Como gerente do aeroporto da NAB, Renato usufruía das vantagens e obrigações inerentes ao cargo. Em sendo difícil colocar na rua o "Bloco do Eu Sozinho", ele sempre dava um jeito de elaborar o plano de vôo, pesar as bagagens, despachar os passageiros, e até levá-los ao pátio para o embarque. Um tirinete de dois vôos por dia, três vezes na semana, era um conforto inimaginável em comparação com o nosso serviço pesado. Além disso, e aí entravam as vantagens, ele tinha um bom relacionamento junto às tripulações, em especial, um certo comandante Tomás, useiro e vezeiro em carregar caronas nos seus aviões por simplesmente detestar ver espaços vazios dentro da sua aeronave.
Sempre que o comandante Tomás aparecia, e a minha folga recaia nos finais de semana, Renato astuciosamente mexia os pauzinhos e me conseguia um lugar de "tripulante extra" nos vôos que seguiam para o norte. Privilégio para poucos voar DC-3 daqui até o Aeroporto de Santa Rita, em pé entre o comandante e o co-piloto, me equilibrando como podia. Nada é perfeito, pois quando você menos esperava, quinze minutos, já estávamos em pleno procedimento de descida. A viagem demorava mais do aeroporto até a cidade do que do Recife para João Pessoa.
Deu-se então que Renato foi convidado, após o fechamento da NAB, a trabalhar na BOAC, empresa britânica que à época operava no Recife. Houve um tempo em que o aeroporto ficou interditado para aviões de grande porte e a empresa mudou-se temporariamente para Natal. E lá se foi o Renato trabalhar fora da base e receber em dólares. Fez um bom dinheiro. Na volta comprou uns terrenos em Piedade, e os nossos caminhos se separaram quando deixei a Panair e fui trabalhar para o US Army.
O tempo foi passando, o destino nos tornou professores e fomos nos reencontrar em um curso de inglês, muito em voga no Recife, nos primeiros anos da década de sessenta. Não era nada fácil ser contratado como professor. Necessário passar por rigoroso teste de seleção e curso de treinamento para enfim, de posse do certificado de aptidão vestirmos um distinto guarda-pó antes de sermos jogados às feras. O guarda-pó nos protegia do giz e nos dava um ar chique e elegante.
E, como no sambinha fuleco, a vida nos levava, numa rotina de aulas e mais aulas. Eu vivia eternamente assuntando, perguntando sobre os segredos da língua inglesa. E de tanto perguntar, ele resolveu me dar aulas gratuitas de gramática. Logo a novidade se espalhou pela escola e outros colegas também se interessaram. O sucesso de Renato chegou aos ouvidos da diretoria que não gostou nada da inovação e o chamou às falas de uma maneira que ele não gostou. Pediu para sair. Não esperou o bilhete azul. Eu nunca vira o meu amigo Renato contestar o que fosse, discutir, ou querer impor a sua opinião, dizia apenas: "não concordo, colega"!
Foi embora e alugou uma sala em pequeno prédio nas redondezas do Teatro do Parque e ali fundou a sua própria escola com o pomposo nome de Sociedade Cultural da Língua Inglesa.
Pouco tempo depois, o curso que aparentava ser uma fortaleza fechou, por motivos que não cabem em absoluto neste relato e nos deixou, professores e funcionários, a ver navios. Tentei continuar com a minha vida, me aventurei a ser vendedor de enciclopédias. Fracasso total. Um belo dia fui dar com os costados na escola do Renato que me recebeu de braços abertos.
Durante uns dois ou três meses trabalhamos juntos. Logo, por um desses desígnios do destino me puseram nas mãos uma escola que estava para entrar em atividade aqui no Recife. De imediato o chamei para assumirmos juntos, mas ele foi decisivo, não topou. Até hoje não entendi o motivo da recusa. Tempos depois, o contratei para preparar a mim e a mais três professores da escola para os exames do Cambridge Institute e para a University of Michigan. Uma das suas frases de incentivo no meio das aulas era: "Patience, that's my motto"! Fomos alunos interessados e pacientes. Passamos os quatro. Com louvor.
Renato gostava de viver intensamente. Sabia dar valor as coisas boas da vida. Gostava de comer bem e apreciava uma boa bebida. Tudo parecia caminhar às mil maravilhas. Foi então que o destino que há muito o espreitava pelas esquinas, o pegou de mau jeito.
