sábado, junho 23, 2012

MIOLO DE POTE 19

W. J. Solha 

1) Todo dia, a las cinco de la tarde en punto,  estou estafado de um trabalho que começa às 5 da manhã,  e relaxo: vou ver mais um episódio do detetive Robert “Bobby” Goren, na série  Law & Order: Criminal Intent, em que o figuraço é interpretado por um excelente  ator chamado Vincent  D´Onofrio,  fruto do Actor´s Studio e do American Stanislavski Theatre.




Aliás, o que me impressiona nesse tipo de  “enlatado” americano é a excelência não só do elenco principal, linha mestra do programa, como dos convidados.  E mil vezes já me perguntei “como é que um roteirista abre mão de um tremendo romance policial, de um fabuloso longa do tripo thriller em potencial... e investe num  programa... episódico, que talvez jamais seja visto outra vez? Bobby é não só um cara que estudou criminalística até onde podia , como um sujeito culto como o diabo, dono de uma indefinida tristeza, angústia, no seu modo de ser.



2)  Recebo dois álbuns de João Lobo: “Tessituras Urbanas” e “Across Lens”.  São, logo de cara, dois belos projetos gráficos de Mônica Câmara e da Editora Universitária UFPB, em papel cuchê fosco de um branco explícito, a propósito utilizado como magnífico suporte das séries fotográficas em preto, branco e vários cinzas.  Os  inquietantes desfoques, velocidades “incorretas” e “indevidas” vacilações, fazem-me pensar que nosso fotógrafo  - sempre experimentando tanto quanto Da Vinci –  parece querer fechar o círculo iniciado com os efeitos do surgimento da fotografia junto aos artistas plásticos do final do século XIX, que viram, nela, uma capacidade de reprodução da realidade que nenhum deles, por mais realista que fosse, possuía. Daí o impressionismo, cubismo, abstracionismo e derivados, num recuo ostensivo da  proposta anterior de reproduzir a Natureza,  fato que ficou plasmado num famoso diálogo ante uma tela de Cézanne:

- Nunca vi mulher de barriga verde!

- Isso não é mulher, meu caro: é um quadro.

João Lobo, agora:

- Isso não é flagra: é foto.

3) Não assisto novelas de TV. Exigem um tempo disponível enorme. E, embora a Globo desenvolva um trabalho  notável na área, parece-me que o gênero, que é novo, ainda não se encontrou de fato, apesar de Saramandaia e do Roque Santeiro.  Trabalhando em meu gabinete, no entanto, ouço de longe os sons de Avenida Brasil e comento com meu neto, que joga xadrez no computador ao lado: “Ainda não vi um capítulo sequer, de qualquer novela, em que não houvesse mulher chorando. E acho terrível essa constante gritaria. A maioria dos diálogos vem com gritos. Onde é que existe gente assim? No Rio?”

4) Grande sucesso em todo o mundo do pintor negro nova-iorquino Kehinde Wiley, consagrando-se por seus retratos hiper-realistas de africanos, afro-americanos,  afro-brasileiros, afros de qualquer parte. É curioso como ele me parece a mixagem de dois artistas: Albert Eckhout, que veio ao Brasil na comitiva de Nassau e fez retratos como estes, de  emissários do Congo...

 



.. e nossa contemporânea  e conterrânea Beatriz Milhazes, nos desenhos floreais com que ele preenche o fundo de suas telas:


Olha o trabalho do cara:


Uma tônica na obra dele  é a substituição de figuras de homens brancos  por luzidios negros em quadros clássicos célebres,  como aqui, neste, feito a partir de Géricault:


... ou neste,  d´aprés  Jacques-Louis David:


A vida realmente segue em ondas, como o mar.Com nosso amigo, eis aí a tela, eis aí figura retumbantemente de volta!


5) Comentário de Joedson Adriano sobre meu “Marco do Mundo”:

UM ÉPICO DO NOVO MILÊNIO CHEIO DE MILÊNIOS

                                                          MARCO DO MUNDO

a Babel de todas  as línguas se ergue
na portuguesa abismal de Solha
e o abismo cheio de demônios brilha
foguete pra cima se eu não for eu cegue?
pra isso o espírito todo canto trilha
tira a matéria de poetas à jegue
e jogos ingleses do maior há quem negue
afirma em cima da sua cisma de milhas
ideia que não se fixa se curva em luz
no escuro pra antes e mixa pro céu
as formas do arcabouço de fuzil e arcabuz
dispara a comparar tudo a tudo e ao seu
pro após se prepara nem tanto um Jesus
pro eterno fogo que nem Prometeu


