quinta-feira, dezembro 20, 2012

Niemeyer, o franciscano estalinista

Fritz Utzeri

Esta entrevista foi feita com Oscar Niemeyer em 2001, quando ele tinha 93 anos, foi uma longa manhã de conversa em seu escritório em Copacabana, na qual falamos até de arquitetura. Niemeyer foi uma pessoa interessantíssima, se tivesse nascido florentino há 500 anos seria um expoente do Renascimento. Seu interesse vai da cosmologia até a religião, o que é surpreendente em um homem que se dizia comunista, ateu e, como se não bastasse, fervoroso admirador de Joseph Stalin.

Mas esse estalinista teve sempre algo de franciscano, generoso, pronto para ajudar os amigos e revoltado com a desigualdade social que foi descobrindo aos poucos. Sua história faz parte de nossa história, uma historia que começou com figuras como Gustavo Capanema, Juscelino e inúmeras outras que construíram a nossa identidade moderna.

Niemeyer foi o poeta da curva, do concreto moldado com traços voluptuosos de mulher, quebrando todos os parâmetros que aprendeu de Le Corbusier. Não gostava da Bauhaus e não escondia suas antipatias. Ele, como bom estalinista, definiu Gorbachov como um “merda”. Na parte mais difícil abordamos a morte e mais uma vez surgiram incerteza e algum desejo de espiritualidade.

A entrevista, muito expurgada e modificada, pois ele pediu para revisa-la (coisa que não gosto de fazer, mas foi compromisso assumido), saiu no JB, mas a versão que publico agora é a original, que tenho gravada em fita.

A entrevista

Fritz - O senhor é um dos poucos brasileiros reconhecido internacionalmente, se chegarmos a Paris, ou em boa parte do mundo, pararmos uma pessoa e citarmos o seu nome, muitos vão identifica-lo e reconhecer a sua obra. Como o senhor vê isso?

Niemeyer- Eu só acho da minha parte que há sempre um exagero. Eu sou um homem como outro qualquer, trabalhei, tive sorte, tive ajudas, tive oportunidades que cumpri bem. É só isso. Trabalhei muito, passei a vida debruçado na prancheta. Não me arrependo porque guardei sempre um tempo para coisas mais importantes, para estudar, para ler um pouco, para viver com os amigos, para achar que a vida é mais importante que a arquitetura.

Fritz- A vida é mais importante que a arquitetura?

Niemeyer- É.

Fritz - Essa é uma bela reflexão

Niemeyer- De modo que, com a idade eu procuro me adaptar. Eu sou pessimista. Eu vejo o ser humano assim, sem perspectivas. A gente tem que viver.  Então a gente tem que se adaptar, procurando viver tranquilo, fazendo o que gosta, defendendo o programa de liberdade, da solidariedade, sem sentimentos contra os outros homens.

Acho que todo mundo tem o seu lado bom, acredito na genética, que as pessoas têm defeitos que às vezes vieram de longe. De modo que isso me permite lidar com as pessoas tranquilamente.

Tenho a minha profissão de arquiteto, faço a minha arquitetura, faço como eu gosto. Não penso que é uma arquitetura ideal. Eu não acredito na arquitetura ideal, seria monotonia, seria repetição. Então, procuro manter o meu caminho sem influências. Eu acredito na intuição. E assim trabalho, não critico os colegas, e vou muito bem.

Fritz- Não há uma certa contradição, o senhor que é comunista, dizer que não vê uma perspectiva para o mundo?

Niemeyer- O negócio é a natureza mesmo, a coisa nasce, morre, desaparece e a gente faz o resto.

Fritz - cortando- Sim, mas nós como espécie obviamente vamos desaparecer um dia. 

Niemayer- Eu fui criado numa família católica, tinha missa em casa, os vizinhos iam à missa. Eu saía para a vida, achei que ela era injusta demais e fui caminhando e entrei para o Partido. As melhores pessoas que eu conheci, muitas delas, eram do partido, pensavam grande, queriam ajudar os outros, não tinham ambição, era gente muito boa. De modo que é assim.

Fritz- Então quando o senhor está falando na falta de perspectiva, o senhor está indo muito longe nessa construção.

Niemeyer- Eu falo para o ser humano

Fritz- O ser humano, exatamente.

Niemeyer- O ser humano nasce na loteria genética. É branco, preto, inteligente, essas coisas e depois que é entregue, a vida leva o sujeito para onde quiser.

Fritz- Ele ou a vida?

Niemeyer - Outro dia contei no meu livro um fato de que eu já tinha esquecido e que mostra como até uma coisa jocosa modifica a vida da gente. Eu trabalhava com o Carlos Leão, um colega meu, que tinha criado uma etapa, estava trabalhando para um programa de uma universidade do Rio de Janeiro.

Chamou-me e a outros colegas. E para mim disse, olha Oscar- eu era muito jovem, estava começando - você pode iniciar os desenhos fazendo um hospital. Mas o Souza Campos era o chefe dele, ele disse que o Souza Campos, era muito duro, ele achava que todo hospital tem que ter a forma de um Y.

De modo que se você disser que é um hospital ele vai se zangar porque você não vai fazer da forma de um Y.

Está bem, e fiquei desenhando.

