quarta-feira, dezembro 26, 2012

Martinho Moreira Franco

Ipojuca Pontes

Nelson Rodrigues, moralista às avessas,  costumava afirmar que era contra toda unanimidade. “Amigos”, dizia e repetia em voz cava e tumular, “toda unanimidade é burra!” Tal axioma tornou-se uma tolice menor, repetida ad nauseam em saraus de grã-finos e diletantes em geral, mas que, no Brasil, faz furor e ganhou foro de verdade inabalável. No entanto, é bom que se diga, não existe mentira mais rotunda e deslavada. Vejamos, por exemplo, o caso de Martinho Moreira Franco, o jornalista paraibano, eleito recentemente patrono do concurso anual de jornalismo promovido pela AETC-JP.
     
Pois muito bem. Jornalista profissional há quase 50 anos, vivendo entre cobras e lagartos de uma atividade minada por todo tipo de ressentimento, Martinho Moreira Franco, quebrando o mote, soube se fazer sinceramente estimado pelos pares, amado pelos familiares e amigos, respeitado por toda uma sociedade que desfruta diuturnamente de seus escritos bem humorados e precisos. É de lei reconhecer que Martinho, pela força de um caráter que poreja distinção, tornou-se, num espaço que por vezes ofusca a Faixa de Gaza, uma Unanimidade, produto, bem entendido, de  julgamento coletivo tão inquestionável quanto o dia do Juízo Final.
    
De generosidade digna de um S. Martinho (seu êmulo e patrono dos pedintes, dos fabricantes de vinho e alcoólicos arrependidos), Moreira Franco se ergueu como um dos mestres da nossa imprensa, verdade que ele, injustificadamente, repudia com o furor de uma crônica – mas real – modéstia. Por exemplo: talvez o leitor desconheça, mas alguns dos livros publicados na Paraíba de hoje ganham razão e estilo depois de finamente penteados pelas suas mãos de copywriter virtuoso. Melhor ainda: polivalente na difícil tarefa de escrever, ele domina como ninguém, na exígua margem de tempo que o jornalismo oferece, a arte de compor uma notícia correta, a reportagem completa, o editorial bem feito. Como cronista, que se fez íntimo dos leitores,  descobriu que o mundo amargo pode se tornar palatável pelo força da anedota, pois acredita no valor supremo da bonomia, ao contrário de muitos escribas, entre os quais me incluo, que pretendem endireitar o mundo ao cabo de estridentes marteladas. (Ah, me lembrei agora de um detalhe! No domínio da gramática, Martinho é filho dileto do ensino de trio mais que respeitável: D. Daura Santiago Rangel, a legendária diretora do Liceu Paraibano; Zé Maria, o implacável professor de português; e, coisa que muito o enobrece, Dulcídio Moreira, seu primo, decano do jornalismo da taba - e meu vizinho na secular Rua da Areia).  
    
Eis aqui o fato redivivo: andava eu a laborar no Correio da Paraíba, nos problemáticos anos 1960, quando por lá surgiu Martinho para escrever sobre cinema. Ele apareceu na redação montado no macio andar das quilométricas pernas de um James Coburn e a portar o semblante de um Charles Bronson menos enrugado, em suma, só para ficar na área do showbizz, com o ar do sujeito que se engordasse e passasse a usar bigodes, poderia tomar o lugar do Sargento Garcia, no seriado de o Zorro. Naqueles dias eu não dava muita trela, mas, depois de algum tempo, tornamo-nos amigos impenitentes. Afinal, tínhamos muitas coisas em comum: apreciávamos a galinha ao molho pardo de Rosa, Elvis, Roberto Carlos, Anísio Silva e o futebol – ele inveterado torcedor do Flamengo e eu do Fluminense –, ambos detestando o Vasco da Gama. Tal como Zé Lins do Rego, um vagotônico, logo descobrimos sem surpresas que, quando chovia, ficávamos com saudades do Sol e, ao fazer sol, ansiávamos pela chuva. Nesta pegada, por incrível que pareça, nossa amizade cruza quatro décadas sem atropelos nem mal-entendidos. Nos últimos anos, por dever de ofício, aderimos ao hobby de encarar o obituário dos jornais, de onde saímos muito felizes por não encontrar, neles, os nossos respectivos nomes.
    
Como já disse, sua vida de bom jornalista começou na escala de crítico de cinema. Logo se viu que Martinho, além de escrever com clareza, tinha opinião própria, era generoso e gostava de cinema e dos filmes de lazer - coisa rara numa área em que Wills Leal, Linduarte Noronha, Barreto Neto, João Ramiro, Wilton Veloso, etc., sacralizavam uma atividade profana, no dizer de Bergman firmada em cima da carnificina e da prostituição. Foi Biu Ramos que o conquistou para as redações, trincheira onde MMF ajudou a consolidar a moderna imprensa da Paraíba.
    
Dado curioso: leal e produtivo, o grande Moreira Franco tornou-se, pela competência, o ente solicitado por todos os políticos que, a partir de João Agripino, tomaram conta do poder na Paraíba. Para melhor sobreviver, tornou-se publicitário free-lancer, de onde retira dividendos para ajudar na aquisição da cesta básica e manter o paladar de fiel cervejeiro.   
    
Por sua vez, vale lembrar em tom de contrição que ambos acreditamos piamente na vitória final do homem redimido pelo segundo advento de Cristo. Embora soe estranho nos dias que correm, somos governados pelo Pai, pelo Filho e pelo Espírito Santo, que passam ao largo do materialismo histórico e do fomento da luta de classes. Com efeito, nossa fé e esperança vêm embebidas nas águas cristalinas da redenção cristã preconizada nos evangelhos de São João, Lucas, Marcos e Mateus.

PS - Só para concluir devo confessar que tenho funda inveja da coragem de MMF. Sozinho, dedilhando as letrinhas do seu jornalismo incansável, ele constituiu, ao lado da mulher, Goretti, uma família bela, decente e unida, composta, no momento, por cinco filhos e seis netos, ou melhor, sete, a contar com o que vem por aí. Em data recente, recebi pela internet uma foto da sua exuberante trupe. Humilhado e ofendido, sobretudo por ter fugido, como um calhorda, da fértil paternidade, não me contive e o chamei ao telefone, compungido:
    
- Martinho, meu caro, quero entrar com urgência na tribo dos Moreira Franco!
    
- Mas você já faz parte dela! – veio ele de lá, na bucha, entre sereno e convicto. 
    
Dormi feliz.

Ipojuca Pontes é cineasta, jornalista, e autor de livros como A Era Lula, Cultura e Desenvolvimento e Politicamente Corretíssimos. Também é conferencista e foi Secretário Nacional da Cultura.
    

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