domingo, dezembro 04, 2011

Do Rádio Galena ao Bolo Majestoso



Hugo Caldas




Galena é um mineral monométrico composto de sulfeto de chumbo II. É o mais importante dos minérios de chumbo e praticamente o único. Entenderam? Nem eu. Mas o fato é que por estranhos desígnios da Mãe Natureza, possui a Galena a singular capacidade de propiciar a confecção de um rudimentar receptor de rádio que não utiliza qualquer tipo de fonte de energia externa para funcionar. Entenderam? Sim. Milagre? Parece, mas não é.


Com poucos dias de casada a minha mãe querendo mostrar ser uma boa dona de casa, inventou de fazer um tal de "Bolo Majestoso," do qual tinha a receita em livro que herdara da minha avó, para ela e o meu pai degustarem à hora do lanche vespertino, muito bem acompanhado de um cafezinho quente e cheiroso, no meio daquela tarde de verão. Meu pai, velho connaisseur dos quitutes de Dona Dondinha, não acreditou nem um pouco na empreitada e lançou o desafio:

- "É mais fácil eu fazer um rádio numa casca de amendoim do que esse bolo sair do forno".

Minha mãe aceitou a provocação e conseguiu fazer o bolo. Injuriadíssima não deixou por menos. Exigiu que o rádio da casca de amendoim fosse feito. Após alguns dias de expectativa e labor intenso após o jantar, sob rigorosa vigilância de Dona Dalvinha, o meu pai apresentou então um misterioso artefato, e o tão famoso rádio, enfim apareceu. Na casca do amendoim. Fone nos ouvidos de todos e um óóóó geral, tomou conta da sala. Maravilha das maravilhas. Aquela coisa realmente falava. Tratava-se de um Rádio de Galena.

Era uma geringonça composta de antena, bobina, fios, uma pedrinha (Galena) e fone de ouvidos. Quem se interessar por mais detalhes pode perguntar ao Professor Google que ele poderá, de bom grado, fornecer o esquema rudimentar.

João Pessoa na década de 50. Os garotos eram mais criativos que os de hoje. Mesmo com toda essa hodierna parafernália cibernética: computadores, celulares, tabletes, iPods, iPad e iTudo. Éramos melhores. Nada era mais do nosso agrado do que construir os próprios brinquedos que via de regra eram bem mais complexos e nos proporcionavam divertimentos inenarráveis.

Os radinhos de pilha sequer cogitavam a imaginação dos seus inventores. O meu pai nos ensinou, a mim e aos garotos da rua, o caminho das pedras na confecção dos radinhos de Galena. Nós mesmos fabricávamos os nossos diminutos receptores em caixinhas de fósforos. Não, não enlouqueci nem estou falseando a verdade. Tudo começava ao pegarmos o bonde para a cidade baixa onde se concentrava todo ou quase todo comércio da cidade. Íamos que nem andorinhas em bando de três ou quatro garotos, na maior algazarra. Mais especificamente descíamos à Rua Maciel Pinheiro onde prevalecia uma insólita convergência: o comércio de ferramentaria, mecânica e o das putas. Na Rua da República havia a Casa Invictus uma loja que vendia fios, e naturalmente a pedrinha de galena. Nas outras portas, à guisa de vitrines, mulheres se exibiam, nas mais sensuais e libidinosas posições. Umas jovens outras mais velhotas, mas todas, absolutamente todas, à nossa visão, belíssimas. Coração aos pulos fingíamos não vê-las porém à noite, no silêncio do quarto, a garotada pecava em pensamentos, palavras e obras.

Para se obter uma boa recepção da Rádio Tabajara era necessário colocar a antena em lugar bastante alto. A pitombeira da casa do Mago Gilvan (Gilvan Meira Lima), era o local ideal. Quase todas as tardes eu, Calico (Carlinhos Cordeiro), Almir, (Celso Almir Japiassu) e o Mago escalávamos a enorme, bela e generosa pitombeira, armávamos as nossas antenas e escarranchados nos galhos ficávamos empenhados na prazerosa tarefa de chupar pitombas, escutar a PRI-4 Rádio Tabajara da Paraíba e acenar para os pequenos aviões que no processo da descida, já na reta final, passavam bem baixinho, acima das nossas cabeças. A casa do Mago Gilvan ficava a duas ou três quadras do campo do Aeroclube, em frente ao quartel do 1º Grupamento de Engenharia, que antes alojara o 8º RAM, Regimento de Artilharia Montada, responsável pelo patrulhamento do litoral de João Pessoa e de Fernando de Noronha durante a 2ª Guerra Mundial.

E assim era a nossa vida nos idos de 1950. O tempo passava preguiçosamente. O natal demorava a chegar. A nossa maior preocupação era com os estudos e evidentemente namorar as garotas mais lindas do mundo. Hoje o tempo passa depressa demais. Ontem o ano começou e quando menos se espera, já é natal novamente. É tudo muito rápido. Decididamente não é mais o nosso tempo. Sinto-me um estranho no ninho. Parem esse mundo que eu quero descer. Inda outro dia em conversa telefônica com um dos freqüentadores da pitombeira ele saiu-se com essa:

- "É, meu caro, nós éramos felizes e não sabíamos", numa clara alusão à lavra do Ataulfo Alves. Eu, ao contrário, acredito que nós éramos felizes sim e tínhamos a mais perfeita noção dessa felicidade. Nós éramos felizes e sabíamos.

O Bolo Majestoso terminou por ser entronizado por minha mãe como tradição de família. Para celebrar, seja o que fosse, aniversários, casamentos, batizados, lá estava ele ocupando lugar de destaque na mesa. Com o tempo a receita foi passada para as noras. Dia 25 próximo passado foi o natalício deste locutor que vos fala e o que estava lá na mesa fulgurante e belo? Ele mesmo, o Bolo Majestoso, primorosamente feito por minha mulher. A cada mordida uma lembrança. Fizemos a festa juntos, eu e o único que apareceu para um abraço, o meu neto mais velho acompanhado de sua linda namorada. É isso.

Até porque velho não faz aniversário. Velho "intera" tempo. Está servido?

5 comentários:

W.J. Solha disse...

Maravilha, Hugo. Põe suas memórias em livro, homem. São uma delícia.
Você me lembrou - ao dizer que era feliz e sabia disso - de que certa vez dei com Luiz Augusto Crispim nos bastidores do Santa Roza e lhe disse como me impressionava o prazer com que ele sempre escrevia sobre a infância que tivera. "Você foi bastante feliz, não?" E ele: "Muiito". "Então deve ser por isso que pouco me lembro da minha. Foi muito ruim." Solha

Celso Japiassu disse...

Hugão:

Bela lembrança.

E o acontecimento trágico da queda do avião, que assistimos do alto da pitombeira?

Hugão disse...

Sobre o acidente: Tá se vestindo. Abraço.
Hugo

Márcia Barcellos da Cunha disse...

Hugo,

Como é agradável e nostálgico recordar fatos de nossa vida. Provoca saudade, emoção, mas, indiscutivelmente nos faz cientes do quanto fomos felizes, como vc bem disse. Um grande abraço. Márcia

João Marcos P. de Carvalho disse...

Hugo, depois de ler esse belíssimo texto que você escreveu, senti-me saboreando, com o seu neto, o famoso “bolo majestoso” e comemorando o seu aniversário no dia 25 de novembro passado. Mesmo atrasado, receba o meu abraço. Parabéns pelo gênio que você é! João Marcos