Um dia apareceu o Souza Campos. Aproximou-se da mesa e disse o que é isso? Eu pensei, não dá para mentir. É um hospital. Ele disse que não havia hospital daquela forma. Eu briguei com ele, nós discutimos e pedi demissão. Então ia perder o emprego. Mas o Capanema (esse serviço era ligado ao Ministério de Educação) me chamou para o gabinete dele. Eu fiquei lá ajudando ele no que podia. E ficamos muito amigos, ele, Drummond e vários outros. De modo que quando o Juscelino quis fazer a Pampulha, ele me indicou.

Fritz - Sei

Niemeyer- Então, se não tivesse tido esse atrito com o Souza Campos isso não teria acontecido.

Fritz- Não teria acontecido, foi algo aleatório.

Niemeyer- Foi. Eu não teria conhecido Capanema, não teria ficado amigo dele. Ele não teria me levado para Benedito Valadares, depois para o Juscelino.  E eu não teria feito a Pampulha.

De modo que conto isso só para mostrar que um pequeno incidente que podia ser ruim para mim, foi bom. A vida é cheia dessas coisas

Fritz- A vida é feita dessas coisas, a gente dobra a esquerda em lugar de ir para a direita e é atropelado e morre.

Niemeyer- Então a gente caminha na vida sujeito a coisas imprevisíveis, boas ou ruins.

Fritz- É, eu costumo dizer isso porque com o meu sogro aconteceu uma coisa nesse nível. Morreu porque ele saiu e foi comprar uma fruta num supermercado e precisava virar à esquerda ao sair de casa e se lembrou de que havia uma banquinha de uma moça que vendia à direita. Foi á direita e um ônibus furou o sinal e o pegou. Quer dizer, foi uma decisão aleatória, se tomasse naquele momento o caminho original seria diferente.

Voltando à arquitetura, por incrível que pareça a sua primeira obra acabou sendo de certa forma um hospital, não é? A Obra do Berço ali na Lagoa.

Niemeyer- É. Era uma prima da minha família que dirigia o hospital. Então me chamou para fazer o projeto. Eu fiz, não cobrei nada. Eu estava saindo da escola. É um hospital pequeno, mas realmente foi a primeira coisa que eu fiz. Mas obra de arquitetura mesmo que eu fiz foi a Pampulha.

Fritz- É em Pampulha que o senhor começa a ver...

Niemeyer- Na Pampulha eu tinha tido contato, tinha trabalhado com Le Corbusier. Mas já tinha uma ideia do que eu queria fazer. Eu queria fazer uma arquitetura mais livre, baseada na curva porque quando nós temos um espaço grande para vencer, a curva e o concreto são a solução natural.

Então, achava que essa arquitetura mais fria do Bauhaus que eu achava uma merda, pois para mim as coisas se aguentariam pela imaginação do arquiteto. O concreto armado criou assim um mundo novo de formas para a arquitetura. E era preciso utilizar

Assim Pampulha foi o meu primeiro projeto e nele segui o mesmo espírito dos anos 70 até hoje.

Fritz- Quer dizer, foi o seu primeiro projeto público?

Niemayer- O meu primeiro projeto maior onde pude fazer a minha arquitetura.

Eu faço a minha arquitetura e acho que cada arquiteto deve ter que ter a sua. Acho que a gente deve aceitar na vida, na arquitetura, em tudo o importante é a liberdade. Sem liberdade é coisa contida, não tem interesse.

Fritz- Como é que o senhor vê a arquitetura hoje aqui no Brasil?

Niemeyer- Eu não critico colega

Fritz- Não é criticar colegas especificamente. É a tendência das coisas. Como é que o senhor se sente? O senhor já foi a Barra da Tijuca ultimamente?

Niemeyer- Já.

Fritz- Como é que o senhor se sentiu?

Niemeyer- Eu não gosto da Barra. A Barra parece Miami. É subúrbio de Miami. E o pior é que puseram lá até uma estátua da Liberdade, uma cópia. Isso é desagradável porque quando vem um sujeito de fora quer saber o que é que tem de novo no Rio, a gente tem que mostrar a Barra.

Mas isso é assim mesmo. A arquitetura. As cidades cresceram assim sem controle e o Rio também. De modo que está chegando um ponto em que a densidade é excessiva demais, que a circulação começa a degradar, que os prédios começam a crescer pelo poder imobiliário, tem tudo isso.

É inevitável. Esta é uma coisa já conhecida, então a gente não sabe por que é que não é contida e continua a mesma coisa.  As cidades crescem quando deviam multiplicar e não expandir sem controle

Fritz- Mas isso é uma característica, digamos das cidades brasileiras, um modelo norte-americano.

Niemeyer- Aconteceu.

Fritz- Na Europa, o núcleo da cidade é reconhecível, quer dizer, um camarada que vivesse em Paris ou em Roma, no século passado, (século 19) reconheceria a cidade, ou até digamos alguém que estivesse em Florença no Renascimento poderia, hoje, identificar a cidade.

No Rio, as transformações são brutais, a gente olha e não reconhece sequer os locais de sua adolescência.

Niemeyer- Em Paris, por exemplo, eles souberam preservar, mantiveram os prédios com seis pavimentos, e aqueles janelões que têm.

Quando eles tiveram medo que Paris ficasse feito um museu diante da arquitetura atual, uma arquitetura maior e tal e coisa, eles a levaram para La Défense. Em La Défense há prédios altos, como espaços horizontais como empresas exigem.

Mas foram espertos, souberam preservar.

