domingo, abril 22, 2012

RECUERDO 22 - JOÃO PESSOA - ALGUMAS COISAS QUE GUARDEI...

Hugo Caldas

Este texto foi postado num tempo em que pareciam ressurgir as querelas Liberais e Perrepistas em solo paraibano. Na falta do que fazer cismaram de mudar o nome da cidade. Do Recife enviei o meu protesto. Acho que ajudei em alguma coisa, a cidade continua a usar a denominação antiga, João Pessoa. HC

Guy Joseph meu dileto primo, que me perdoe pelo uso da designação arranjada às pressas em 1930. Mas eu prefiro. Razões sentimentais. Também sou paraíba e não nego. Há porém, um sentimento que me perturba o coração e a mente desde que, nos idos de 1959 decidi vir morar no Recife, mercê a minha aprovação para trabalhar na Panair do Brasil - já lá se vãos os bons tempos em que fazíamos concurso para atuar na empresa privada. Não importa, porém, a quase perfeita integração. Aqui eu casei e tive filhos porém, tenho a mais perfeita noção de que serei um eterno forasteiro na Mauricéia. Por outro lado, todas as vezes que volto a João Pessoa, seja a passeio ou negócio sinto, apesar do carinho dos amigos que ainda moram lá, que não mais pertenço à Tribo dos Tabajaras. É angustiante.

Mas, o que fizeram da minha cidade?

O primeiro chute na cara é quando porventura tenho a desdita de passar pelo Ponto de Cem Réis. Quem teve a infeliz idéia, a audácia de transformar um lugar tão belo e aconchegante nesta coisa deprimente, emparedada? Cadê o bonde dando a curva em frente ao Parahíba Hotel? Cadê o relógio no centro da praça? Cadê a "Esquina do Pecado"? O que fizeram com o Café Alvear? A Sorveteria Florida? O Bar Havaí? O Cine Plaza?

Aqui vão umas poucas coisas, que eu guardei com o maior carinho, desde os meus sete anos de idade, a respeito desta mui amada cidade que à época parecia querer extrapolar os muros da casa de número 47, da Rua Capitão José Pessoa, residência do meu avô, em Jaguaribe, onde ele abrigava sua família, suas filhas e eu, então seu único neto.

- Oswaldo Pessoa, era o prefeito da cidade e morava perto da nossa casa. Família numerosa, várias filhas e Candinho, seu único filho, e um dos meus herois, juntamente com o Super-Homem e o Capitão Marvel, mas na verdade um malandrão de quatro costados. Certa vez ouvi Candinho numa conversa, dizer que lavava as mãos antes de ir dormir. Achei aquilo surpreendente, não sei bem porque.

Em frente morava Lourdinha Flôres sua namorada, em um sobradinho meio sombrio, que mais tarde seria a morada de Dr. Napoleão Laureano. Depois foi residência de uma tia minha que afirmava por todos os anjos do céu e os diabos dos infernos, ter visto almas penadas passeando pelos corredores e salas escuras do sobrado.

Certo dia correu na rua um boato, dando conta que Candinho, praticamente noivo de Lourdinha Flôres, havia avançado o sinal e comido a merenda antes da hora do lanche. Pode-se bem imaginar o tipo de falatório, a mofa, o disse-me-disse, sobre semelhante acontecimento contra os bons costumes e as regras do bem viver em plena década de 40. Como um chiste, o seguinte diálogo apareceu na boca do povo:

- Candinho, você quer casar com Lourdinha Flôres?
- Não senhor, meu pai.
- Mas sabe que vai casar com Lourdinha Flôres?
- Sei sim senhor, meu pai.

Casaram. É bem verdade que o casamento não durou muito tempo, mas...enquanto isso assumo devem ter sido felizes. Lourdinha Flôres era uma moça muito bonita.

- Nas quarteladas da vida e em qualquer tumulto da direita, o Dr. Santa Cruz era sempre o primeiro a ser preso. Lembrava o filme Casablanca, quando o Capitão Renault, (Claude Rains) vira-se para o ajudante e diz: "Prenda os suspeitos de sempre". Em pleno abril de 64, "revolução" em marcha acelerada, feito serpente recém-saída do ovo, pediu o Dr. Santa Cruz que sua esposa lhe preparasse uma valise com algumas roupas, sabonete, pasta de dentes, escova, estojo de barba etc, mais alguns remédios e postou-se no terraço à espera do inexorável camburão do exército. Dito e feito. Não deu meia hora apareceu um tenente recém-saído das fraldas (havia sido seu aluno na faculdade de Direito) com um aparato militar de fazer corar um senador da república.

"Mas tenente, era preciso mesmo essa parafernália toda apenas para prender um velho professor? Bastava ter dado um telefonema que eu iria. Não carecia de o senhor se preocupar..."

