sexta-feira, junho 15, 2012

SABATINA COM W. J. SOLHA


Fabrício Brandão

 1 Você nasceu em berço paulista, mas podemos dizer que estamos diante de um homem de alma genuinamente nordestina. De que modo essa sua “reinserção territorial” foi determinante para mudar seus destinos?

R – A paixão pelo Nordeste foi total e à primeira vista, mudando tudo na minha vida. Devem ter pesado muito a favor disso o fato de que eu tinha vinte e um anos e pela primeira vez – ingressando no Banco do Brasil e muito longe de meus pais – me via totalmente livre, não só do engessamento da família quanto do orçamento. Quando, depois de chegar à noite em João Pessoa, após um vôo de doze horas, tomei na madrugada seguinte um ônibus para o sertão, senti um deslumbramento: como se tivesse passado para outro país e outro tempo, outra dimensão. Na realidade, partia para uma fase bem diferente de minha vida, e sabia disso. Mas não esperava tanto. Deixara de estudar pintura em Sorocaba - de onde vinha -, por me considerar medíocre, e não imaginava mais nada para mim, em termos de arte. Isso sem nenhum dano aparente. Mas além do fascínio dos vaqueiros encourados que vi logo na estrada, no meio da poeira levantada pelo ônibus; além dos banhos de rio que passei a tomar diariamente, após os expediente do BB; além da visão – nova, para mim – da caatinga (seca num dia, verde no dia seguinte); surpreenderam-me e me cativaram de imediato as tantas pessoas cultas que conheci em Pombal, incrivelmente disponíveis. A pequena agência do BB (que começou com gerente, subgerente, eu e mais dois colegas) recebia tantos vendedores de coleções de livros, que um dos administradores botou um aviso em cima do balcão, avisando-os de que não poderiam mais ser atendidos ali. À noite havia grandes rodas de bate-papo nas calçadas e descobri que entrara no seio de uma sociedade – ao contrário da minha - que lia muito. Aí chegou um novo funcionário com uma das malas cheia de grandes autores franceses, que ele declamava empolgado, no original, na rua. Era a figura extraordinária de José Bezerra Filho, que se danava a fazer teatro, a escrever contos e, em seguida, um romance – Fogo! – contando coisas que via por ali, na cidade e seus arredores. Ganhou com esse trabalho um prêmio no então estado da Guanabara. Por esse tempo conheci a riquíssima literatura de cordel. Pombal era a terra de Leandro Gomes de Barros, o maior cordelista, o verdadeiro príncipe dos poetas brasileiros, de acordo com Drummond. E conheci os versos de Zé Limeira, o poeta do absurdo, que iria influenciar os compositores paraibanos Zé Ramalho e Vital Farias... e, no futuro, influenciar-me também. É dele o verso que intitula meu livro “Zé Américo foi princeso no trono da monarquia”, que sairia pela Codecri em 84. Bem. Um dia comecei a ter uma série do que Jung certamente chamaria de Grandes Sonhos, todos envolvendo a figura de Cristo. Particularmente impressionado por um deles, escrevi-o quando acordei. Zé Bezerra viu naquilo um conto, que foi parar numa antologia, em João Pessoa – ainda no tempo dos mimeógrafos –e, de repente, eu me via publicado junto de Manuel Bandeira, Graciliano e Carlos Drummond. É quando chega mais um novato no Banco – Ariosvaldo Coqueijo – pedindo-me que escrevesse uma peça sobre a morte do estudante Edson Luís, no Rio, acontecida um mês antes. Escrevi o texto numa noite, acabei criando para o espetáculo, mesmo sem saber música, um samba e vários hinos, e terminei por subir ao palco pela primeira vez, fazendo o papel de um líder estudantil, daí a barba que uso até hoje. Montamos um festival de teatro, na cidade. No ano seguinte produzimos, com o povo da cidade, o primeiro longa-metragem da Paraíba – O Salário da Morte, a partir do romance do Bezerra – dirigido por Lindoarte Noronha (autor de Aruanda, célebre documentário que dera partida ao Cinema Novo)  e, de repente, me vi produtor e ator cinematográfico. Quando me mudei para João Pessoa, em 70, financeiramente quebrado (pelo prejuízo com o filme) escrevi meu primeiro romance – Israel Rêmora – baseado no que vivera no sertão – e ganhei, com ele, o Prêmio Fernando Chinaglia 74, que incluía uma edição pela editora Record. Foi tudo meio delirante, não?

