Denis Rosenfield
A senadora Marta Suplicy, no momento em que terminou por entrar na campanha de Fernando Haddad, após laboriosas "negociações" que a conduziram ao ministério da Cultura, apostou na eleição de seu ex-adversário interno, declarando que Lula era "deus".
Para além da blasfêmia embutida em tal declaração, esse tipo de formulação é altamente revelador, por expressar uma concepção absolutista do Poder. Ou seja, um político identificado a "deus" tudo poderia por sua onipotência, cujo campo de abrangência ilimitado, abarcaria, evidentemente, a eleição de um prefeito municipal. Aliás, considerando a onipotência divina, essa seria, verdade, uma tarefa fácil, "menor", por assim dizer.
Uma lembrança histórica pode ser aqui instrutiva. Na França, durante os séculos XVII e XVIII, os reis eram considerados como dotados de um poder taumatúrgico, divino, podendo, mesmo, produzir milagres como a cura de certas doenças. Uma em particular, conhecida como a doença régia, era a doença das escrófulas. Em cerimônias anuais ritualizadas, levadas a cabo na Catedral de Reims, longas filas se formavam para que o rei pudesse exercer o seu poder taumatúrgico. Pessoas vinham de todas as partes do reino.
O poder divino era eficaz. A doença era "curada" ao cabo de algum tempo, podendo ser atestada, por exemplo, pelos párocos das diferentes regiões. E isso ocorria por se tratar de uma doença que permanecia por longo tempo assintomática, de modo que sua "cura" podia ser atestada. Hoje, ela é conhecida por adenite tuberculosa e é tratada por medicamentos. Ocorre que o rei, desta maneira, tinha o seu poder afiançado e legitimado.
Certos setores do PT têm do ex-presidente Lula uma imagem taumatúrgica, recorrendo a ele como se fosse um "deus". Nem precisa "curar" doenças, mas a sua função primordial é eleger candidatos seus, como se processos eleitorais fossem um mero ritual mundano que seriam suplantados pelo seu poder taumatúrgico. Eleições seriam rituais de homens, meramente utilizados para que "deus" pudesse instrumentalizar os seus desígnios. A perpetuação do poder estaria, assim, assegurada.
Ocorre que falsos deuses são fraudes. Ou ainda, um deus que falha não seria, por definição, um "deus", na medida em que o seu atributo da onipotência não se faria presente. Quando um "deus" falha, sua imagem sofre um abalo considerável.
Ora, isto está acontecendo com o ex-presidente Lula, o seu poder taumatúrgico esvaindo-se, por assim dizer, entre os seus dedos. Boa parte do PT tinha apostado nesse atributo "divino", subordinando-se a um líder que poderia tudo decidir, pois sua decisão seria sempre a certa. A onipotência seria acompanhada pela onisciência.
A confusão "teológica" chegou a tal ponto que no manifesto de desagravo ao ex-presidente Lula chegou a constar que as acusações de Marcos Valério na revista Veja e, de modo mais geral, o julgamento do Mensalão pelo Supremo seriam uma espécie de "golpe". Golpe contra quem? Contra o reinado de Lula que estaria sendo destituído de seu poder?
É interessante notar que a expressão de golpe, para além do desprezo pela democracia e por suas instituições, utilizada por importantes setores do petismo, só ganha sua significação plena se voltada para a imagem taumatúrgica de Lula que, continuaria, no poder. Só a imagem da onipotência atingida poderia explicar uma formulação tão descabida endereçada a alguém que não exerce hoje nenhum cargo na República. Salvo se a República for o seu reinado!
Alguns exemplos são particularmente interessantes desse poder taumatúrgico claudicante, com "deus" falhando. A imagem de Lula tem se tornado onipresente em algumas campanhas televisivas, ostentando apoio aos seus candidatos. Aliás, esses apoios televisivos eram e são avidamente disputados, pois todos seriam um serviço divino prestado às suas campanhas. Em alguns casos ainda mais fortes, como na cidade de São Paulo, a presença física em atividades de campanha seria ainda maior.
Nessa cidade foi onde ficou particularmente clara a tentativa lulista de fazer uma criatura sua prefeito. Chegou a afastar uma candidata competitiva, Marta Suplicy, com carreira e personalidade próprias, uma não-criatura, para impor a sua vontade. Essa, aliás, terminou por reconhecer que se trata de um "deus", não sem antes, evidentemente, conseguir um cargo de ministra no governo federal. Foi um reconhecimento "divino" atravessado por reles questões de negócios, inferiormente humanas.
O candidato lulista, Fernando Haddad, corre sério risco de nem comparecer ao segundo turno e, comparecendo, as chances de sua derrota são expressivas. Se tal diagnóstico das pesquisas se confirmar, o Poder Taumatúrgico de Lula sofrerá um importante revés. Se "deus" falhar já é um problema extremamente complicado, "falhar" na disputa por uma segunda posição já seria propriamente "intolerável".
Se, ademais, considerarmos que o PT, progressivamente, está – ou seria mais próprio dizer estava? – se tornando uma espécie de igreja lulista, o seu poder está, nacionalmente, diminuindo a olhos vistos nessas eleições municipais. Em cidades importantes como Porto Alegre, Belo Horizonte e Recife, os candidatos do partido correm o risco não apenas de perderem a eleição como, alguns, de nem se fazerem presentes no segundo turno.
Porto Alegre, além de São Paulo, é um caso particularmente interessante, por se tratar de uma cidade berço do PT, que governa o estado atualmente, além de já tê-lo governado no passado. A capital dos gaúchos foi dirigida pelo PT durante 16 anos. A permanecer a situação eleitoral atual – e é altamente improvável que ela seja revertida –, o candidato petista Adão Villaverde nem chegará ao segundo turno.
Para uma cidade ícone do petismo, graças ao Fórum Social Mundial e ao Orçamento participativo, dito democracia direta, é um revés e tanto. E aqui também as imagens de Lula para nada estão servindo: "deus" está falhando.
Publicado pelo http://www.dcomercio.com.br em 27/09/2012
Um comentário:
Esperar o “quê” de Lula!...
Sabe-se que num determinado momento dos meandros de sua caminhada, como sindicalista, já tendo enveredado para a política, Lula passou a liderar um grupo de seguidores, que, sob a égide de seu “carisma” e identificados pela comum e “distorcida gênese política”, sentiram-se onipotentes a ponto de num “ritual canônico” se “auto-ungirem” e, submetidos às “tendências messiânicas do líder, o ungirem como soberano da grei e salvador da pátria”, segundo um mandamento absolutista que buscaram num “Monte Sinai imaginário”!...
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