Fritz- Mas aqui no Rio, há lugares como a Rio Branco, onde nós tivemos cinco gerações de prédios demolidos e reconstruídos em um século.

Niemeyer- Mas você tem que considerar que, quando a arquitetura moderna chegou à Itália ela foi contida. A Itália é linda, é beleza inebriante. Mas no Rio, na Avenida Rio Branco, por exemplo, havia prédios, quatro ou cinco prédios antigos e muitos espaços. Então não havia nada que obrigasse o arquiteto a procurar encontrar uma unidade. Foi um pouquinho diferente.

Fritz- Mas e a demolição, por exemplo, daquilo que o Pereira Passos fez. Que era um pastiche, mas era um momento da História da Cidade, aqueles prédios sumiram.

Fritz- E que hoje é um canyon.

Niemeyer- É, os prédios e a cidade cresceram mal.

Fritz- No caso do Rio, por exemplo, há uma coisa estranha porque a cidade cresce para a Barra e esvazia o seu Centro. Existe toda uma área como o Porto, Cidade Nova e São Cristóvão com infraestrutura e abandonada.

Niemeyer- No Rio há duas cidades. A cidade dos ricos e a cidade dos pobres. É a luta da miséria contra o poder.

Fritz - Como seria o Rio no seu imaginário, se o senhor tivesse o poder de transformá-lo?

Niemeyer- A ideia seria preservar melhor a natureza que existe. A natureza do Rio é tão bonita, tão imponente que ainda não conseguiram destruir. O Rio é sempre uma cidade fantástica. Por isso é que eu gosto do Rio de Janeiro. Sou daqui, sou da praia. Do mar. Nasci tomando banho de mar. Nasci numa cidade de mar e montanhas. Uma cidade fantástica.

Fritz- E voltando um pouco à perspectiva do homem, o senhor está vendo um fim de século que parece dominado pelo pensamento único, que começa a ser questionado. Pensamento nascido do fracasso do socialismo real. Como é que o senhor se coloca diante disso? Eu sei que o senhor é tido como um dos três últimos comunistas da Terra. Isso é piada. Seriam o Fidel Castro, o senhor e Kim Jong-il.

Como o senhor vê futuro? Como é que o senhor vê a coisa hoje? Por exemplo, vamos pegar dados de Porto Alegre, o que está acontecendo ali? (Foro Social em oposição ao Foro de Davos)

Niemeyer- Acho Porto Alegre importante. E achei formidável quando vi aquela fotografia de Stédile invadindo aquela fábrica. Acho que o Movimento sem Terra é o mais importante que nós temos hoje, no Brasil.

O negócio é a miséria, que é a causa disso tudo. Se não houvesse a miséria não haveria crime, não haveria essa luta assim, quase uma guerra interna. O sujeito andar na rua já preocupado é uma situação muito grave.

Mais grave ainda é o problema da Amazônia que está ameaçada é lógico. Você vê que o Bush no início da campanha chegou a dizer que uma solução seria trocar a nossa dívida externa pela Amazônia.

Como é que um calhorda desse tem a coragem de dizer uma coisa dessas? Então, a Amazônia está exigindo a união de todos os brasileiros.  É a nossa soberania que está em jogo. E não é uma fantasia, todo mundo sabe que eles estão lá atuando, que estão ameaçando a Amazônia.

Quando os guerrilheiros da Colômbia estiveram aqui no meu escritório eu fiz o estandarte deles. Os norte-americanos vão começar uma luta internacional contra a Colômbia como base para o domínio da Amazônia e querem com isso recolonizar a América Latina.

Fritz- É e nós temos outro negócio que também vai ser muito cobiçado nos próximos anos, que tem na Amazônia, água.

Niemeyer- A América Latina tem que se unir. Por isso quando fiz o memorial da América Latina fiz com muito empenho e com a ideia de criar ali um núcleo e aproximar os povos da América Latina, trocar experiência, convocar gente para discutir os nossos problemas e soluções.

Isso é importante. Lógico, não podemos ficar pensando em nós próprios. Temos que procurar os povos. Ver que há miséria, temos que protestar, ver que há degradação moral, temos que protestar.

E a degradação moral cresceu muito. O governo instituiu uma obra qualquer para cuidar disso, mas é o povo que tem que se mexer. Acho que é grave a situação do Brasil.

Não sei se é a sua impressão, mas esse movimento de Porto Alegre, por exemplo, nos dá uma sensação que tem muita semelhança com os movimentos sociais do fim do século XIX e começo do século XX, quando ainda tinha de tudo, anarquistas, libertários, comunistas, um monte de gente que estava buscando alguma coisa, uma saída.

Depois a miséria, a desigualdade e o desinteresse pelas coisas aumentaram. Falam em globalização e na África estão morrendo crianças de fome todos os dias. É um mundo injusto, não é?

Fritz- Eu não sei como isso acontece num mundo quando hoje a gente consegue se comunicar em segundos. Antigamente poderia morrer a África inteira e o senhor morar aqui e não ficar sabendo.

Niemeyer- É.

Fritz- Infelizmente, no passado. Hoje não. Hoje nós vivemos uma época da aldeia global mesmo. Nós estamos sabendo de 10 mil coisas ao mesmo tempo.

