domingo, outubro 28, 2012

O CICLONE

Hugo Caldas

A Pensão de Dona Maria era um casarão antigo na Rua da Concórdia. Sobrado com primeiro andar, o que lhe conferia uma aparência nobre, há muito perdida na poeira do tempo. Dona Maria, a proprietária, simpática senhora já entrada nos anos, era dona de um semblante que fazia ver seu passado de muitas aventuras e incontáveis paixões. Tinha uma sobrinha muito da insossa, sem graça, mesmo. Nunca a vi em companhia masculina, seja amigo ou namorado. Soube mais tarde, que morrera de maneira misteriosa. Suicídio?

Dentre todos os hóspedes, nutria Dona Maria, uma suspeita e mal disfarçada preferência por Valter "Margarida" meu colega da Panair, a quem carinhosamente, ela chamava de "Vado". Havia sempre uma comidinha melhor para ele...

- "Quere óvis, Vado"?

E assim ia nosso Margarida comendo omeletes enquanto o resto se contentava na dureza do feijão com arroz e carne de charque. Mas tínhamos galinha de cabidela aos domingos. No meio disso tudo, ainda havia um austríaco que mal falava o português e comprava umas comidas esquisitas, porém deliciosas no Mercado de São José.

O dia inteiro que Deus dava, os acordes de uma música, emanavam de um certo aposento e pareciam grudar na minha trompa de Eustáquio. Dizia assim:

- "Ela se enamorou de outro rapaz
Assim que o ciclone atingiu nossos destinos
Nenhum de nós pensou voltar atrás
Que orgulho, quantos desatinos
Eu bebi champagne em seu noivado
Traguei minha mágoa no peito sem rancor
Fui o primeiro a chegar à igreja e amargurado
Assisti o orgulho matar dois sonhos de amor
Numa noite, já muito tempo depois
Ela veio chorando
E chorando atirou-se em meus braços
E disse ganhando meus beijos
E disse ao sentir meus abraços
Sou eu que com fome de amor te vem procurar
Sou eu, sua voz doce e meiga com prazer ouvi
Sou eu que cansei de mentir
De fingir, de enganar
Sou eu que cansei de outra boca beijar
Pensando em ti."

Os sargentos do CPOR, Rawlson e Reginaldo este, meu velho conhecido de João Pessoa, eram os inquilinos do aposento musical. Era sabido que um deles sofrera uma história semelhante à descrita na música do Adelino Moreira. Daí a razão de escutarmos repetidas vezes a mesma canção na voz maviosa de Carlos Nobre, um habilidoso imitador de Nelson Gonçalves.

Era uma dor de corno sem precedentes.

Pior para mim, coitado, que não conseguia dormir, quando da volta dos pernoites da Panair do Brasil. Um tormento. O quarto dos sargentos, é óbvio, vivia sempre fechado. Às vezes, pela porta entreaberta, dava para ver uma descomunal "radiola" que além de tudo, possuía um rádio também enorme com "olho mágico" e tudo.

Comecei então a arquitetar um plano que pudesse me conceder a graça de um pouco de quietude. Eu precisava dormir, ora bolas. Já imaginaram não poder conciliar o sono, morto de cansado após duas noites em claro?

Numa dessas ocasiões que fazem o ladrão, aproveitei enquanto o sargento fora ao banho deixando a porta aberta. A radiola era dessas antigas, de válvulas enormes. Conjeturei que a troca de lugar de duas dessas válvulas seria o suficiente para um revertério monumental. Eu estava certo. Tão logo a alteração foi consumada o olho mágico do rádio ficou zarolho enquanto uma fumaça preta e mal cheirosa alastrava-se pelo aposento. Isso me permitiu, até ser descoberto o "crime," pelo menos uns quinze dias de sono tranqüilo. O sargento Rawlson passou uma temporada sem me dirigir a palavra. Ofendidíssimo.

Antonio Burity, outro hóspede, irmão de Socorro Burity, também minha colega na Panair. Socorrinho era a vivacidade, a alegria em pessoa. Morria de rir se uma pessoa dizia que estava com "defluxo" quando acometida de uma coriza qualquer. Grandes figuras, os dois Burity.

Às vezes a necessidade apertava e atrasávamos o pagamento. Como represália Dona Maria, qual mãe zelosa, recolhia as nossas roupas nos deixando apenas um pijama e o nosso uniforme de trabalho. Enquanto durasse a inadimplência ela seria a senhora absoluta das nossas roupas e conseqüentemente das nossas vidas. Não podíamos arredar o pé da pensão.

Para sanar de vez as nossas dívidas, Burity, emérito vendedor, apareceu certo dia com parte do caderno dos classificados de um jornal. Um grande negócio se apresentava no horizonte. Só faltava convencer Dona Maria a liberar seu terno de diagonal branco que ele usava para o trabalho ou quando saíamos esporadicamente para assistir a algum filme, aliás, naquela época ninguém entrava nos cinemas do centro do Recife sem o devido paletó. Nos cotizamos e conseguimos o dinheiro da passagem. Tudo devidamente acertado, Valter Margarida conseguira convencer Dona Maria e lá se foi o nosso herói para uma pequena e enigmática viagem pros lados das Alagoas.

