagem, cuidava de olhar as "bonitas e bem torneadas pernas" da jovem professorinha, como está bem registrado em um dos seus livros.

O tempo foi passando e eis que todos se mudam para a capital indo meu avô Ambrósio estabelecer moradia na rua Capitão José Pessoa, 48 esquina das Trincheiras, tradicional logradouro da cidade. Era uma casa antiga e espaçosa dentro de um pequeno bosque de mangueiras, mamõeiros, fruta-pães, bananeiras, um pé de jenipapo e umas tantas galinhas de corte e de postura. Fogão à lenha e carvão, reinava soberano na grande cozinha manobrada magistralmente por uma negra muito bonita por nome de Rita de Brito, quituteira das boas. Rita namorava o leiteiro que se chamava Luis Alves de Lima Silva, o nome quase completo do Duque de Caxias. Todas as manhãs Luis vinha com a sua carrocinha branca no maior asseio, deixar os dois ou três litros de leite e daí o amor surgiu. Um belo dia uma quase tragédia: Luis fora convocado para a guerra na Itália. Foi um chororô danado. O "Pracinha" logo requisitou um retrato de Rita bem como um vestido, que era para ele pendurar na sua barraca de campanha e olhar quando a saudade apertasse. Não lembro se ao final do conflito ele voltou. Cuido que não.

Em frente à casa ficava o consultório do doutor Cícero Leite, dentista que possuía um automóvel verde musgo claro, que era seu xodó. Esse carro ficava horas estacionado em frente a minha casa e eu costumava brincar subindo e descendo pelo capô e pára-lamas. Resultado: arruinei a pintura, tão zelosamente cuidada pelo valoroso odontólogo que de imediato veio reclamar. Minha avó se desculpou e pediu que ele não contasse nada à meu pai. Ela mesma tomaria as providências devidas.

Quando o meu pai chegou na hora do almoço foi a primeira coisa que falou, já me dando um carão daqueles. Reação da minha avó:

- "Mas eu não disse àquele cavalheiro para não contar nada ao Américo! O que ele merece agora, uma tapa na boca"!

Essa era a minha avó Dondinha que nasceu numa véspera de São Pedro, em 1885 e faleceu no início de julho de 1947 em Campos, Estado do Rio de Janeiro. Tocava piano como ninguém. Se preocupava com a minha educação musical, pois cuidou que eu tivesse aulas de piano e solfejo com o maestro Joaquim Pereira morador das redondezas. Um belo dia, após a morte do meu avô Ambrósio, ela juntamente com a minha Tia Aurinha, tomaram um vapor do Lloide, "O Araranguá", para o sul do país. Foram ao encontro de uma outra Pereira, a minha Tia Céu que há muito se mudara para a cidade de Campos, ao se casar em 1936. Durante a viagem deu uns quantos concertos à bordo durante memoráveis jantares, à pedido do comandante. Maior sucesso. O ponto final da viagem para elas duas seria a chegada ao Rio de Janeiro onde finalmente encontrariam a filha. Consta que a minha avó Dondinha logo revolucionou a vizinhança com seus bolos e doces maravilhosos. Consta também, que em sendo diabética andou fazendo umas extravagâncias, comendo e bebendo do que não devia, nem podia. Para o meu desespero de criança, a minha avó Dondinha jamais regressou dessa viagem. Ficou para sempre, distante. Custa-me a sua ausência. Até hoje.

Ultimamente, após o passamento da minha mãe, garimpando nos seus pertences encontrei dentro de um universo de fotos, pequenas anotações, receitas de bolos e doces, orações e citações, uma verdadeira joia. Uma carta, que estou tentando decifrar, escrita com bela caligrafia pelo meu avô na década de 40, com os seguintes dizeres à lápis no envelope: "Para ser entregue à Dondinha após a minha morte".

- Essa minha gente Pereira continua a me surpreender.

6 comentários:

Maria Lúcia disse...

Maravilha, oh grande escriba. Fez me lembrar os "Recuerdos". Por isso pergunto: por que não re editá-los ?

Anônimo disse...

qUANTOS PERSONAGENS FASCINANTES EM SUA MEMÓRIA, HUGO!!!

Solha

Márcia Barcellos da Cunha disse...

Hugo,

Pensar que faço parte dessa família muito me envaidece...
Lembro perfeitamente de vovó contando intermináveis casos e mencionava alguns desses nomes. Era a alegria dela relembrar a infância muito bem vivida junto aos pais, irmãs, tias...
Quantos fatos interessantes e curiosos eu e meus irmãos ouvimos atentos daquela que foi nossa querida "vovó".
O belo texto me trouxe de volta a presença carinhosa de uma pessoa pequenininha no tamanho e grande de coração! Valeu primo! Vc faz parte tbém....Grande abraço e bjs.

Guy Joseph disse...

Caro primo Hugo: aqui estive e postei um comentário falando da minha inveja pelo seu texto e sua memória privilegiada. O comentário não apareceu (acredito, por alguma inabilidade minha), o fato é que retorno para lhe render as merecidas loas. Dá gosto, ter parente e amigo, assim! Fico na ansiedade da publicação do seu "Recuerdos", desde já encomendadndo o meu exemplar.
Esta semana, você deve estar recebendo a Folha de Bananeiras, que já foi enviada. Dê um lida no conto "Fogo"e comente, depois.
Abraços
Guy Joseph

Celso Japiassu disse...

Amigo Hugo, li e reli o texto impecável. Memória extraordinária, um prazer de leitura.

Anônimo disse...

Sr. Hugo, adoro suas história, são memórias muito facinantes.
Quero ver a carta :)
Claudinha ;)