- Por onde anda Fernando Macedo? Ele juntamente com Breno Mattos, eram os "comunistas" mais manjados da cidade. Fernando, nos shows produzidos pelo Teatro de Estudantes, vestia uma roupa colada ao corpo, camisa aberta ao peito, mangas frufru, ao mesmo tempo em que empunhava duas maracas nas danças cubanas, num requebrado pra lá de sensual. Breno era chegado a fumar cigarros americanos bebia uísque e dançava rock and roll, dá pra acreditar? Certa vez, Lindaura Pedrosa encenou "O Boi e o Burro a caminho de Belém", um auto de natal de Maria Clara Machado, e convidou Fernando para o papel de um dos pastores. Eu fazia um dos Reis Magos. Estávamos sempre perto um do outro. Durante a encenação, ao ar livre, no adro da Catedral, Fernando devidamente trajado como pastor, saiote de estopa, pequeno carneiro nos braços, cordas enrodilhadas nas pernas à guisa de sandálias, sentiu que alguém alisava as suas coxas. Foi o maior tumulto. Gritaria, empurra-empurra e de repente o canto mais limpo. O "pastor" deixa a cena, correndo atrás de um sujeito baixinho com cara de tarado. Debalde. O nefando indivíduo perdeu-se no meio da multidão e Fernando ainda foi devidamente admoestado por uma Lindaura furiosa, pelo absoluto desrespeito ao Auto de Natal, aos princípios cristãos e à tradição teatral.

- Os doidos da minha terra. Pombú do Pé Roxo, Cristóvão Pé no freio, Oscar Aragão, Pão de Bico, Ariranha, Imbuzeiro, Daniel, Dr. Mario, Mocidade, uma plêiade. Havia categorias:

- Doidos políticos: Mocidade, Dr. Mario e especialmente Daniel, contínuo da Secretaria da Fazenda que irrompia o sagrado recinto dos bares aos gritos de "forca com eles, casacudos e venais da república", e malucos pela própria natureza como: Pão de Bico e Ariranha, que ao ouvir o grito "amostra Ariranha", levantava saia e mostrava as partes ditas pudendas. Certa vez Pão de Bico, católico/carola até a medula, vinha todo compenetrado, acompanhando uma procissão, com o seu passinho característico na ponta dos pés, rezando e cantando, missal em uma mão, terço na outra, fita vermelha com medalha de São Severino pendurada no pescoço...

"o meu coração é só de Jesus
A minha alegria
(alguém grita - "Pão de Bico," ele emenda, no ritmo e no tom)
é o cu da mãe"

A última lembrança que guardo de Mocidade: íamos os dois descendo no bonde do comércio quando ao final da viagem ele foi reclamar do cobrador o troco ainda não recebido... "Chega de roubalheira nesta República"!

Imbuzeiro, alto, moreno carapinha branca, olhos desencontrados, eternamente babando, ia à pé, diariamente numa passada característica, de Jaguaribe até o velho Ponto de Cem Réis com uma geringonça de madeira e papel às costas, que amarrava em um poste elétrico fazendo as vezes de cartaz do filme em exibição à noite no Cine Jaguaribe. Pombú e Cristóvão eram exímios no uso das mais variadas palavras de baixo calão, que berravam aos quatro cantos, onde quer que estivessem e ouvissem a menção dos seus respectivos apelidos. Oscar Aragão era uma mansidão de cordeiro. Ia sempre à missa na Catedral ocasião em que ajoelhado, soltava uma série de "puns" desagradáveis e sonoros. Não tinha um dente na boca e cantava o Hino Nacional todas as vezes que algum jovem mais, digamos desumano o chamava de comunista. Uma pândega. E uma crueldade, por suposto. Esta a João Pessoa que gostaria de rever. Esta a João Pessoa que ainda me faz muita falta. Reafirmo: "Sou Paraíba e não nego".

11 comentários:

ana arnaud disse...

Adoro ler seus textos de saudade!
Aguardo o livro de memórias.

Francisco Nunes da costa disse...

Lembro bem desses personagens!
Mocidade: andava sempre trajando roupas que lhe doavam e que nem sempre eram do seu tamanho exato o que lhe dava um certo ar de desleixo. Poucos dentes, maltratados. Nunca se recusava a estar em qualquer ajuntamento de pessoas, participava até de discursos inflamados. Sentia-se um orador nato. Falamos da mesma pessoa?
Pão de Bico: No meu tempo, parecia um velhote, embora tivesse uns 45 anos. Baixo, gordo,andar lento e trajava sempre a mesma gravata, o mesmo sapato e um chapeuzinho atolado na cabeça. Por onde passava era só cumprimentos com gestos humildes e simpáticos. Figura conhecida de todos. Certa vez, o padeiro de todo dia passou, aos gritos, anunciando as delícias da padaria: "Pão de Bico, suiço e doce!" Todos que ouviram ficavam tristes e lamentavam: "Coitado! Pão de Bico suicidou-se!!!Por que? Não tinha motivos...parecia tão feliz..."
E Fernando Macedo? Você conheceu, Hugo? cabelinho engomado, roupa branca, gravatinha preta, de laço, passeando na Lagoa, sempre pronto a recitar pensamentos de Shopenhauer...
Hugo, seu texto me remete a tempos bem distantes, dos bons que momentos que vivi em JP (1940-1953).
Parabéns!

