Na tarde da terça-feira, dia 2 do corrente, me chega pelo telefone a notícia da morte de um grande amigo. A informação me deixou arrasado. Grande choque. É, a fila continua a andar e dessa vez a indesejável me levou um amigo com o qual convivi por cerca de 35 anos. Foi um custo segurar o nó na garganta. Era uma dessas almas que, sem o menor interesse, estava sempre ao nosso lado, pronto para os maiores sacrifícios e favores. Com ele havia sempre um ombro amigo para nos consolar ou uma sombra frondosa para nos abrigar. Bem mais velho do que eu, o que me fazia respeitá-lo acima de todas as coisas. Morava perto, praticamente no meu jardim. Durante todo esse tempo nos tornamos cada vez mais próximos.
Tinha hábitos digamos, exóticos, esse meu amigo. Abrigava em seus domínios, um enorme bando de morcegos, uma colmeia com abelhas bastante ariscas, uma eventual coruja que dormia o dia inteiro e dava o ar da sua graça todas as noites, rasgando uma surrada mortalha. Algumas outras espécies de aves, incluindo bem-te-vis, gaviões e um casal de ruidosos e apaixonados papagaios.
Cuido que já deu para perceber que estou falando do amigo Sapotizeiro da Esquina da minha casa.
"É a casa que tem um pé de sapoti na calçada..."
Sob sua copa amiga e frondosa se reunia nas manhãs de domingo a "Sociedade Cultural Esquina do Pecado", cujos sócios, todos moradores do pedaço, se compraziam em tomar umas tantas cervejinhas e saborear os quitutes que as nossas prestimosas caras-metades nos preparavam como prêmio pela farrinha inocente na calçada de casa. Discutíamos política, literatura, MPB - ainda existia essa abstração - tudo devidamente escrito e historiado no "O Tabefe" semanário por nós editado onde todos os sócios tinham a faculdade e a obrigação de colaborar. Ao mesmo tempo em que (ninguém era besta nem nada) apreciávamos o incansável ir-e-vir das moçoilas em flôr e outras nem tanto em flor assim, a caminho do mar.
Toda esquina sempre teve fama de ponto de encontro. As "Catraias de Boa Viagem" certa manhã de carnaval, lideradas por um dos meus filhos e sua noiva, marcaram para se encontrar sob o seu aconchego. Bons tempos de folia momesca sem a violência reinante dos dias de hoje.
Como certas pessoas detestam as coisas da Mãe Natureza em especial as árvores. Alguns beócios, vizinhos de frente, inventaram certa feita de transformar parte da casa que também era de esquina, em um deplorável bar. Foi então que começaram os nossos dissabores. Cismaram que as abelhas iriam picar os seus clientes e chamaram os bombeiros a fim de acabarem a festa dos inocentes insetos. O pobre do bombeiro que primeiro subiu foi o também o primeiro a descer desembestado perseguido por uma nuvem escura de um princípio de enxame. Escapou por pouco. As abelhas foram então destilar toda a sua fúria em cima de um cachorrinho da rua que alheio a tudo passava pelo local. Debandada geral. A única pessoa que conseguia subir para apanhar frutos era um sujeito lá das bandas de Água Fria. Época da safra subia colhia e descia sem maiores embaraços. Absolutamente ileso.
Certa tarde nos aparece um caminhão basculante da prefeitura com "técnicos" para uma podação. Já sabíamos que tipo de trabalho iria ser feito e protestamos. Citamos as abelhas, a ecologia e no final nada de acordo de cavalheiros. Foi então que o coronel Fernando, meu vizinho e um dos sócios da "Esquina" foi sorrateiramente até sua casa e voltou ameaçador com uma pistola 45 em punho:
- "O primeiro que subir vai descer prontinho".
Foi o bastante para mais uma vez baterem em retirada. Evidente que a pistola do coronel estava tão aposentada quanto ele, descarregada. No entanto, antes da saída perpetraram um ato de pura maldade para com a árvore. O motorista do basculante arrancou, parou e covardemente deu ré batendo violentamente no sapotizeiro. Nossos protestos de nada valeram, a covardia se repetiu por mais três vezes. A árvore toda estremecia e a partir daquele episódio passou a ostentar uma enorme cicatriz fruto da brutalidade. Sairam berrando:
- "Vocês não perdem por esperar!"
