domingo, maio 20, 2012
Meu Tipo Inesquecível - Julia
Hugo Caldas
Idade indefinida, umas poucas rugas na pele amarelada, olhos vivíssimos, baixinha, atarracada, cabelos longos e sedosos, de um preto reluzente. Dentes separados e amarelos de tanto fumar cachimbo. Andava com um movimento ritmado como se estivesse remando. Língua sempre pronta com uma resposta apropriada ao momento. Pela perspicácia, talvez fosse a cópia feminina mais aproximada de João Grilo, o herói nordestino.
Vinha de um interior mais ou menos desconhecido. Toda a sua família sempre trabalhara como cassacos em uma usina de cana de açúcar das imediações da sua casa. De vez em quando cismava de mudar de ares e ia trabalhar nas casas das minhas tias, onde mandava e desmandava em tudo e em todos. Depois voltava. Ela nos adotara. Fazia qualquer coisa nesse mundo, menos nos deixar para sempre. Praticamente ajudou minha mãe a criar os filhos menores. Ótima quituteira e se virava bem no trivial variado.
Certa vez querendo fazer um lanche, meu irmão Manfredo, se queixou da falta de uma fruta qualquer.
- Puxa vida, Julia, não tem mais abacate nessa casa? E ela responde com outra pergunta, mãos nos quartos, autoritária, insolente toda:
- Tu gosta de abacate, Mezin? (era assim que ela chamava Manfredo)
- Gosto, sim. E ela:
- Num parece, num compra!
Todas as tardes enquanto "areava" os talheres do almoço ela, pito pendurado no beiço, cantava uma parte do Hino Nacional, bem à sua maneira:
- "... se o pendão da cristandade
- terra adorada
- vem cá meu bem..."
Numa das andanças pelas casas das minhas tias ela andou escorregando na casca de banana. Apareceu com uma blenorragia e o meu tio a colocou debaixo de confissão a fim de saber como tratar a traiçoeira doença. Ela terminou por contar como se deu a melódia. Um pérfido verdureiro que todos os dias vinha pela rua a oferecer seus produtos (na época, existiam vendedores ambulantes de porta em porta, verdureiros, leiteiros etc). Pois muito bem, numa dessas, ele passou-lhe a conversa e à noite foram "prosear" debaixo de uma enorme mangueira da Avenida João Machado. Meu tio a levou ao médico e contratou um enfermeiro para uma série de injeções, inúmeros "cachetes" e conselhos para lavar muito bem as mãos e, sobretudo: "nada de prosa".
Durante o tempo em que passou no "estaleiro" se tratando, apareceram na casa dois gatinhos recém-nascidos que alguém deixara no jardim. Um branquinho com manchas pretas e outro, rajado de amarelo e branco. Ela cuidava dos dois com o maior zelo. Logo os batizou de "Branco e Preto e Duascô". Anos mais tarde ao assistir ao filme "Dança com lobos" e ver o Kevin Costner chamar um lobo de "White Socks" (Meias Brancas) me lembrei dela e dos gatinhos! Senti um aperto no coração.
Jamais constatei Júlia indo ou vindo de uma igreja. Era arredia mesmo, em se tratando de religião. Ela era livre o bastante e não queria que nada cerceasse a sua liberdade. O fato é que certa vez lhe convidaram para um culto evangélico. Voltou com a cara mais limpa desse mundo. Meu tio querendo fazer onda, perguntou:
- E então Júlia, recebeu Jesus no coração? E ela:
- Quá, meu Xico, "das telhas pra riba eu não quero conversa"! Sábias palavras.
O vigário do bairro era meu primo e via de regra dava uma passada em nossa casa para ver os tios e primos. Como era capelão da polícia militar envergava um uniforme de capitão. Júlia, vinha então até a sala, não dizia nada mas ficava olhando o Padre Eurivaldo pelo canto do olho, "cubando" o estranho sacerdote. Era demais para ela entender um padre sem vestir batina e ainda por cima, metido numa farda de soldado da polícia.