 2- Com incursões pelo teatro, cinema, literatura e artes plásticas, você se revela um agente expressivo no que se refere às epifanias do pensamento. No geral, essas múltiplas aptidões convivem harmoniosamente ou você trava dolorosos combates em termos de criação?

R – Os combates são terríveis, no que se refere à minha paixão por ensaios e por ficção, que sempre tentei juntar numa coisa só. “Relato de Prócula”, originalmente, tinha o dobro do volume. Quanto às outras atividades, elas sempre me vieram normalmente. Cada arte tem algo de que as outras carecem, e experimentá-las,  todas, faz com que percebamos isso com nitidez. Passei nove meses totalmente dedicados ao painel que está no auditório da reitoria da UFPB – Homenagem a Shakespeare – e vi que varrera as palavras da minha mente, no processo criativo. Você pensa quase que totalmente em termos de cores, linhas, volumes. A literatura é mais angustiante, pois você vai fundo na essência do ser humano. Mas é a mais rica, “visualmente” das artes, além de permitir o pensamento puro ao lado da ação. Fiquei deslumbrado, também,  quando me vi, pela primeira vez, com um teatro à minha disposição, concretizando minhas visões no palco. E viver outra pessoa, como ator (no teatro e no cinema), é qualquer coisa de poderoso. No filme A Canga, por exemplo (dirigido por Marcus Vilar e com roteiro de nós dois, baseado num trecho de romance meu), fiz um velho agricultor extremamente rude, o avesso do que sou... e isso me levou ao paroxismo. Ao final de uma cena filmada duas vezes, o Marcus Vilar e  o Walter Carvalho – que era o diretor de fotografia – tiveram de me amparar depois da palavra “Corta!”, pois eu ia desmaiando. Fazer o papel de Pilatos diante de dez mil espectadores, sob a chuva, vendo o Cristo sangrar à minha frente, foi uma experiência inenarrável. Mas em 90 deixei o teatro, em 2004 abandonei a pintura, neste ano de 2009 recusei três pequenos papéis em filmes diferentes, decidi-me pela literatura. Estou com 68 anos e o tempo já não está tão disponível. É verdade que em dezembro estréia a primeira ópera armorial, lá no Recife, com texto meu, música de meu grande parceiro Eli-Eri Moura, mas de meu ela terá apenas o texto, pois me recusei a dirigir o espetáculo, apesar do convite tentador para faze-lo. Caramba, a impressão, desconfortável, que estou sentindo agora é a de que estou me exibindo.

3- Relato de Prócula exalta, sobretudo, a questão de um incômodo que atravessa nossos instantes pós-modernos: o fosso que permeia a descrença dos homens em si e nos seus semelhantes. A que tipo de alerta estamos submetidos?