Niemeyer – É o momento em que os que estão descontentes podem se fazer ouvir, é lógico. É por isso que digo, a gente não pode ficar omisso, não pode ficar cuidando de si próprio, tem que participar, tem que dizer as coisas.

Digo sempre quando falo com estudantes, olha quando a vida se degrada e a esperança sai do coração dos homens, só a revolução. Não é uma revolução para hoje ou para amanhã, mas está no script da juventude que o mundo deve melhorar.

Fritz- É curioso, porque o senhor sendo comunista deveria ser materialista e, no entanto há uma espiritualidade muito grande no que o senhor fala. Há uma contradição nisso? É possível ser materialista dialético e espiritual ao mesmo tempo?

Niemeyer- Ah, sim, tranquilo. Na minha idade, principalmente, você tem que defender a luta de classe, esquecer as coisas, sempre pronto para lutar se for preciso. Eu encontro com os amigos, eles me ajudam a viver, batem papo, vem gente mais jovem.

Mas quando não tem solução? Aí é ruim, a realidade está presente, o ser humano não tem condição.

Fritz- O ser humano, o homem individual, não a espécie?

Niemeyer- Ah, a gente começa a pensar no passado, vêm as lembranças todas. A gente sempre se sente pequenino. Você sabe, há pouco tempo nós organizamos um curso aqui no escritório sobre Cosmos, assunto que não tem nenhuma ligação com Arquitetura embora os estudos se entrelacem e tem a vantagem de nós sentirmos que somos pequeninos diante desse Universo.

Fritz- Mas é a poeira das estrelas, o senhor nasceu dela.

Niemeyer- Por outro lado, a gente se espanta com a inteligência do homem, com o improviso, não é?

Fritz- E por outro lado, o senhor em algum momento foi parte daquela pequena bolinha que explodiu, fez parte de uma estrela, faz parte, hoje de Oscar Niemeyer e provavelmente amanhã fará parte de uma árvore, a matéria vai se reciclando, vai se processando. Lavoisier já dizia que na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma.

Então há essa transformação. Não estou falando em reencarnação e nada disso. Apenas no que nós somos, independente disso, com essa inteligência, o senhor permanece como uma pessoa que em certo grau é imortal.  Enquanto o pessoal puder olhar para a sua obra, o senhor estará lá.

Niemeyer- Mas depois desaparece.

Fritz- O senhor?

Niemeyer - Depois desaparece. Lembro-me quando Lacan estava morrendo ele disse, vou desaparecer.

Fritz- O senhor acha?

Niemeyer- Ele não disse vou morrer. Não. Ele disse vou desaparecer.

Fritz- Pois é, mas eu acho que quem morre não desaparece. O que o senhor sente, não sei se o senhor gosta de clássicos, o que o senhor sente quando ouve Mozart, por exemplo?  É como se ele estivesse conversando com a gente. Abra um livro de Vitor Hugo, ele está ali, conversando com a gente.

Niemeyer- Eu gosto disso.

Fritz- Mas eles estão mortos.

Niemeyer- Eu gosto de ouvir música. A música me enleva sempre, quando a escuto, quando estou cansado, ponho uma música com orquestra, tipicamente brasileira das antigas que eu gosto de ouvir. Eu sou muito sensível a essas coisas

Fritz- Pois é, quando o senhor lê um livro que lhe agrade também o senhor conversa com o autor do livro ou não?

Niemeyer- Ah, bom, lógico.

Fritz- Pois é, na maioria das vezes ele está morto.

Niemeyer- Ah, prefiro ler um livro, um romance do que coisas da arquitetura. Mas há a intuição. O sujeito que se habitua a ler, um arquiteto, por exemplo, encontra nos livros mais diferentes sempre alguma relação com a arquitetura.

Eu estava lendo o livro de Malraux, ele dizendo que na minha arte, o espanto, a surpresa é o principal. É a característica principal da arte.  Está junto. Quando eu faço um prédio, se você for a Brasília, por exemplo, você pode gostar ou não dos palácios, mas você não pode dizer que viu antes um prédio parecido.

Já viu um prédio igual ao Congresso? Pode existir até melhor. Então, isso é uma obra de arte.

Fritz- Aliás, o senhor faz igrejas bonitas.

Niemeyer – Camus em O Estrangeiro disse que a razão é inimiga da imaginação. No que tange a obra de arte. O importante é a intuição. Uma criança com 10 anos vai fazer um desenho fantástico. Depois que ela entra para a escola, conhece os clássicos e tudo, faz um desenho mais elaborado e preciso, mas sem a liberdade da criança. 

Fritz- Isso é Picasso, que o ideal era pintar com a liberdade de uma criança.

Niemeyer- Como antes. Lógico.

Fritz - Agora eu tenho uma curiosidade, qual foi o momento de sua vida, em que o senhor fez opção pela esquerda?

Niemeyer- Foi com a miséria.

Fritz - Não teve um episódio?

Niemeyer- Foi a pobreza, o Brasil cheio de pobres.

Fritz- O senhor morava onde?

Niemeyer- Eu morava em Laranjeiras e tinha a vida normal, uma família burguesa. Tinha conforto. Tinha missa em casa, como eu te disse. Quando eu saí para o mundo, o mundo tão injusto, gente tão pobre, tão miserável. Isso me afetou, achei que isso era muito mais importante.

Fritz- Isso foi mais ou menos quando?

