segunda-feira, julho 30, 2012

André Palluch

Ipojuca Pontes

O corrompido Estado do Rio de Janeiro permitiu que se matasse duas vezes o fotógrafo André Palluch: a primeira vez quando, na noite de 16 de fevereiro de 2012, consentiu que ele fosse seviciado por parelha de marginais, justamente nas proximidades do Quartel Central da Policia Militar, à Rua Evaristo da Veiga, na Lapa; e a segunda, 47 dias depois do assalto, quando, nos desvãos do hospital municipal Souza Aguiar, para onde foi levado, deixou que ele morresse vítima da incúria de uma troupe de médicos e burocratas coniventes com o eterno estado de calamidade que contamina a saúde pública no Brasil. Governo brasileiro - quantas pessoas morrerão sob o manto da tua torpe indiferença? 
     
O que seria um simples caso de lesão na coluna, transformou-se numa via crucis, somatório de erros e percalços cometidos contra um paciente que entrou confiante no Sousa Aguiar e que, pelo regime de descaso ali implantado, em pouco tempo foi levado a uma traqueostomia por infecção hospitalar. Como era  previsível, colocado posteriormente de molho numa CTI que nada tinha de intensiva, o fotógrafo padeceu por mais de trinta dias à espera de duas cirurgias que nunca foram realizadas. Na hora H, faltou ao Souza Aguiar, além de empenho, o instrumental técnico mínimo para operar o paciente.  E, vale dizer, senso ético e senso de responsabilidade para salvar uma vida.
    
Resultado: vítima do descaso, André Palluch morreu na madrugada do dia 4 de abril. Segundo o noticiário dos jornais, sua filha Andréa só conseguiu o laudo médico do pai porque recorreu ao Ministério Público, pois o hospital pretendia escamotear o documento. (Enquanto, folgadamente, Sérgio Cabral, o governador, saltitava a “dança da garrafa” em Paris e Eduardo Paes, o prefeito, caia nas estripulias do carnaval).
    
Devo confessar nesta breve nota que tive a felicidade de conhecer André Palluch e com ele conviver fraternalmente por mais de 30 anos. No vai-e-vem cíclico do cavernoso cinema nacional, pude nele testemunhar uma coisa rara de se manter na instável atividade: a retidão de caráter. Paciente, calmo, tolerante, era um ser bem humorado mesmo em momentos difíceis, quando a vida lhe apertava a alma, o bolso e os calos. André - devo assegurar ao amigo leitor - porejava distinção.  Favorecido pela natureza, era dono de semblante de fazer inveja a qualquer Alain Delon – o que lhe dava livre trânsito entre as mulheres, embora explorasse pouco, no meu entendimento, os seus dotes de galã informal.
    
O conheci nos arredores da Boate Saint Tropez e Galeria Dezon, ambiente de uma Copacabana que efervescia no ritmo do La Mosca, cha-cha-chá preferido de Brigitte Bardot.  À época, ainda na faixa dos 20 anos, em meados de 1960, André já se firmara como câmera hábil e preparava-se para filmar na Bahia “Onde a Terra Começa”, fita do veterano Rui Santos, antigo fotógrafo do DIP que virou amigo de Jorge Amado e Graciliano Ramos. Adorava ficar bebericando nos bares com gente que nem João Antonio, o contista, mesmo que saísse do papo fatigado, madrugada alta, para enfrentar bem cedinho a labuta do cinema com a turma da “pesada”. Belo companheiro!
      
Saído de uma Budapeste invadida pelos tanques russos, arma-padrão do Império do Mal contra os povos que oprimia, o húngaro André, pelo que sei, chegou a São Paulo em 1957, quando a capital paulista iniciara, com os seus romisetas, o boom da indústria automobilística nacional. Magiar de raiz eslava com leves traços asiáticos, o fotógrafo logo perdeu o sotaque e se tornou um brasileiro nato e hereditário, mantendo, no entanto, um natural sentido de honra e gosto pelo trabalho. Onde houvesse produção, lá estava André. Como câmera atravessou o país pelo menos 20 vezes, do Oiapoque ao Chuí, filmando de perto tudo que aparecesse diante de suas lentes: as matas amazônicas, as tocas indígenas do centro-oeste, as coxilhas do Rio Grande e as terras ressequidas do semi-árido nordestino. Mas suas andanças não se limitavam ao solo ou céus pátrios: nas nossas águas de 200 milhas, cabelos revoltos, ele singrava mares tupiniquins nunca dantes navegados. Encontrei-o nos lugares mais surpreendentes, como, por exemplo, nas distantes plataformas da Petrobras, em Sergipe e no Rio de Janeiro, cigarro no canto da boca, sempre, e o seu bom humor e riso fácil.
    
(Por vezes, quando andava eu acabrunhado e encontrava por acaso André Palluch minha alma borbulhava como champanhe e logo recuperava minha fé na humanidade. André, com sua cara e sua renitente coragem, jamais deixou se abater pelas sacanagens que a atividade cinematográfica muitas vezes lhe impunha).
    
Sem dúvida, era uma figura singular. E diga-se, também muito amada. Quando numa manhã de abril, convocado pelo seu irmão, Miklos, proferi algumas palavras de despedida em seu louvor, no Cemitério São João Batista, não me surpreendi com o número de amigos e colegas de profissão que vieram lamentar sua perda brutal, no testemunho do último apreço. É que sem ser materialmente rico, André soube se fazer sinceramente respeitado pelos pares, sentimento embasado no transcurso de uma vida decente, sensível, transparente e solidária, digna de inveja e não escassa admiração.  
    
De minha parte tenho um truque infalível para afugentar a dor provocada pela ausência dos camaradas que partem: faço de conta que eles dobraram a esquina e que tão logo seja possível, voltarão. É uma meizinha infalível.
     
Até a volta, caro André!
    

3 comentários:

Anônimo disse...

É triste sim saber que alguém morreu nessas condições, mas casos isolados não podem servir como referência para julgar e ridicularizar o governo. É notório que tem sido feito um trabalho para melhoria da saúde no Rio. Os mais precisados são os que mais percebem essa melhoria.

João Romero disse...

Tá bem senhor anônimo. Não tenho carta branca para defender o texto - bemmescrito por sinal do senhor Ipojuca Pontes - maas conta outra que eu também acredito em duendes. João Romero

Anônimo disse...

Vejam aos 48:49, nos créditos do vídeo, qual nome aparece, como responsável pela fotografia e câmara.

https://www.youtube.com/watch?v=YGiQXNf02eQ


Fez trabalho apoiando a ditadura. Não costumo desejar morte de ninguém, mas esse daí foi é tarde demais. Abraços