Eis que um poema longo, o que há de mais difícil em literatura, aparece. Dificílimo tanto de fazer quanto de ler. Entanto W. J. Solha insiste glorioso com seu MARCO DO MUNDO. Pois em literatura não há, mas nem de longe, nada mais prazeroso que ler e escrever um poema de amplitude além de rede sociais, da vida e da internet, além de mim e você. Insiste já que este é o segundo épico do autor. O primeiro, TRIGAL COM CORVOS, parelha com os melhores, e listo alguns, brasileiros: IVENÇÃO DO MAR e OS PEÃS (Gerardo Mello Mourão); IVENÇÃO DE ORFEU (Jorge de Lima); PEDRA DA TRANSMUTAÇÃO (Foed Castro Chamma); POEMA SUJO (Ferreira Gullar); SÍSIFO e LATINOAMÉRICA (Marcus Accioly); A JUVENTUDE DOS DEUSES (Alexei Bueno); A GRANDE FALA DO ÍNDIO GUARANI e A CATEDRAL DE COLÔNIA (Affonso Romano de Sant’anna); O CAMPEADOR E O VENTO (Carlos Nejar); ROMANCEIRO DA INCOFINDÊNCIA (Cecília Meireles); GALÁXIAS (Haroldo de Campos). E só dos anos cinquenta pra cá, o que nos prova, provam pela qualidade, e a quantidade de outros, alguns tão bons quanto, que o poema épico vive na atualidade. Os poetas é que não sobrevivem como sempre, mas isso nem os líricos. Então que insistamos, do amanhã ninguém sabe. E agora, igualmente eterno aos citados, é a vez deste MARCO. Que antes de começar homenageia dois grandes cordelistas paraibanos: João Martins de Athayde (autor de Marco do Meio do Mundo, 1915) e Leandro Gomes de Barros (autor de Como Derribei o Marco do Meio do Mundo, 1917); e diz que quer superá-los, falsamente modesto, pois no seu poema erudito o que Solha deseja é superar os grandes de todos os tempos e lugares, e não os populares, estes com qualidades, mas não com a qualidade de entrar pra plêiade, e o MARCO consegue. Os cordelistas são famosos por se gabarem, por se dizerem mais machos e poderosos que os rivais,  e a tradição dos marcos (outros foram surgindo) exemplifica bem isso: são construções exageradas de castelos e torres, como se numa competição pra ver quem tem o pênis maior: mostra o teu que eu mostro o meu. Solha não se gaba tão explicitamente como os cordelistas, talvez porque seus rivais são bem mais poderosos, porém constrói sua torre com firmeza, com pedras de todo o mundo, esbanjando cultura, e supera de longe seus supostos adversários, se tornando rival dos grandes poetas. Entre deus e o diabo, o poeta consegue seu épico do mundo, cosmopolita, une a terra toda, ou tenta. Essa é tentativa de todo grande homem: unificar o mundo sob suas mãos salvadoras, no caso do poeta através da palavra, e neste caso específico em seu próprio nome e não em nome de um povo, religião ou ideologia. E narra sem narrativa, ao menos não linear, pois cheia de visagens essa sua vernissage, que apesar de aberta a todos, poucos são os abertos a ela. Visagens que veem a máquina do mundo, interligadas, mas não diretamente, sim essencialmente na construção de si próprio: um monumento estético. Aqui a história e o grande  teatro da terra toda, o que dá na mesma coisa: a mitologia do mundo. E pra tanto uma profusão de referências à arte, mitologia, história, religião, filosofia, ciência, tecnologia. Um poema repleto de listas de famosos, enumerações de lugares e genealogias de povos, que podem assustar o leitor comum, e devem, não é para o leitor comum. É incomum, obscuro, acima da mediocridade reinante na vida e na arte. O verso é o chamado livre, mas não existe liberdade sob as mãos dos tiranos bons poetas, e apesar de às vezes, poucas, este poeta seja coloquial e prosaico, o tom é elevado e o ritmo frenético, quase nada de cotidiano, e, como seu mestre Shakespeare, o autor do MARCO abusa de aliterações, rimas e trocadilhos. Artifícios eternos que muitos inodoros, insípidos e incolores acham ultrapassados, pois os tais de pulmões fracos não ultrapassam suas cabisbaixas vozes. Abusa de metáforas, as quais os mesmos medíocres e outros desdenham, pois não pensam acima da velocidade da luz e acham impossível que isso aconteça, mas acontece neste grande poema, grande em qualidade principalmente, e os fracotes não fazem um haikai que preste. E no MARCO há até alguns haicais disfarçados, é só procurar, não tenha preguiça leitor. Aqui, como desde o Gênesis, o humano nasce do húmus, mas não se humilha, cresce e se multiplica através do verbo criador.


7) Tenho triste memória da Sinfonia 40 de Mozart. Eu a ouvia pelo rádio da sala de minha casa (tinha uns 18 anos) quando meu pai chegou da missa enfurecido:

- Baixe essa porcaria! De lá da esquina eu estava ouvindo esse escândalo! Você tá surdo?