Niemeyer- Eu tinha 18 anos, 20 anos. Nesse tempo eu já comecei a dar roupa para o partido. O Partido não era legalizado, tanto que eles iam buscar roupa, buscar ajuda. Era o Socorro Vermelho.

Achei o partido fantástico, tinha umas figuras extraordinárias. Marighela lutou, morreu, com razão ou sem razão, mas ele era um homem importante que nos deixou.

Você sabe, um dia eu estava em Brasília, nós estávamos fazendo todos os ministérios. E um deles era o Ministério da Guerra. Então, o ministro da Guerra para facilitar o contato com a gente, mandou para servir de intermediário um militar que era do tempo do Juscelino.

E ele ficava ali, dando orientação, o programa. E um dia ele disse: olha, você vai ser preso.  Por que?  Porque souberam que você deu dinheiro aí para o Partido.

Eu não tinha dado dinheiro algum. Lembro que no dia seguinte eu passei lá no meu escritório de Brasília para tirar qualquer coisa que comprometesse. O primeiro livro que eu peguei foi um livro de Marighela com dedicatória para mim.

Mas não me prenderam.

Fritz- Não?

Niemeyer- Ele me avisou, foi para o Rio e o assunto se dispersou um pouco.

Fritz- Mas o senhor foi preso.

Niemeyer- Não, fui levado.

Fritz - Eu não sei se ouvi ou li isso, não sei aonde, houve um coronel que lhe perguntou se o senhor era rico e como tinha ganhado dinheiro.

Niemeyer- cortando- Não, isso é mentira.

Fritz- Isso é mentira?

Niemeyer- Lógico.

Fritz- O senhor sabe do que eu estou falando?

Niemeyer - Sei (*) Me perguntaram coisas sobre Cuba.  Falaram sobre Cuba, se eu tinha escrito alguma coisa sobre a União Soviética, o que é que eu achava de Fidel, coisas assim.

Sair do Brasil não foi minha iniciativa. Eu senti que o ambiente não era bom, não podia trabalhar e fui para lá. E sem querer os militares me deram a maior oportunidade de levar a minha arquitetura para o exterior, trabalhei na França, na Itália, na Argélia. Na França o Malraux arranjou um decreto especial do De Gaulle para eu poder trabalhar como um arquiteto francês.  Eu sou arquiteto francês, prestei juramento e tudo para poder trabalhar lá.

Fui para a Itália, o presidente me chamou: você vai ser o consultor aqui de arquitetura. Na Argélia, antes da Itália, me encomendaram projetos de universidade e mesquitas.

Com o que eu encontrei fora, eu senti que o mundo não era tão ruim assim, que ainda existia um pouco de seriedade, um pouco de interesse.

Fritz- Como estão as suas obras, em geral?

Niemeyer- Eu tenho muito serviço

Fritz- Não, não é agora, as obras que o senhor já fez? O estado delas, as coisas. Por exemplo, recentemente demoliram uma casa sua em Botafogo.

Niemeyer- Sim.

Fritz- O Museu Nacional de Brasília está lá fechado. Enfim, tem algumas coisas que o aborrecem?

Niemeyer- É são coisas... É inútil. Por exemplo, agora tem uma exposição de escultura no Leme, não tem?

Fritz- Tem.

Niemeyer- Gostaram muito e tal, mas puseram, agora, um campo de vôlei entre o calçadão e a exposição de escultura, não é? Com certeza eu não acredito que o governo, esse novo prefeito...

Fritz- Cesar Maia.

Niemeyer- São coisas pequenas demais. Mas são coisas assim que eu não posso levar em consideração. A Pampulha, por exemplo, as obras lá de Brasília são muito bem cuidadas pelo governo. O prefeito de Niterói quer fazer algo com minha arquitetura.

Fritz—Niterói, agora já está fazendo.

Niemeyer- Vão fazer um centro de arquitetura na beira do mar. Vai ser mais importante que o Museu de Arte Contemporânea (MAC).

De modo que a gente vai trabalhando. Agora, por exemplo, chegou um sujeito que veio me pedir um projeto. Um cliente que eu nunca vi antes.  Um homem inteligente. É curador do museu da Noruega, ele trabalhou com o Brecht na Alemanha.

O Brecht quando ele era jovem, deu uma carta a ele e ele ficou quatro meses morando com Jean Paul Sartre. E veio me pedir, eu quero que você faça uma casa para mim na Noruega.

Fritz- Casa?

Niemeyer- Uma casa lá na beira do mar, na montanha, eu quero que você faça bem grande é para três suítes, o resto é com você. Eu quero construir essa casa e escrever um livro sobre a casa e a sua arquitetura. Então é fantástico. Mandei hoje para a Noruega, saiu agora.

De modo que aparecem coisas assim comigo uns clientes especiais que gostam do que eu estou fazendo. Vir da Noruega e pedir uma casa desse jeito!

Fritz- Há quem diga que nas suas casas, seus traços são mais de um escultor do que de um arquiteto. O que o senhor diz a isso?

Niemeyer- Não, eu faço o que eu gosto, não discuto. Eu nunca li nada a respeito da minha arquitetura. Eu quero preservar e respeito o que escrevem sobre arquitetura, tudo certo, mas não quero saber.  Eu quero não ter influências. Vou fazendo o que eu gosto. Modestamente, com a liberdade que acho que devo ter, o que me agrada.

Fritz - Essa liberdade sua é o pesadelo do calculista, não é? Ou não?