Ao cabo de 15 dias bem contados eis que Burity retorna, montado no ouro.

Conseguira a façanha de vender 12 caminhões basculante para a prefeitura não sei de onde. Foi literalmente uma festa com direito a comidinhas e bebidinhas mandados buscar em restaurante fino da redondeza. A comissão recebida deu para saldar todos os nossos penduras e como garantia a qualquer contratempo, ele pagou dois meses adiantados para todos nós.

Assim era a generosidade do meu amigo Antonio Burity.

Houve também a época em que o revezamento começou na pensão. "Vado", ao ser convidado a integrar uma "república" com outros colegas de trabalho nos deixou. Ficamos meio desolados. Dona Maria coitada, quedou-se na maior prostração. Mas a vida deveria seguir seu rumo e para o seu lugar veio um sujeito de Maceió, de físico avantajado e voz estereofônica. Fora locutor de rádio, chamava-se Roberto Lamenha. Sobre a figura relato historinha edificante que juro aconteceu de verdade.

Nos seus tempos de locutor em tradicional rádio pernambucana, Lamenha, talvez por artes do tinhoso, trocava as bolas quando algo lhe desviava a atenção. Havia no comércio uma famosa geladeira cujo "slogan" era:

- "Gelomatic, o refrigerador que gela mais e custa menos, informa a hora certa" -

Pois bem, certo dia ele disse exatamente o contrário: "o refrigerador que gela menos e custa mais"... Praticamente uma porcaria de produto, convenhamos. Demitiram o Lamenha sem dó nem piedade. Fez ele então concurso para a Panair e passou. Foi onde nos conhecemos e ainda nos freqüentamos até a presente data.

Outro hóspede bastante interessante era Sócrates, um simpático camundongo, catitinha de nada, que nos fazia companhia no quarto. À noite saíamos para um lanche em um pé de escada próximo, consistindo de um copo de caldo de cana com pão-doce. Sempre trazíamos o restante do pão para Sócrates que nos esperava religiosamente, com os olhinhos brilhantes para receber o seu quinhão. Era o nosso companheiro mais constante. Inofensivo.

Nunca mais soube de Burity. Tive notícia de que se mudara para Picos, no Piauí, e que se houve muito bem ao se estabelecer com uma loja de autopeças. Deve estar rico hoje. Espero de todo coração.

Sobre os dois sargentos, tomei conhecimento bem mais tarde, que o Rawlson fora recrutado pela repressão. Nunca acreditei. Como poderia uma pessoa com a alma embebida de tanto romantismo se entregar à atividade tão aviltante?

É, decididamente os tempos eram outros!

5 comentários:

Roberto Lamenha disse...

Olá
Bom Dia
Algo dentro deste teu artigo merece resposta e alguma explicação.
Lembro-me muito bem da época (1959) e do fato narrado. Da pensão e de D. Maria também recordo. Do Fritz lembro a frase às vezes repetida através das paredes dos quartos. Was gibt is in, in Vien ?
Quanto ao ocorrido na Rádio Continental, esclereço que o fato realmente aconteceu, mas o resultado não foi exatamente o narrado. Tive o valor do anúncio descontado de meu parco salário, recebi bela repreensão de Dr. Luiz Falcão, e continuei a trabalhar normalmente, devido em parte pela voz, e em outra pelo conhecimento do idioma anglo-saxão, que se prestava em muito para anuncir os autores, cantores e orquestras das músicas estrangeiras que eram tocadas principalmente num programa noturno intitulado "VARIG é dona da noite", até ser chamado para trabalhar na Panair por intermináveis 15 meses. Os plantões das 22:00 às 06:00 eram insuportáveis, a ponto de me causar náuseas, pois não aguentava perder a noite de sono, e me fazer penar no primeiro dos dois dias de descanso. Após minhas primeiras férias, resolvemos desfazer o vínculo e voltei a trabalhar na mesma rádio por mais um bom tempo, até conseguir passar num teste para ser tradutor/intérpete de um grupo de engenheiros americanos que trabalhava para a USAID/NE, onde consegui ficar até o encerramento das atividades daquela agência em 1973.
Fato "Consumatum est",
agradeço pela atenção e lembrança
grande abraço
RL

W.J. Solha disse...

Grandes personagens, Hugo! Faz seu livro de memórias, mesmo que o diponibilize na internet. Solha

Márcia Barcellos da Cunha disse...

Hugo,

Muito interessante seu relato.
A sugestão de seu amigo W.J.Solha é ótima idéia! Vamos aguardar.. Quem sabe teremos uma grata surpresa? Abração. Márcia

Jorge Zaupa disse...

Será que os 'jovens' de hoje sabem o que significa solidariedade/companheirismo?

Girley Brazileiro disse...

Hugão,
Só tenho que agradecer. E muita gentileza da sua parte.
Devo lhe dizer que li também o seu post desta semana e adorei as histórias da república na Rua da Concórdia. Extraordinárias. O da radiola, com válvulas trocadas, foi uma senhora traquinagem.
Parabéns.
Girley