R – O grande tema do romance é a desesperada busca de coerência do personagem principal – Padre Martinho -    desde a infância, exaltada por essa efervescência cultural de tanta gente na sua região, fenômeno que a literatura e o cinema deixaram de lado pela busca eterna do exótico que parece ser a miséria com seu derivado principal: a ignorância. Apenas Ariano Suassuna, em A Pedra do Reino, mostrou que há e sempre houve  uma intensa vida intelectual no sertão, apesar da porralouquice de Quaderna e de seus amigos e suas idéias de fundar uma Academia de Letras no sertão. O exemplo a ser citado agora deveria ter sido o próprio Ariano, fruto de Taperoá, nas brenhas da Paraíba. Ou o maestro José Siqueira, de Conceição do Piancó, que fundaria a Orquestra Sinfônica Brasileira. Ou Assis Chateaubriand, de Umbuzeiro, que acabaria fundando o Museu de Arte de São Paulo, os Diários Associados e a televisão brasileira. Quixote, perto desses três , é pinto. Pois bem: Martinho, padre, é fruto dessa região. A angústia pelo sofrimento alheio e o grande carisma desse personagem, levam-no a partir para curas aparentemente milagrosas, de que acaba, arrasadoramente, desacreditando, mas já nessas alturas seminarista em Cajazeiras – lá no final da Paraíba, fronteira com Ceará. A Igreja vive, então, uma época rica, a da Teologia da Libertação, e isso o faz esquecer as dificuldades de seu intelecto poderoso em aceitar totalmente a fé, pois vive sob ídolos como Dom José Maria Pires, arcebispo da Paraíba, e Dom Hélder Câmara, de Pernambuco. Mas chega João Paulo II e, com a eminência parda do futuro Bento XVI, aposenta esses líderes, varre Leonardo Boff do mapa, acaba com a opção da Igreja pelos pobres, e Martinho se vê só,  ele e a fé. Fiz por três anos o papel de Pilatos, no Auto de Deus, de Everaldo Vasconcelos -  um grande espetáculo ao ar livre -, pesquisei muito sobre meu pequeno mas importantíssimo papel... e, de repente, tive o insight que transferi para meu personagem. Martinho, então, vive o momento de palco que vivi e tem, em sonhos e delírios, um meio de... experimentar a real presença de Cristo, através do ator com quem contracena. E se desespera ao sentir a “armação” que – ao que tudo lhe indica – acontecera em Roma e Jerusalém, a partir do momento em que – ele crê - surge um rumo certo para a vaga Fuga do Egito na infância do menino judeu: Alexandria, onde pontuava – entre tantos sábios de Israel - o filósofo Filon, hebreu mas cidadão romano.  Você me pergunta a que alerta meu romance submete o leitor. A este: de que tem de abrir os olhos até para o que considera mais santo. Por que o Sinédrio odiaria tanto o homem de Nazaré que se dizia o Messias? Porque, em seu país ocupado, o vêem pregar que devemos amar nossos inimigos e dar a César o que é de César, e que não devemos resistir ao mal. Sabedoria divina? Não: platônica. Produto do trabalho de Filon – cidadão romano, lembro – que tentou conciliar a Torah ao pensamento grego, criando, inclusive, aquela idéia do Verbo, o Logos, que aparecerá no primeiro versículo de João. É claro que meu personagem, Padre, tenta se matar ao chegar a essas conclusões.

4- Além de tratar de um tema tão complexo quanto o da fé, o livro apresenta um vasto mosaico onde se fundem, a um só tempo, visões interioranas do nordeste brasileiro e uma série de interferências do mundo moderno que acabam pondo em xeque certos arcaísmos socioculturais. Como é que você se defrontou com essa intricada perspectiva narrativa?

R – Com alegria do romancista que percebe estar com um filão novo nas mãos. Bráulio Tavares, que é mais um brilhante produto do interior paraibano, diz que meu livro, entre outras coisas, é romance regional – urbano, contemporâneo e cosmopolita. “Algo que não está nos manuais literários, e os manuais que corram a se atualizar.” Quando eu participava do longa “Lua Cambará”, de Rosemberg Cariry, no sertão cearense, em 2002, fazendo o papel de pai de Dirá Paes, encantou-me particularmente uma pequena capela, numa aldeia, com uma enorme antena parabólica no teto. Uma deformação como a do rato de laboratório com uma orelha humana no cangote, obtida em laboratório no século passado, mas poética: era a imagem da igrejinha sintonizada com Deus. Mas na verdade me pareceu um bom retrato cubista de meu Padre Martinho, um homem que tentava ouvir a palavra divina, mas devidamente instrumentalizado.

5- Numa menção aos signos evocados pela figura do personagem do Padre Martinho, diria que nossa sociedade ainda se atropela quando o assunto é resolver a equação mediada pela culpa e pelo desejo?

R – Na verdade meu personagem não tem esse problema: Trepa adoidado e vai rezar missa sem nenhum remorso. Por que, se o respeitadíssimo vigário José Antonio, de Souza, na Paraíba, tinha quinze filhos? A reação, de Martinho, em que parece haver um conflito como você aponta, é contada por outra personagem, Maricô, que desde menina tem fantasias sexuais  com ele, que é um belo homem, na verdade apaixonado pela irmã dela – Corrinha – em quem, até o final do livro, também não toca, em parte pelo imenso carinho que devota à mãe da meninas, a parteira Porcina de Donária. A verdade é que meu padre passou grande parte da vida na Igreja, mas apenas como um meio de trabalhar pelos seus conterrâneos, como vi tantos outros fazerem nos belos tempos de Dom José Maria Pires, para quem escrevi A Cantata pra Alagamar, partitura do maestro Alberto Kaplan, lançada em disco pela Marcus Pereira, de São Paulo, em 1980. Há, como eu já disse, um desespero por coerência, nele. No resto, é um homem resolvido.