Já nessa época ele vivia o seu grande amor com uma bela jovem de nome Dina que se iniciava nos meandros do ensino. Dina se queixara de dores no joelho, alguma coisa não andava bem. O médico diagnosticou um problema de menisco. Coisa boba que todo jogador de futebol cura num instante. Ela preferiu operar com anestesia geral. Fez todos os exames possíveis e imagináveis. Tudo certo.
Dia da operação. Dina sofre um choque anafilático, em conseqüência da anestesia geral. Foi um custo para a equipe médica trazê-la de volta. Passaram-se mais de três minutos sem oxigenação no cérebro. Ela nunca mais voltou. Foi aos poucos se transformando em um vegetal. Não agüentei mais e ao cabo de uns poucos meses deixei de ir visitá-la. Ele entendeu.
Cerca de uns dois anos depois recebo seu telefonema: "colega estou lhe avisando que a Dina morreu novamente".
Daí para frente as coisas não andaram nada bem para o meu amigo. Começou a beber muito e sempre. O tempo foi passando para mim e para ele. Nos dispersamos mais uma vez. Quando enfim o reencontrei parecia estar bem, morando em uma das suas casas em Piedade. Por essa época o freqüentava nos fins de semana. Levava comigo os meus filhos pequenos para se entrosarem com a filharada dele. Teve de casamento anterior, um total de sete filhos. Seis moças e um rapaz. Mais um outro que ele adotou, filho da sua última mulher.
Devo salientar que à época eu atravessava uma fase bastante difícil na minha vida. Recém-desquitado. Por incrível que possa parecer, alguns amigos/as não viram com bons olhos a minha nova situação e passaram a me evitar. Fui desconvidado inúmeras vezes para uma ou outra recepção. Renato foi um dos poucos que continuou com a mesma amizade. As portas da sua casa sempre estavam abertas para mim.
Certo dia soube que ele estava morando com uma nova mulher. Suspirei aliviado. Quem sabe ele entra nos eixos novamente! Mas as coisas pareciam piorar à medida que os anos lhe pesavam nos ombros. Por várias vezes estive em sua casa e não o encontrei. Vivia pelos bares. Tentei trazê-lo para casa, ele se indispôs e passou-me uma bela descompostura. Tirei por menos. Na semana seguinte a mesma coisa. A mesma descompostura. Aquele não era o meu amigo. Não esperei pela terceira. Deixei-o onde estava e nunca mais o vi. Me arrependo até hoje. Devia ter tido a paciência necessária.
Soube, depois por amigos, que ele havia falecido. Desceu um suor frio pelas minhas costas. Havia perdido o meu amigo. A inexorável constatação do "nunca mais ver"!
Tenho absoluta consciência de que sempre devi muito do que aprendi nesta vida a ele. Houve um tempo em que escrevi um livreto de estruturas inglesas. Achei de dedicar o livrinho a ele. Grande coisa. Ele quem me ensinou a maioria daquelas estruturas.
Colega Renato, você continua a fazer falta aqui embaixo. Quando eu chegar por aí nós precisamos colocar as conversas em dia. "Patience, that's my motto". Até breve, 'see you then!
6 comentários:
Mais um grande personagem seu, Hugo. Seu livro de memórias está praticamente pronto.
W. J. Solha
Que malassombrado foi dessa vez? Ah! Foi bom lembrar do Renato...
Hugo,
Como é agradável relembrar fatos assim....O coração fica apertadinho.....Abraços. Márcia
Caro Hugo...Trabalhei com Renato Dantas de 1957 a 1963 na Panair do brasil. Era um colega exemplar e excelente profissional......boas lembranças....Zeneudo Luna
Olá, Hugo!
Poxa, que memória! Ficou muito bonita a sua homenagem. Papai deve ter gostado. Parabéns!
Assim que aliviar um pouco o sufoco do fechamento do semestre, notas, prova final, etc, irei fazer uma visita a você e Mary, ligarei antes de ir.
Abraços,
Norma
Sr. Hugo
embora não o conheça , lendo o seu relato sobre a amizado com o Renato, vemos o quanto nossa vida é pequena e o quanto a preservação de amizades é algo extremamente necessário, parabens pelo relato, parabens tambem pelas inumeras outras amizades que o sr. deve conservar até hoje.
feliz 2013
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