Niemeyer - Não, eles têm prazer. O ideal do calculista é mostrar que ele sabe dominar o concreto armado. Eu fiz um projeto na Itália. O calculista era o mais importante da Itália. Quando acabou a obra, no livro que ele escreveu, disse que pela primeira vez na arquitetura civil teve que recorrer a tudo o que sabia de concreto armado.

Quer dizer, com isso está provado como nós estamos ajudando até a evoluir. Estamos criando novos programas, não é? Um prédio duplo, por exemplo, fiz três prédios novos em Brasília. Um deles a Ordem dos Advogados inaugurou há 15 dias ou há um mês. Ontem, o presidente da Ordem esteve aqui no meu escritório para agradecer, pois disse que o prédio está fazendo um verdadeiro sucesso.

E tem mais dois. E são prédios requintados na arquitetura. Tem um deles em que as estruturas até os últimos andares são todas penduradas ao nível do teto. Eu acho que um prédio público tem que mostrar as características de progresso do país nas artes, na técnica e coisas assim.

Fritz- É esse o conceito do Renascimento, por exemplo.

Niemeyer - Mas para mim é importante, também, já que os sujeitos mais pobres não vão usufruir nada deles, a miséria aqui está inteiramente posta de lado. Mas eles vão parar num momento de prazer, e ver algo que nunca tinham visto antes. De modo que tem esse lado assim digamos social.

Fritz- Acho que, quando o pessoal estava construindo o Versalhes criaram um monumento do absolutismo. Bendito seja porque hoje, como a sociedade lá já melhorou e é mais justa, as pessoas comuns andam dentro e dispõem e se maravilham com aquilo.

Niemeyer- Acho.

Fritz- Quer dizer, é uma coisa que algum dia as pessoas vão poder entrar em prédio público no Brasil sem o ranço que existe hoje, por exemplo. O que é que o senhor acha quando o MST ocupa um prédio público?

Acha que a posição do governo é correta quando diz que eles não deviam entrar lá?

Niemeyer- Não.

Fritz – Voltando novamente a arquitetura como conceituar as arquiteturas antiga e moderna?

Niemeyer – Eu acho que há apenas boa e má arquitetura. Dou como exemplo Veneza onde há um prédio fantástico, o Palácio dos Doges. Eu senti que naquele palácio, eles já anunciavam a arquitetura de hoje.

A técnica venceu o vão maior. No grande salão de cima são 25 metros, ele não quis botar colunas, então fez uma trilha de madeira fantástica, fechando tudo. A fachada tem esse jogo de contraste. Ele deu uma ideia de pilotis nas colunas mais afastadas do prédio, de modo que, eu achei tão bom que quando eu fiz uma exposição em Veneza eu deixei uma sala só com desenhos que fiz desse palácio.

Fritz- O senhor estava falando dos calculistas. O senhor falaria alguma coisa do Joaquim Cardozo? (**)

Niemeyer- Joaquim Cardozo era fantástico. Eu o conheci há muitos anos. O Rodrigo Melo Franco chamou-o para o Patrimônio. Eu o conheci lá. Trabalhei com ele a vida inteira até ele morrer.

O pessoal que trabalhou comigo é meu amigo. O Cardozo, por exemplo, uns cinco meses antes de morrer, pediu para mandar busca-lo em Pernambuco. Mandei, Botei num hotel aqui perto do escritório, hotel Miramar. Toda manhã o mandava buscar e ele ficava aqui no escritório De tarde levava ele para o hotel.

Fritz- Ele estava amargurado nessa ocasião.

Niemeyer- Já estava meio confuso. Criou caso no hotel. Aí eu levei-o para a Casa de Saúde do meu irmão. Ele ficou lá. Meu irmão arranjou um quarto embaixo para ele. O jardim cheio de flores

Fritz- Foi no chalé Olinda

Niemeyer- E ele ficou lá uns tempos também, mas ele já estava muito confuso. Aí fretei um avião, ele queria ficar com a família. Foi para Pernambuco e morreu 15 dias depois.

Mas eu tive sorte com o Cardozo. Ele não foi apenas um grande companheiro meu de trabalho. Foi um amigo que tive a oportunidade de ficar com ele até ele morrer. E ajuda-lo. Ele estava sob tensão, procurei ficar com ele. Eu ia ao hotel e às vezes ficava para jantar com ele, para que não ficasse sozinho. Isso é que é importante na vida, a gente guardar essas lembranças assim.

Fritz- O senhor ajudou muita gente, inclusive o Prestes mesmo.

Niemeyer- O Prestes é fantástico, eu acho que a gente tem de ter prazer em ajudar uns aos outros. Isso é que é importante. Não é uma obrigação, o sujeito tem que fazer porque deve ser. Por exemplo, eu passo na rua, o sujeito me pede dinheiro, se eu tenho eu dou. Se ele vai beber, se não vai beber, é o momento de prazer dele. Se receber uma ajuda, então tá.

Fritz - E além do Joaquim Cardoso, quem mais?

Niemeyer - Agora, por exemplo, eu trabalho com o Sussekind, Carlos Sussekind em todos os meus últimos projetos. Ele é um arquiteto fantástico, sujeito bom, inteligente, muito inteligente, um calculista de valor. De modo que esse contato cria uma amizade, uma coisa boa.