W.J. Solha disse...

Beleza, Hugo. Ainda me lembro de Mocidade todo de branco, ainda me lembro de que fiz uma peça publicitária para a firma Pires & Cia - lembra-se de Dona Creusa? - com Vassoura - foi de seu tempo? Vassoura a cavalo, segurando um mastro com a bandeira brasileira e dizendo "Oi, meu pão!" A censura me forçou a cobrir a bandeira com nanquim e a suprimir da fala "Meu nome é Maria Aparecida Bandeira Brasileira" a palavra "brasileira". Quanta tolice! Lembro-me de que estava montando uma adaptação minha da Antígona de Sófocles, em que Valderedo Paiva era Creonte e Anco Márcio o noivo da heroína, quando fui chamado para a Polícia Federal. Aí o cara me disse que eu não poderia usar o nome Antígona, porque já havia outro texto com esse nome. Respondi: "Há vários. Todo mundo que adapta o original de Sófocles mantém o título". E o cara, deixando-me na perigosa dúvida sobre se ele estava falando sério ou me gozando:"Você tem autorização dele?" Solha

Osman Godoy disse...

Grande Hugo!
Lembro-me também de COQUINHO , tipo popular que gravitava por Jaguaribe.
Havia um refrão que o acompanhava:
Coquinho venha cá
Coquinho venha cà!
-Não vou lá não
-Não vou lá não
Estou vendo Detefon na sua mão!
O Imbuzeiro era o transportador de cartazes do Cine Jaguaribe.Alguém desenhava ou colava as gravuras num painel vertical e Imbuzeiro os levava nas costas para colocá-los amarrado nos postes das ruas do centro .Ái dos garotos que o xingassem , ele corria ameaçadoramente para agredi-los, inclusive jogando pedras.
Ele também controlava a 3ª classe no Cinema.Aquela atrás da tela com os letreiros invertidos e a preços insignificantes.

Ipojuca Pontes disse...

Caro Hugo,
Sua cronica sobre a Paraiba do nosso tempo, não tão antigo, me fez um profundo bem. O problema dos governantes da Paraiba (tambem João Pessoa) é que eles são ignorantes, sem nenhum senso estético, histórico e arquitetônico. Todos, exceto Zé Americo e Argemiro. São todos apóstolos do pior modismo chupado das nossas megalopes - o que é sempre ruim.
O Ponto de Cem Reis, destruido por Damasio Franca para prejudicar o Paraiba Palace Hotel de Ronaldo Minervino (seu familiar) transformou-se num monstro pelas mãos do atual governador, esquerdista de quinta categoria, ignorante e carreirista.
Senti falta, na sua galeria de tipos nativos, de um preto velho chamado "Marreteiro", que no inicio dos ano 50 ainda andava pelas calçadas da Botijinha e da Rua Gama e Melo, se arrastando com um cajado nas mãos, vestido com uma tunica do exercito, calçando sandalias, usando embornal e bibico militar. Quase centenário, vivia da caridade alheia e, depois que recebia algum, ria despojado de dentes e recitava: "Ai ai ai meu branco, que não sabe se cobrir morre de frio"! Grande "Marreteiro"!
Abraço e meus parabens
Ipojuca

Márcia Barcellos da Cunha disse...

Hugo,
Muito bem nos faz dar uma revirada no passado. Que saudade!!! São as "coisas do coração"... Abraço. Márcia

Daniel Menezes disse...

Grande Ipojuca Pontes:
Fomos colegas no quinto ano primário, no antigo Ginásio Lins de Vasconcelos, que ficava entre a Catedral e a Praça de São Francisco. Lindo texto de Hugo Caldas. Tenho muitas fotos de João Pessoa dos anos 50. Vim trabalhar em São Paulo em 1971 e nunca mais voltei 'a João Pessoa, minha terra natal. Sou do Bairro do Roger.

Marcia Barcellos disse...

Hugo,
Vovó era verdadeiramente apaixonada por João Pessoa. Com que emoção falava com todos nós, netos, das belezas deste bonito pedaço de terra. Era emoção pura! Abraço. Márcia

Valdete Paiva disse...

Parabéns pela cronica de João Pessoa, Linda.
Um grande abraço, Valdete Paiva

Marconi disse...

Hugo:
Além dos que já foram lembrados, existia, tambem, um senhor de estatura baixa, gordo, que usava óculos com lentes muitos fortes, frequentador diário da Catedral Metropolitana, que ficava furioso quando lhe chamavam de " catabí ".

Norma disse...

Hugo: fugindo ao tema de seu texto maravilhoso, mas, lembro tambem de Ipojuca Pontes no Ginásio Lins de Vasconcelos, dos saudosos Prof. Nery e Dona Creusa. 1956. Ipojuca tinha uma vasta cabeleira, mantida na base de brilhantina e usava óculos, porque tinha miopia. Passou pouco tempo naquele educandário.