sexta-feira, julho 27, 2012

URBANO E RUPESTRE


Amigos, amanhã haverá na parte externa da Galeria Janete Costa, onde estou expondo, uma ação com grafiteiros relaciinada com a exposição. Escrevi o texto anexo com à guisa de reflexão sobre esta atividade tão viva e instigante. Vou participar grafitando,  estaremos lá a partir das 10:00. Forte abraço para todos. RC

Raul Córdula

A principal diferença entre arte urbana e arte rupestre é a história, ou melhor, a pré- história, porque a palavra rupestre refere-se a períodos da humanidade antes da história oficial e, quanto à sua relação com a arte, à pedra como suporte, no caso da pintura. E ainda, chamamos de “arte” a expressão gráfica dos homens pré-históricos, mas ocorre que o conceito de arte é próprio da civilização e da história.
O pintor e poeta visual Jota Medeiros, de Natal, relaciona as imagens de mãos estampadas em paredões pré-históricos existentes no mundo inteiro, muito incidente no nordeste brasileiro, com a poética da poesia visual contemporânea. Eu não diria assim, pois certamente os autores desses “grafites” nada sabiam sobre isso, mas considero que a apropriação destes sinais e o seu reuso podem ser uma atitude artística, dentro de uma visão atual, embora simplista, de que arte é atitude.
Na verdade as manifestações rupestres pintadas ou gravadas nos instigam a pensar no mistério do tempo, da antiguidade, e assim na questão da atitude, suposta por nós, destes “artistas” ancestrais. Claro que isto não significa nada diante de qualquer conceito científico. Debalde, pois aqui não estamos falando de ciência, mas de arte, e não existe uma ciência da arte, embora muitas ciências caucionem a arte.
A outra verdade urgente é a do significado. É claro que uma arara pintada com o óxido de ferro das argilas nas grutas de Carnaúba dos Dantas, no Rio Grande do Norte ou um calango gravado na pedra do ingá da Paraíba significam, isoladamente, arara e calango, mas do que se tratam todos estes grafismos juntos num paredão de pedra? Para que e para quem foi feito isto? Envolvo nesta pergunta todas as manifestações rupestres espalhadas pelo mundo. Seria uma mensagem xamânica? Um marco territorial? Sinalizações para caçadores? Ou simplesmente foram feitos para saciar a vontade de se expressar, como parece ser em alguns paredões da Serra da Capivara do Piauí ou na Pedra do Caboclo no Sertão pernambucano, onde cenas do dia-a-dia, como a família, a caça, o sexo, as danças e representações de lutas, são mostradas como expressão da vida?
O que isto tem de urbano? Do ponto de vista da ciência do urbanismo, nada. Mas do ponto de vista do homem urbano, gregário, que constrói as cidades e se enterra nela, que ainda, como os antepassados distantes, olham para o céu na ânsia de entender, tem tudo a ver. Nossas origens pulsam ainda, e para sempre pulsarão, quando nos religamos a terra. A esta “religação” chamamos arte, e com ela preenchemos nossos horizontes resumidos a paredes, anteparos, limites territoriais que no fundo da alma bramem sufocados.
Imaginando um salto no tempo desde as pinturas da Serra da Capivara até agora, encontramos mais ou menos os mesmos elementos impulsionando a vida neste cenário contemporâneo. As emas e veados que nossos antepassados caçavam para comer estão hoje pelas ruas nos out doors dos supermercados como a carne do dia a da, as cenas de sexo expressas no paredão de pedra ocupam em toda mídia contemporânea, as marcas que limitavam territórios de caça estão hoje substituídas por marcas de propriedade a serviço do dinheiro e do poder. O que mudou? Provavelmente o conceito ou forma de poder. Se há dez mil anos o xamã detinha o poder, hoje é o dono do capital quem o detém. O xamã desapareceu? Certamente não, ele está aqui como sempre esteve, traduzindo em formas puras e verdadeiras as mentiras que a civilização traçou no seu “caminho inevitável para a morte”*. O xamã é o artista, todo artista, pois ele é quem nos liga a mundos que ultrapassam o toma lá dá cá, e transformam este limite binário em visões plenas de expressões e sentimentos.