Realmente não esperamos muito tempo. Um belo dia, ninguém sabe como, nem por artes de qual demônio, o sapotizeiro amanheceu ostentando criminosa poda. Trabalho mal feito perpetrado por ignorantes, gente que não entende nada do assunto. Qualquer pessoa logo poderia notar que o serviço fora executado com o criminoso propósito de matar a árvore. Mais cedo ou mais tarde ela iria tombar para o lado da via principal. Foi exatamente o que aconteceu na semana passada.
Era uma árvore centenária, sim. Para se ter idéia da importância e da idade do nosso sapotizeiro, cito as palavras de uma das nossas vizinhas, senhora à época já carregando o peso dos seus oitenta e tantos anos de idade, que ante a desolação da cena disse num quase soluço:
- "Eu tinha dezessete para dezoito anos, a minha família freqüentava esta região que era uma pequena granja de uns amigos do meu pai. Esse sapotizeiro já existia".
12 comentários:
Hugão: já não se fazem mais, nem gente, como você... belo texto, belos sentimentos, escritos e descritos por quem sabe, usar as palavras, junta-las em frases precisas e emocionantes. Meu amigo, primo e camarada, a leitura de seus escritos, está se tornando, cada vez mais, indispensável! Abraços. Guy Joseph
Eu lembro do sapotizeiro, pois passei inúmeras vezes, de ônibus, em frente dessa casa. A rua era e continua sendo um corredor de transportes coletivos. É isso mesmo ou estou enganado ?
Certíssimo, caro Julio.
Saudade dos sapotizeiro e de toda história da minha vida que ele testemunhou.
Que texto lindo, meu sogro! Infelizmente só restarão saudades, pois a rua não é mais a mesma, a casa está diferente e o sapotizeiro se foi. Essa tal de modernidade urbanística vai levando as boas lembranças embora, não é? Beijos...
Na foto dá para distinguir a grande pessoa de Valdez, trajando bermuda branca e camisa preta. Depois que Valdez mudou-se de Olinda para João Pessoa, só tenho visto em fotografia neste blog. Foi um excelente vizinho, ótima criatura.
Sr. Hugo, dona Mary sabe que o Sr. via as moçoilas da esquina do pecado , kkkkkk.
Esse saputizeiro era realmente incrível adora a sombra que ele fazia nos dias de sol escaldante que só Recife tem, mas em fim, espero que um dia cresça outro igualzinho a ele no lugar. =D
Ass: Claudinha ;)
O sapotizeiro foi tudo isso e muito mais, até na hora de seu tombamento não feriu ninguém.
No carro grande somente o motorista que o conduzia, saiu ileso e no veículo menor mesmo com os quatro ocupantes o arbusto que caiu sobre ele não amassou nem o carro.
Apesar dessa via ser um corredor de transportes coletivos como bem falou o leitor Julio Monteiro, na hora que caiu não passou nem ônibus nem um transeunte sequer no local.
É a rua, é a árvore, são os moradores e a felicidade de conviver em harmonia durante tanto tempo com o sapotizeiro amigo.
Hugo
Meus sentimentos... Sei exatamente o que voce está passando com o agravante de que o sapotizeiro no meu caso era no quintal. Quando alugamos a casa, depois do falecimento do meu pai, descobrimos que o inquilino resolveu abatê-lo "para ter mais espaço". O aluguel não foi renovado...
Aqui é a mesma filhadaputice. Um fidaputa qualquer implica com a árvore que tá fazendo sombra no jardim, diz que ela enche sua casa de insetos, chama a Parque e Jardins - órgão da Prefeitura encarregado de erradicar o verde - solta uma grana e eles perpetram uma poda que em poucas semanas mata a árvore. Aí vem outra corja, serra e leva. No Catete eu via isso acontecer todos os dias. Em Copa já quase não há o que cortar. E a cidade vai ficando mais inóspita, mais feia e mais quente, exatamente com o o diabo, pai deles, gosta.
Carrim
Hugo,
Dá para imaginar a tristeza de todos... Quantas histórias! Quantas lembranças!...
O texto como sempre emocionante, transmitindo toda a beleza que só um coração sensível é capaz de dizer. Bela homenagem! Parabéns!... Bjs. Márcia
Lindo , adorei como contou a história do sapotiseiro. parabéns HUGÃO!!!!
Penha
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