domingo, dezembro 23, 2012

O Maestro Joaquim Pereira

Hugo Caldas

Quando completei sete anos de idade a minha avó, Dondinha, decidiu que eu deveria estudar piano. Em casa havia um desses instrumentos e ninguém tocava, além dela e da minha Tia Aurinha. Então ela acertou com o professor Joaquim Pereira para me dar as primeiras aulas, os rudimentos, leitura e solfejos. À minha Tia Aurinha aulas de reforço mais adiantadas. Morávamos na Rua Capitão José Pessoa, e íamos a pé para a casa do Maestro que ficava mais ou menos em frente ao cinema Jaguaribe.

Íamos eu e a minha Tia, na parte da tarde. Lembro da casa simples, porém tudo no lugar certo. Um piano vertical imperava num canto da sala. Era nele que o maestro nos repassava todo o seu virtuosismo. Via de regra, antes da aula ele, uma simpatia em pessoa, tocava por uns instantes, eu ficava embevecido ao ouvir a sua música. Ele tocava e escrevia em uma pauta, a lápis com uma borracha na ponta. Esta cena ficou gravada na minha retina e se repetiria ao longo dos anos. Conheço uma foto de Heitor Villa Lobos no mesmo gesto. Testemunhei o nascimento de muita coisa. Ele sonhava uma Sinfonia. Dentre todas, uma música em especial ficou impregnada na minha memória. A música que vivia a passear a minha mente. "Prece Sonora". Uma belíssima melodia. Parei de escrever por diversas vezes. A emoção foi mais forte. Toda hora batia um branco constrangedor.

Sempre uso nas minhas aulas, uma cena específica de um filme qualquer em inglês, sem legendas, para trabalho com os meus alunos. O meu favorito é "Mr. Holland's Opus" que tem o título de "Adorável Professor" em português. É um drama biográfico e conta a história de um professor de música adorado pelos seus alunos que também sonhava uma sinfonia. Até agora nunca havia me dado conta da coincidência das duas histórias, dos dois professores. Falando em filmes... certa noite assisti no Cine Jaguaribe "À Noite Sonhamos"... história romanceada da vida e obra de Frederic Chopin. Dia seguinte antes da aula eu contei o filme todinho ao maestro que escutou com a maior atenção e paciência. No meu arroubo infantil não me contive e terminei por repetir um comentário da minha avó.

- "Chopin foi um artista virtuoso". Ao que o Maestro retrucou:

- Para ser um pianista virtuoso há que se estudar muito, meu rapaz. Para tornar-se um pianista virtuoso tem que estudar com perseverança "O Pianista Virtuoso". Com o singelo trocadilho, referia-se o Maestro Joaquim Pereira ao livro de exercícios de Hanon e Henry Lemoine que foi meu companheiro inseparável durante um certo tempo.

Os anos se passaram.

Certa vez o Teatro Santa Roza achou de patrocinar um Festival de Bossa Nova. Eu já morava em Recife, estava na cidade revendo amigos quando, suprema irresponsabilidade, encrenquei com um pandeiro. Onde já se viu? Para mim, Bossa Nova era um banquinho e um violão. Uma das filhas do Maestro cantava no indigitado festival. Eu havia tomado umas tantas caebas e por conta disso achei de invadir o palco me apossando do microfone e ensaiando um discurso de protesto. A direção do teatro mandou tirar-me do palco e após negociações resolvi descer e fui até o jardim curtir um pouco o pileque e a palhaçada que havia cometido. Nesse exato momento o maestro vinha se encaminhando para mim calmo, mas visivelmente contrariado.

- "Hugo, a minha filha está cantando no festival, como é que você me faz uma dessas?" Respondi de bate-pronto:

- A culpa é sua, maestro. Quem mandou me ensinar as sete notas?

Até hoje me arrependo. Sei que o magoei. Tem nada não, maestro, quando eu chegar lá em cima nós vamos nos encontrar e então acertaremos essas contas. E vamos rir muito. Evidentemente nos intervalos dos ensaios do Coro das Onze Mil Virgens.

Não lembro a razão de ter parado com as aulas. Talvez porque o maestro fora transferido. Com o passar dos anos ficou evidente que eu não me tornei um grande pianista. Muito menos um pianista. Virtuoso ou não. Mas tudo o que o maestro Joaquim Pereira me ensinou está muito bem guardado dentro de mim.

Até hoje ainda toco os exercícios do "Pianista Virtuoso."

3 comentários:

Anônimo disse...

A autobiografia está ótima. Vá em frente, Hugo.

W. J. Solha

Maria Lúcia disse...

Calma, Waldemar. Voce ainda não viu muita coisa. O velho escriba vai nos surpreender em 2013. Aguardemos.

Arael Costa disse...

Aqui o calor tá da gota serena!
Fui dos que conheceram, talvez um pouco mais amiude, o maestro Ten. Joaquim Pereira, que era amigo de meu pai.
Lembro bem dele não só "puxando" a banda do 15º RI, como participando de apresentações na Rádio Tabajara, que meu pai dirigiu por um certo tempo, e da orquestra sinfônica, ao lado de Gazzi de Sá, Luzia e Augusto Simões e outros menos votados.
Mais adiante, quando ele já se reformara como capitão e mestre da banda da Escola Militar, foi morar no Jardim Miramar, em casa que existe até hoje, quando me permiti dar uns "amassos" em uma de suas filhas (mais velha, se não me engano), cujo nome esqueci (parece-me que Josélia) e vi seu sofrimento com o filho Josildo, bom cantor que infelizmente tornou-se alcoolatra.
Mas, isto é a vida...