Desliguei o rádio e fui ouvir o resto da 40 - prosseguindo-a na memória  - no aparelho que havia entre minha cama e a de meu irmãos, sobre um criado mudo. O bicho demorou pra esquentar, e - enquanto eu prosseguia a obra de Mozart na memória - ouvi minha mãe me defendendo, dizendo que eu tinha só o domingo pra ouvir o que queria, etc, etc, o velho dizendo que eu devia fazer como meu irmão e estar namorando, em vez de ficar ouvindo essas merdas o tempo todo. E aí o som chegou, ouvi a orquestra, o som se foi, continuei cobrindo a lacuna com a memória, ouvi meu pai me esculhambando, o som voltou, se foi, de novo a memória, ouvi meu pai me esculhambando, fechei o punho, recuei-o e dei um murro no rádio, cujo som parou, incluindo o mental. Tirei minha mão tremente do meio das válvulas, meu irmão entrou, viu o estrago, meu pai entrou, meu irmão deitou-se na cama e forçou o ombro pra encobrir o que eu fizera, meu pai desconfiou, "O que foi isso?"  e berrei: Fui eu que quebrei e está quebrado: pago o conserto e pronto!" E saí, puto. Chocado, o velho foi atrás e, pela primeira vez, em toda a vida, conversou comigo.

8) Comentário de Jorge Elias Neto:

Marco do Mundo é livro para embriagar. Daqueles porres que tomamos algumas vezes, quando só paramos de beber na última gota – foi assim que li seu livro.

As imagens iniciais do poema alteram nossa estabilidade, nos lançam em queda. O poeta é um atleta do abismo, um alpinista do nada, é no que acredito. É o que vi em seu livro.

Poema feito com pedras marroadas, retiradas de trechos significativos da trajetória humana e cuidadosamente arranjadas.

Sempre tive receio de poemas longos, das oscilações, quedas e ascensões que podem prejudicar o todo. Tive certa essa sensação quando li o grande Poema Sujo, disse: Isso não é para mim...

Tenho um hábito que tem se repetido cada vez mais raramente: quando termino de ler um livro que gosto muito (acho que seja algo comum aos apaixonados por literatura), olho a capa, a contra-capa e faço um leve carinho.

Ao acabar seu livro pude repetir algo que mantém acessa minha paixão.

9) Comentário de Dércio Braúna:

Não tenho o dom dos senhores da crítica. Tenho, sim, um sentir que me toca quando tenho diante das mãos e dos olhos belas coisas como esse teu mundo em turbilhão, em gestação, em cria, (...) esse teu mundo telúrico, barroco, gritante, inquietante... magnífico.

1O) Wellington Pereira me mandou  seu novo livro:

Como Hildeberto Barbosa já deu visão geral da obra no prefácio, atenho-me ao meu conto predileto,  nele, de umas seis páginas – “Madame Bovary sou eu”. Coincidência ou não, foi em sua ilustração que Flávio Tavares me pareceu mais feliz, no volume. Fui aluno dele, na antiga escola de Arte de Marlene Almeida - no castelinho da Praça da Independência,  que transformei em residência de uma de minhas personagens em  meu romance “Relato de Prócula” -  e é impressionante ver  o mestre desenhar numa folha grande e branca, na vertical: é de uma desenvoltura única. Na tal ilustração  - embarcando no tema do ópio -  ele  dá uma de Picasso e Ismael Nery,   criando uma mulher com dois perfis, feito Janus, sendo que do posterior prossegue a curva do queixo, subindo para contornar o interior da efígie, daí desce para a testa de idêntico perfil seguinte, mais abaixo, e de novo, e de novo, reiterando o jogo circular cinco vezes, sendo que no último lance ele faz o contorno e desce a linha até o cachimbo de ópio de outra figura, essa deitada, como se o traço contínuo lhe fosse a delirante fumaça. Wellington, por sua vez, enriquece a cena criando falas de Flaubert com Quincey abertas por travessões, intercalando-as com falas diretas, que são do romancista com sua criatura, Bovary. É incrível que  Wellingtondesenvolva esse momento à Woody Allen no “Meia noite em Paris” a partir de tão pouco: a famosa frase do romancista : “Madame Bovary sou eu”. E é genial, a bronca: “Bovary, volte direto para o quarto... Quarto parágrafo!”

11) Desde 2 de fevereiro trabalho em meu novo poema longo, Ecce Homo. Somente agora, no começo de junho, depois de tanto trabalho e angústia,  vejo-o começando a tomar forma.

12) Num destes Miolos de Potes sugeri que se assistisse a uma ária da ópera La Cenerentola, A Cinderela de Rossini, numa versão brilhante. Aqui temos outra ainda mais soberba – cinematográfica – para o sexteto preciso e maravilhoso:

http://www.youtube.com/watch?v=NB14yuKef1s&feature=results_main&playnext=1&list=PLDBB1D832AE80331C 

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