Mas existe um conceito ainda mais próximo desta idéia, o conceito da “arte na rua”, na via pública onde as pessoas passam o dia inteiro. Uns querem chamá-lo de “arte urbana”, mas toda arte produzida nas cidades, pública ou privadamente, é arte urbana; outros, “arte de rua”, com sua versão sofisticada “street art”, o que talvez a limite a uma arte feita para o mercado. O que interessa é a pulsão de escrever, pintar, desenhar, grafitar com estêncil, spray, tinta, carvão, piche, nas paredes da cidade. As paredes são de pedra, barro, cimento e cal, portanto, pelo menos materialmente, uma pintura sobre elas se torna no que chamamos de arte rupestre. Para mim: arte urbana e rupestre. Não considero porém o grafite “arte pública”, que para mim tem um significado oficial e  patrimonial, como a escultura, a estátua de rua, os bustos de personalidades e políticos, os murais de fachadas de edifícios, etc.
A palavra grafitti deriva do italiano sgrafitto, que tem o significado de garrancho, rabisco, ranhura. A matriz italiana da palavra, por sua vez, deriva mesmo de grafite, o mineral com se faz a os lápis de escrever e desenhar. O grafitti na visão moderna é, portanto, o desenho, ou garatuja, rabisco, etc. nas paredes e muros da cidade. Os grafiteiros gostam de se dividir em grafiteiros propriamente dito e pichadores, e nesta divisão eles concorrem entre si por espaço e recebem da sociedade valores diferentes. Os pichadores – de piche, material semilíquido derivado de petróleo que era usado para escrever mensagens geralmente políticas clandestinas nas paredes da cidade – não se limitam aos “stencils” ou máscaras vazadas com a imagem que servem como molde dos desenhos que se fixam na parede através de spray ou tinta a pincel, típicos dos grafiteiros. Os pichadores são mais primitivos e têm outros propósitos como o de marcar território, assinar com a marca de seu grupo, ou tribo, ou gangue, determinado local de atuação e expressão. Os pichadores também se destacam por ações perigosas como atingir lugares altos, de difícil acesso, para lá deixarem suas marcas. Eles possuem uma linguagem própria através do significado cifrado dos alfabetos com que “escrevem” nas paredes. São geralmente xingados de vândalos pelos proprietários dos imóveis onde eles picham. Usam “vândalos” com o significado de bárbaro, e com isto cometem dois enganos que não cometeriam se conhecesse um pouco da história do Império Romano, de onde veem estes conceitos: o primeiro é que “bárbaro” para os gregos e romanos eram simplesmente “estrangeiros” que na Roma antiga tinham constantemente seus territórios conquistados sem que para isto acontecessem guerras, mortes e destruições, a outra é que entre os bárbaros os vândalos foram os inimigos mais gentis de Roma, pois quando a invadiram, na época de sua decadência, apenas pilharam os objetos de valor, não tirando a vida das pessoas. Por outro lado penso que quem chama os pichadores de vândalos agem um pouco como os romanos antigos, pois esbravejam contra alguém que interfere, estraga, desvaloriza sua propriedade, a causa mais estúpida das guerras típicas do imperialismo. Nós herdamos este ódio. Portanto, de certa forma considero os pichadores uns cidadãos românticos.
Os grafiteiros não, eles geralmente se acertam com os proprietários dos espaços que vão ocupar, traçam uma obra que se confunde com a arte, quando não é arte em si, acomodam-se geralmente a dogmas estéticos e agem sempre em função de seu próprio público, O registro de suas atitudes permanece na rua, e ganham o status de arte, tornam-se parte da cidade de forma consentida, buscam com isto a legitimação. No Brasil temos grandes grafiteiros, alguns com renome nacional como os Gêmeos paulistas, outros que se tornaram famosos artistas que saíram das ruas para as galerias, como o francês pioneiro no Brasil Alex Valauri, ou o paulista Matuck ou os recifenses Galo de Souza e Derlon, entre tantos. Nos anos 60 o stencil e a tinta em spray foram muito usados na arte de vanguarda, artistas como Antonio Dias, Renato Landim, Carlos Vergara, Rubens Gerchmann, Chico Pereira da Paraíba, entre outros o utilizaram com sucesso e pioneirismo, inclusive, em escala mundial, pois temos que os pioneiros do grafite americano, segundo o pesquisador Russell Howze, no seu livro Graffiti Community and Arte – Stencil Nation, Jef Aérosol, John Fekner e Scott Williams começaram a trabalhar também nos anos 70, embora se saiba que Marcel Duchamp usou stencil em sua obra nos anos 20.
O grafitti permite várias técnicas e suportes, podendo o stencil ser usado sobre parede, papel, madeira ou qualquer superfície, e com vários tipos de uso, desde a simples sinalização até sofisticados murais que podem cobrir vastas áreas de paredes e muros. A pintura é outra forma de grafitar, os Gêmeos a utilizam assim como outros importantes grafiteiros, Vê-se também associada ao stencil como complemento ou mesmo como linguagem.
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