quarta-feira, fevereiro 27, 2013

O último bolero

Palmarí de Lucena


            Imperceptíveis na balbúrdia do salão de festas, os primeiros acordes de um antigo bolero. Explorando a cadência do ritmo, casal idoso ensaiando seus primeiros passos. Movimentos simples, em perfeita sincronia com o som. Força do hábito, alguém comentou, eram companheiros de vida e de dança. Chegaram ao centro do dancing subitamente, os demais convidados permaneceram nas suas mesas ou nas bordas do quadrilátero. Plateia observando, mesmerizada com a beleza sútil dos movimentos, um pas-de-deux, sem as pegadas ou piruetas clássicas.

Corpo arqueado, olhos semicerrados, toque de sensualidade espremido na sua pequena boca, a bailarina se movia,  etérea, espelhando os passos do seu par. Ares de  bon vivant, sorriso apaixonado, quase tímido, o homem comandava. Empurrando, puxando, girando ou travando sua parceira, com o cuidado,  a beleza e a ternura de um acalanto. Dançaram por toda a noite.

            Evento inusitado. Palestra sobre câncer de próstata, seguida por uma degustação de vinho do Rio São Francisco e um jantar dançante. Perdidos no ecletismo da ocasião, muitos optaram pela conversa leve e socialização nas suas mesas. Festa começando repentinamente, música maestro!  Distraídos ou engajados, poucos notaram a presença dos nossos Fred e Ginger. Outro bolero, tomaram o salão imediatamente. Como movidos pela força centrífuga dos seus giros, outros pares surgiram.

            Corredor do hospital, pessoas movendo silenciosamente, rostos preocupados, outros rezavam discretamente. Reconhecemos imediatamente o casal de mãos dadas, chorando  baixinho, os bailarinos das festas do clube do vinho.  Envelhecidos. Dor, tristeza e fadiga, os olhos vermelhos diziam tudo. Sofrendo de um mal incurável, sua única filha parecia viver em tempo emprestado. Morte esperando acontecer, estava tudo nas mãos de Deus.

            Morte da nossa bailarina anunciada no jornal. Elegância, leveza e paixão a seguiram pela eternidade, enfrentando as alegrias e os pesares de um salão distante. Dança bailarina, dance sempre seu último bolero...  

Palmarí de Lucena é membro da União Brasileira de Escritores 
http://palmarinaestrada.blogspot.com.br/

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