Fritz- Falando do Prestes, não foi enorme a injustiça que lhe fizeram no final da vida? (***) Mesmo com todos os erros que ele cometeu.

Niemeyer- Eu estive com ele em Paris quando ele voltou da União Soviética. E a ligação com o Partido já estava difícil. Depois o acompanhei até o último dia em que ele morreu. A luta política é cheia de problemas, isso é assim mesmo.

Fritz – E sua admiração pelo Stalin? Como explicar?

Niemeyer - Houve um tempo que não se podia falar do Stalin, parecia que o sujeito era imbecil, falavam que era um bandido, um assassino.  Não foi nada disso.  

Há pouco tempo estive com um amigo e ele me deu uns dados sobre Stalin. Foi um sujeito que teve uma luta política fantástica, aos 14 anos já lutava no Partido. Foi preso, enviado para a Sibéria, foi solto, venceu a revolução. O discurso que ele fez na morte de Lenine foi fantástico. Foi ele que ajudou Mao Tsé Tung, ele ajudou na luta espanhola também.

Ele tinha que defender a revolução, tinha que defender os que morreram lutando ao seu lado, não ia deixar que fizessem a revolução ser derrotada.

Eu para testar Prestes sobre o Stalin, perguntei o que pensava dele?  Estamos de acordo com tudo que ele fez, ele disse.

Aí eu já li até o sujeito falando mal do Mao Tsé Tung ou do Fidel. Um sujeito fantástico. É um líder da América Latina. É um sujeito que livrou Cuba da pressão norte-americana que aquilo era um bordel. A Revolução Cubana foi fantástica, de modo que a gente tem que respeitar essas coisas.

Fritz- Então por que fracassou o modelo soviético?

Niemeyer- É natural. Foi uma revolução que teve 80 anos de sucesso. Quando fizeram a revolução...

Fritz- ...Onde começa o erro?

Niemeyer - A União Soviética não era um país preparado para a revolução, deveria ser um país mais industrializado, segundo Marx.

Fritz- Sim, Marx pensava na Alemanha e deu no que deu.

Niemeyer- E transformaram a Rússia, um país atrasado, ainda feudal, na União Soviética, a segunda potência.  Foram à lua. Foi um sucesso. Mas as coisas acontecem, degradou.

Mas as coisas vão mudar. Quem vai dizer o que quer é a miséria. E na miséria o povo está pobre, está sofrendo. Na Rússia hoje eles se lembram de que tinham uma causa, tinham apoio, e tinham interesse, estavam sempre satisfeitos. O país progredindo, o sucesso, eles querem voltar ao que eles tinham antes.

Fritz- Qual a sua ideia do Gorbachev ?

Niemeyer- Isso é um merda.

Niemeyer- E você reparou, você conversou comigo sobre problemas brasileiros e não dei o nome de ninguém.

Fritz- Não mesmo.

Niemeyer- Não gosto de personalizar as coisas. Acho que todo mundo tem defeito, todo mundo tem qualidade. Acredito na genética, acho que mesmo os piores têm sempre uma coisa boa.

Fritz- Tem uma coisa que eu quero lhe perguntar. O senhor fez praticamente uma ode a Stalin. E a democracia nisso?

Niemeyer - A democracia de merda que nós vivemos? Uma democracia de classe.

Fritz- Estou falando de uma democracia, vamos dizer uma democracia como a sueca.

Niemeyer- A democracia vai existir, a democracia existe num clima em que o povo está satisfeito, está de mãos dadas, está disposto a lutar. Você vai lá e não tem analfabeto. Você vai lá e o povo está feliz. Não tem ricaço, não tem gente com muito dinheiro, comandando o dinheiro.

Democracia que eu entendo é democracia em que o povo se sente feliz. Com alguma possibilidade de estudar.

Fritz- Se a gente falar de uma ilha, vamos dizer, o senhor poderia estar descrevendo a Islândia, onde até o começo do século XX havia epidemias de fome que matavam 1/4 da população e, hoje, é um país de maior expectativa de vida do mundo, onde não tem grandes ricos, nem grandes pobres, todo mundo vive bem .

Niemeyer- É.

Fritz- Só que o presidente da República lá é uma mulher e vai para o trabalho de ônibus.

Niemeyer- É.

Fritz- Só para dar uma ideia do que era a coisa. Mas volto a insistir, como é que o senhor vê o futuro? Vamos imaginar, nós estamos no começo do século XXI.

Niemeyer- Eu sou pessimista.

Fritz- É pessimista?

Niemeyer- Em relação ao ser humano.

Fritz- O ser humano como indivíduo?

Niemeyer- Eu acho que não tem solução.

Agora, com relação ao Brasil, eu gosto. Um grande país, um povo decente, um povo cordial . Você vê o carioca, sem nenhuma ideia filosófica, ele põe a vida um pouco de lado, vai para a praia se divertir. Uma coisa mais humana.

De modo que eu acredito que o mundo vai mudar, mas vai ter muita luta. E num momento em que nós sentimos o mundo, como um universo, dentro de todos os países é difícil conter a violência.

Acho que vai chegar a um resultado, mas primeiro vai ser muito difícil.

Fritz- Quer dizer, conceituando bem, o seu pessimismo é com relação a sua criatura, homem, Oscar Niemeyer vivo. No seu entender morre e acaba?

Niemeyer- Acho, acho.