Década de 60, televisão chegando à Paraíba. Imagem incipiente, horrorosa, sempre dependendo de uma antena externa que não valia muita coisa, mas mesmo assim era a novidade. As novelas eram, como sempre, a "coqueluche" (depressa, chama o Aurélio) do momento.
No tocante às novelas, ela se envolvia nas histórias de tal modo que acredito, vivia todas as aventuras em um mundo particular, todo seu. "O Sheik de Agadir", foi uma novela de aventuras e mistérios cuja história se passava no deserto, um prato feito de encomenda para quem gostasse do tipo de enredo. Mario Lago, o grande ator, interpretava Otto Von Lucken, um general alemão, arrogante e prepotente, elegantíssimo no seu uniforme. Utilizava um tapa-olho, talvez para ganhar um ar mais agressivo, sempre às voltas com espiões e outros fatos estranhos e imponderáveis. Julia era indiscutivelmente a fã número um do general a quem ela chamava "João Luca". O tempo foi passando a novela se arrastando e Julia terminou por não mais discernir a realidade da ficção. Algum tempo depois Mario Lago aparece em um Caso Especial fazendo o papel de um ébrio, numa mesa de bar, todo esfarrapado, barba por fazer, desgrenhado, enfim, um lixo de pessoa. Comentário de Julia:
Mas João Luca, como é que se chega numa situação dessa, homem de Deus? Quem te viu e quem te vê... Quá, meu Xico! E desolada, saiu da sala.
Quando no início dos anos 70, Seu Américo e Dona Dalva vieram de mudança para o Recife, minha mãe quis que ela viesse também. Veio, mas contra a sua vontade. Após uns três meses não aguentou e decidiu voltar à Paraíba. Detestou o Recife, "muito barulhoso". Voltou e foi trabalhar com outra das minhas tias. Desta vez não teve retorno. Fui, com a minha mãe levá-la à antiga rodoviária. Foi um longo e demorado abraço. Foi também a última vez em que a ví. Hoje, após todos estes anos, Julia tornou-se uma doce e suave lembrança.
Assinar:
Postar comentários (Atom)

9 comentários:
Prabéns Hugo à altura de um Rubem Braga se é que não lhe (vc) desmereço na comparação.
Muito bom, rapaz! Me deu uma saudade danada. Nó na garganta... Manfredo
Hugo,
Formidável! Emocionante como não poderia deixar de ser, com uma pitada de humor. Uma graça! Abraços. Márcia
Maravilha de texto, amigo Hugo. Beleza de memória.
Você foi fundo. Toca a alma e o coração. Parabéns.
Conheci Julia no casamento de Janete e Fernando no anos 70 na Paraíba e gostei logo dela. De personalidae marcante dentro de sua rude pessoa havia um coração enorme e o que falava vinha com muito senso de humor.
Ela fazia parte da família Caldas.
Muito bom! Mary
Olá primo,boa noite.
Sempre leio o seu Blog, os assuntos postados são fora de série, sempre há uma novidade, uma curiosidade.
Seu texto falando da Júlia é demais, o título não poderia ser melhor, remete à seção da revista Seleções onde os textos igualmente eram inesquecíveis.
Não conheci pessoalmente a Júlia, mas as suas histórias são do meu conhecimento através de relatos da tia Laura e tia Dalva.
Era uma figura!
Abraços Solange.
Muito a propósito ess blog, caro hugo. Tivemos alguém como Julia em nossa casa, chamava-se Rita da qual eu e meus 4 irmãos guardamos uma enorme saudade. Hoje, parece que ninguém mais respeita e acolhe essas figuras da maneira que fazíamos.As novelas da Globo estão aí para mostrar. Em todas os/as protagonistas dão ordens insultuosas com gritos de "estrupício" e outros adjetivos depreciativos. Uma lástima. Mais uma vez, obrigado. Renato - Vitoria, ES
Pai, suas memórias são poesia pura. Esse conto é uma maravilha de se ler, nos remetendo, pela habilidade das suas palavras, às situações da sua vida. Júlia já é íntima minha. Parece que vivi momentos com ela.
Te amo, Painho!
Postar um comentário