Estado de São Paulo - 07 de dezembro de 2012
Esse
é o título de uma obra do antropólogo francês Claude Lévi-Strauss, um
ensaio de grande alcance intelectual. Não deveria estrear abrindo um
texto como este. Mas ele me parece muito mais forte do que o título de
um romance. Além do mais, contar de forma romanesca o que se passa na
cena política brasileira nos levaria à banalidade do "a madame saiu às 5
horas".
O
mel - com seu duplo sentido para os ameríndios, alimento e sexo, daí a
expressão lua de mel - é um ponto de partida mais rico para chegarmos às
cinzas de um projeto que se intitulava de transformação, no princípio
do século. O mel como sexo não é o tema aqui. Com o tempo, aprendi que a
química humana é irredutível a um esquema lógico. Pessoas se aproximam e
se afastam de forma surpreendente e, em vez de pensar em algum controle
mental desse processo, é melhor deixar que se desenrole com suas
inevitáveis surpresas.
Também
não interessa aqui a questão quem está dando para quem. Interessa saber
o que está sendo dado. O ex-senador Gilberto Miranda quer duas ilhas,
uma onde construiu uma casa e outra onde pretende construir um porto
particular.
De
ilha em ilha, os senadores acabam ocupando um arquipélago. Lembro-me da
discussão pública que tive com o então senador Ney Suassuna, que queria
ocupar uma ilha na Estação Ecológica de Tamoios, em Angra dos Reis
(RJ). De modo geral, eles compram um barraco ou qualquer instalação
modesta de um eventual morador da ilha e, em seguida, reivindicam seu
pleno uso, como se fossem, realmente, os donos.
Concordo
com o poeta quando diz que nenhum homem é uma ilha. Mas acrescento:
nenhum homem deveria ter uma ilha. Entregar uma ilha é mais concreto do
que a corrupção que desvia recursos. Não se trata de dinheiro, mas de um
pedaço do território nacional.
O
homem-chave desse processo, Paulo Vieira, disse numa ligação
interceptada que as coisas seriam facilitadas por um funcionário desde
que se colocasse "mel na chupeta". O mel ressurge aí não exatamente como
alimento, mas com seu poder de sedução. Ele é a forma enganadora de
tornar suportável o conteúdo da mamadeira. Nas cinzas de uma promessa de
renovação, instala-se uma difusa certeza de que a vida só é tragável
com a chupeta empapada de mel. E que só tem sentido participar do
governo para enriquecer.
Como
na canção de Chico Buarque, aparece uma mulher que diz sim por uma
coisa à toa, uma noitada boa, um cinema, um botequim. Uma cirurgia, um
emprego, um cruzeiro com Bruno e Marrone.
Não
se pode reduzir a análise à trajetória da secretária Rosemary Nóvoa de
Noronha. O nome de Paulo Vieira foi rejeitado pelo Senado, mas o governo
decidiu forçar a barra, tanto do ponto vista político como regimental.
Ao tomar uma decisão dessa ordem, o governo não sabia por quem estava
atropelando o Congresso Nacional? Será que, no convívio com Rosemary,
Lula nunca questionou: mas quem é esse cara que foi rejeitado pelo
Congresso, por que vale a pena insistir nele?
A
manobra para garantir o cargo a Paulo Vieira a qualquer custo contou
com o apoio de senadores. Romero Jucá articulou e agora diz que nem se
lembra do caso. Magno Malta fez um recurso para tornar viável a nova
escolha de Vieira. Se lhe perguntarem, dificilmente dirá alguma coisa.
José Sarney, então, é uma esfinge.
Acreditar
que todo esse processo tenha tido como dínamo apenas o poder de sedução
feminino bloqueia outros caminhos para conhecer o que se passou. Um
governo não atropela o Congresso para impor uma indicação se não a
considerar de grande importância estratégica. Vendo por outro ângulo, um
governo não deixa de reexaminar uma indicação quando ela é rejeitada
pelo Senado.
Os
franceses aconselham a procurar a mulher ("cherchez la femme") nesses
casos intrincados. Mas aqui talvez valha a pena distanciar-se dela e
olhar para a montanha de cinzas que o projeto de renovação nos legou.
O
governo e alguns senadores foram cúmplices objetivos de uma quadrilha
em formação. Eles estavam negociando ilhas, patrimônio físico do Brasil.
A entrega, por meio da chupeta melada, de uma parte do território
nacional é algo muito grave para se reduzir a um folhetim, apesar da
beleza dos versos de Chico Buarque.
O
Congresso parece que não tem condições de investigar. Talvez nem
queira. Mas um dia isso cai nas mãos de um setor independente da
Justiça. E de novo todos ficarão angustiados com a palavra dosimetria,
pensando no remédio amargo depois de anos de "mel na chupeta".
Da
minha parte, afirmo apenas que objetivamente a quadrilha imposta pelo
governo ao Congresso estava negociando uma parte do Brasil. Dose dupla.
Não
adianta insinuar que o coração tem razões que a própria razão
desconhece. Quando começam a levar nossas ilhas, é preciso dizer basta.
A
quadrilha que negociava ilhas é apenas uma irrupção na montanha de
cinzas. É preciso dinheiro para manter a máquina partidária, garantir
eleições, pagar marqueteiros. É preciso dinheiro para se manter no
poder. Só assim se faz dinheiro. Para continuar no poder.
Do
mel às cinzas, vão-se desfazendo os mitos políticos. A apuração e a
publicidade do episódio vão ajudar a compreender melhor a atmosfera de
um governo de coalizão de partidos e algumas facções, como a que opera
no Porto de Santos.
No
mínimo, foi um delírio autoritário. É difícil pensar que sejam tão
inocentes as pessoas que dirigem o Brasil hoje. Muitas têm uma longa
trajetória. Quando vão encarar a realidade de uma vez por todas, sem
tergiversar?
Um comentário:
O Gabeira, quem diria!
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