Niemeyer- Já aquele companheiro nosso que morreu na Itália dizia que o otimismo é a melhor maneira de não fazer nada.

Fritz- O Gramsci ou quem?

Niemeyer- O Gramsci. Tempos atrás fui a um restaurante, eu quase não vou a lugar algum porque estou com um problema de vista e de noite eu não vejo, não reconheço as pessoas. Uma vez num restaurante, estando com dois ou três amigos, não preciso ver a cara deles, sei que são meus amigos e a gente fica conversando normalmente.

Mas um dia fui a uma reunião assim da sociedade.  Fiquei lá sentado, começou a chegar gente, e a sala se encheu. Um pessoal contentíssimo, rindo, cada um querendo ter uma frase mais inteligente, aparecer. Eu achei que era uma merda.

Achei que no mundo o sujeito não pode estar tão contente assim. Eu até fui embora. Porque essa burguesia é uma burguesia ignorante demais.

Fritz- Eu até entendo, mas no Brasil ela é muito esperta, ela sabe defender os seus interesses.

Niemeyer- Mas não quer ajudar os outros.

Fritz- Mas é isso, é por isso. Ela não dá nada.

Niemeyer- Mas é horrível.

Fritz- Não tem aquele negócio de mudar para continuar. Ela não muda nada. Não dá nada.  O apartheid já acabou na África do Sul e aqui ainda tem elevador de serviço. Quer dizer, é uma hipocrisia que está em cima disso tudo.

Niemeyer- Mas o Brasil vai melhorar. É lógico.

Fritz- Se bem que o século XX, com toda a miséria que está havendo, não é o melhor século que já existiu para a gente nascer como homem comum, apesar de tudo? Imagine ser homem comum no século XIV, XV, XVI.

Niemeyer- Lógico. Vai sempre melhorando um pouco.

Fritz- Quer dizer, talvez o Oscar Niemeyer não fosse possível. É claro que no século XV ou XVI se conseguisse estudar o senhor teria um nome florentino se estivesse na Itália. Iria se chamar Bramante, talvez, alguma coisa assim.

Niemeyer- Pois é. Foi um período fantástico.  É isso aí para uma determinada classe. Os artistas.

Lembro-me que no tempo de Brasília a gente não tinha tempo para nada.  Para fazer o Congresso não tinha programa.  Eu vim buscar dinheiro no Rio, vimos o projeto antigo aqui, tomamos nota, multiplicamos. Se fossemos fazer um programa, prevendo o futuro como os deputados queriam, isso tudo, Brasília não tinha sido feita.

Mas havia o JK que resolvia com muita razão. Eu elogio muito o JK por ter ido longe.  Outro dia fui a Goiânia. Lembro-me de Goiânia no tempo da construção de Brasília, a gente ia a Goiânia e era uma cidade pobre, quase um arrabalde. Agora é uma cidade florescente, administrada, tem tudo. Tem segurança de Brasília. Esse negócio do Juscelino dizer que ia levar o progresso para o interior, aconteceu mesmo. É um progresso grande.

Fritz- Engraçado é que o senhor não tem nenhum prédio na União Soviética ou tem?

Niemeyer- Não.

Fritz- Por que ? A arquitetura lá é meio bolo de noiva estalinista. Stalin deveria ser contra o seu conceito em matéria de arquitetura.

Niemeyer- O período do realismo socialista foi muito ruim. Só não foi péssimo porque a vida era melhor. A vida é mais importante. A vida quer o homem lá na terra, precisando de apoio, precisando ser solidário.

Fritz- É engraçado isso. Agora, dos prédios todos que o senhor fez, das suas obras, o senhor tem algum especial apreço? Que goste mais do que outras. Que marcaram a sua vida?

Niemeyer- Por exemplo, na Argélia a universidade que eu fiz, eu gosto muito. Aquela universidade moderna.

Fritz- Constantine.

Niemeyer- Você sabe que eram 22 edifícios. Nós fizemos apenas seis. Fizemos um grande prédio para ensino com salas de aula, auditórios, essas coisas. O outro para ciências, todo para ciências, biblioteca, restaurante, a direção. Estava feita a coisa.

E ela é bonita. Tem um platô, é monumental assim contrastando com a cidade antiga, que é antiga de pequenos edifícios.

Eu fiz projetos que eu gosto, mas eu não acho que isso é fundamental. O importante é o homem estar ao lado do outro, ser solidário, irmão.

Fritz- Pois é, mas até na arquitetura o senhor tem que jogar esse conceito na prática. Ou seja, uma arquitetura. Beleza é uma coisa também que o homem tem direito de ver, de perseguir.

Niemeyer- Lógico. A mim me incomoda a coisa mal feita.

 Fritz- Melhora a vida das pessoas. Eu tenho uma coisa que eu acho muito bonita no preâmbulo da declaração da independência dos EUA que diz que Deus criou os homens com certos direitos inalienáveis, entre os quais estão a vida, a liberdade e a procura da felicidade. Isso é muito bonito, a procura da felicidade.

Sabe por que? No seu conceito o que é felicidade? O senhor até disse que saiu de um lugar porque achou que as pessoas estavam felizes sem razão, digamos assim.

Niemeyer- Felicidade é estar bem consigo mesmo. O sujeito saber que não é um calhorda, que gosta dos outros, que ajuda, que pensa na vida, que se interessa por tudo. Aí o sujeito tem um campo maior de visão.

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