6- Conhecendo um pouco de tua escrita e das tuas questões, atrevo-me a dizer que em Relato de Prócula está também o universo pessoal do homem W. J. Solha. O quanto de autobiográfico está presente ali?

R – Tolstoi dizia que em Guerra e Paz não há uma cena sequer que ele não tenha vivido. Flaubert afirmava que Madame Bovary era ele. Não vou a tanto. Os poemas de Corrinha são alguns versos meus que eu dera como perdidos quando começava a escrever o romance. As fotomanipulações de Maricô na verdade são trabalhos meus feitos em acrílica sobre tela. Na verdade fui um dos produtores do longa O Salário da Morte. Na verdade fiz o papel de Pilatos. Na verdade andei imaginando que tinha o poder de curar pessoas. Mas a coisa para por aí. Tanto que o narrador da história, originalmente, era eu mesmo, com todas as letras, mas o poeta gaúcho Paulo Bentancur me disse que isso tornava o romance muito autorreferente, donde transferi a história para um gaúcho de nome Rubens (o mestre do Barroco) Bentancur, em homenagem a ele. Veja só: o Padre tenta se matar e falha, exatamente como meu amigo jornalista Nathanael Alves me contou que se dera com ele, inclusive no que se refere àquela experiência de quase morte, com a vida toda repassando na mente como se fosse um filme. O Padre vai ao Programa do Jô, exatamente como outro amigo, Ivan Cineminha, daqui de João Pessoa, chegando a refrescar a memória de Anthony Quinn, também presente, a respeito de alguns filmes em que trabalhara. A cena louca em que o Padre transa com Maricô, tirei-a de um Youtube pornô, mandado por outro amigo, o ator Osvaldo Travassos. Em Pombal houve, realmente, um Padre Martinho, que era Martinho Salgado, não Lutero Libório, uma grande figura que, entre outras coisas, abrigou toda a equipe do filme O Salário da Morte no Colégio Diocesano, que dirigia. Foi para ele que realmente li um ensaio mostrando a derivação platônica dos evangelhos, no começo de minhas angústias religiosas. Mas a coisa ficou por aí. Tive, realmente, dois amigos imensos em Pombal, cultíssimos: o Doutor Atêncio Wanderley e o ator Horácio de Freitas, mas tudo que há deles  no romance reduziu-se a nomes (que me pareceram insubstituíveis)  e a modos de ser. Como se... tivesse me servido deles como atores, num filme. Muita coisa que li de Bertrand Russell eram do Horácio, dono do Mundo Novo (fazenda que, no romance, pertence ao Padre Martinho). Muito do que li de economia e filosofia era do Dr. Atêncio, o homem mais culto que já conheci, um médico modesto, que lia De Bello Gallico no original e ouvia a BBC de Londres, na ditadura, em inglês, para inteirar-se do que por aqui não era possível. Os castelinhos, num dos quais mora Corrinha com a tia, em João Pessoa, realmente estão lá na Praça da Independência e passo sempre diante deles: num andei estudando pintura com Flávio Tavares e Marlene de Almeida, noutro está-se preparando um Museu do Império. Tudo, num romance, é como um tapete que se tece, como colcha de retalhos. Não se trata de História, em que se conta o que houve, mas de Poesia, em que se fala sobre o que poderia ter sido.

7- É possível perceber as variadas faces do contraditório espírito humano pairando por entre as suas telas. Nesse aspecto, considera que sua arte preconiza uma espécie de libertação?

R – Nem tanto, Fabrício. Parei de pintar em 2004, depois de ver uma exposição que fiz aqui em João Pessoa, com cerca de cem telas. Senti que aquele mundo de quadros não me levara nem me levava a nada, exatamente como quando fui montar meu terceiro espetáculo e vi que não deveria insistir naquele beco sem saída, ou como  quando me chamaram agora para uma ponta no longa sobre Gregório Bezerra, aí em Pernambuco, e percebi que, como ator, o que tinha que dar eu já dera. Você fala em variadas faces do contraditório espírito humano pairando por entre as minhas telas. Tanto isso é verdade, que Maricô junta dezesseis de suas criações – minhas – e intitula a “instalação” resultante de “Ando muito confusa”. A Arte me parece perdida há já bastante tempo. Tenho, na estante atrás de mim, um livro do Mário pedrosa, “Mundo, Homem, Arte em Crise”, que é dos anos 80. Tenho outro, de Ortega y Gasset – “A Desumanização da Arte” -, que é de 1925. Dizem que a esterilidade – como a da velha mãe de Samuel e a da virgem Maria – um dia termina em milagre. Às vezes isso acontece. As histórias em quadrinhos, por exemplo, pareciam ter chegado ao fim, esgotadas,  quando de repente ressurgiram com muito, mas muito mais força do que antes. Um dia, em 1989, eu estava pintando “A Ceia” no Sindicato dos Bancários, quando um colega me parabenizou pela cena de 3,60 m de largura, em que Marx dizia “Um de vós de trairá”, causando aquele alvoroço leonardesco em Mao, Lênin, Stálin, Trotsky, Ho Chi Minh, Allende, Guevara, Fidel e Gorbachev. “Bobagem, – eu lhe disse – o figurativismo já era, ninguém, mais, dá valor a nada disso.” No dia seguinte ele me trouxe uma Folha de São Paulo em que se dava a notícia de que quadros de Hopper ou Lucian Freud estavam provocando filas imensas no Moma, de Nova Iorque, que até então os recusara, por julgá-los “pouco modernos”. Eu não sabia, mas com “A Ceia” criava minha primeira tela pós-moderna. Esse tempo também se foi, com o paraibano José Rufino ganhando fama enorme nas bienais, com suas instalações. Não acho, portanto, que minha pintura rumava para a libertação. A imagem que me ocorre era a que eu via sempre na estação da Sorocabana, em minha cidade natal: o final das paralelas de trilho curvando-se pra cima e, a um metro e meio de altura, travadas por um dormente atravessado.

8- Chama atenção em algumas de suas pinturas o desgaste trazido pela nossa sociedade de consumo, algo que traz à tona uma provocação ao papel do indivíduo em meio à enxurrada de informações a que está submetido. Estamos fadados a uma falsa sensação de domínio diante dessa vastidão de conteúdos?

R – Agora mesmo, enquanto escrevo um novo poema longo com pretensões totalizantes,  estou lendo “A Vida modo de usar”, de Georges Perec, um grande presente do poeta e tradutor Ivo Barroso, em que a mente humana vasculha tudo, tudo, sem limitações, sem medo dessa “enxurrada – como diz você - de informações”. Meu próprio “Relato de Prócula” atropela esse medo. Por que um romance com medo de informações? Por que, se convivo com tanta gente brilhante, não incluir seus diálogos num romance? Minhas telas, sem a mesma força de meus textos, dizem o mesmo. Há um quadro meu em que há um grupo de pessoas preso por trás de uma grade composta de vinte e uma crucifixões que reproduzi – de Velázques a Gauguin, de Giotto a Cimabue -, mostrando o que entendo por “domínio”.  Há outro em que a parte superior do “Enterro do Conde de Orgaz”, do El Greco, a que mostra a entrada da alma do finado no céu, eu a substitui pelo lançamento de uma nave espacial. Falo só contra a religião? Não: noutro quadro meu, ante uma gigantesca estação orbital, Dali vê, aterrorizado, seus pincéis “broxarem” como seus relógios moles. Isso talvez derive de uma leitura assombrada que fiz do balanço final que Eric Hobsbawn desenvolve em “A Era dos Extremos”, no qual ele constata que a última obra literária de consenso universal foi “Cem Anos de Solidão”, de 1967, e que não temos, mais, nenhum nome, na pintura, como o de Pablo Picasso. Ele se pergunta: o homem ficou mais pobre? Não: seus interesses foram canalizados para a ciência e tecnologia. Mas quem sabe o que vem por aí? 

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