domingo, novembro 27, 2011

FALSO RECUERDO - O meu amigo Graça


Hugo Caldas

Em 30/11/2007


Conheci Graciliano de Almeida Chacon ainda na década de 60. Revolução saindo do ovo da serpente. Éramos professores de matemática e história em um cursinho na Conde da Boa Vista e de onde estávamos instalados no quinto andar do Edifício Santa Inês, nos favorecia uma ampla visão das passeatas quase que diárias na avenida, bem como a repressão da policia montada do Esquadrão Luis Cardoso.

Atravessamos incólumes os anos de chumbo. De súbito o Graça desapareceu. Pensei no pior. À época era comum alguém sumir no oco do mundo. Às vezes por vontade própria. Às vezes forçado. Às vezes as pessoas iam embora para não mais voltar. Não sei o que motivou o seu desaparecimento.

Nos reencontramos, quase ao final da década de setenta, já deixando de lado o magistério, em uma firma de exportação. "Fateixa, Comércio & Exportação Ltda". Nome pomposo para tentar vender no exterior umas bugigangas da OA (Ocean Atlantic) uma grife do maior sucesso à época.

O Graça se dizia muito mal amado, sem sorte mesmo. Havia casado e não era feliz. Nem tivera filhos. Por força do ofício, passávamos grande parte do tempo viajando. Adorava quando saia de viagem. Quinze ou trinta dias fora de casa eram um bálsamo para ele. A mulher, dizia, lhe arranjava mil e umas. Ele, pelo seu lado dava o troco. Certa noite solitária e fria em Chicago, estávamos bebericando, jogando conversa fora, no piano bar do hotel quando, feito andorinhas, um bando de garotas se aproximou de nós dois. Constatei que o tipo de abordagem é universal.

- Alguém aí tem fogo? Que horas são?

Havia um imenso relógio na parede bem em frente. Uma lourona interessante, de nome Cindy logo se bandeou para o Graça. Eu me contentei em bater papo com uma india Apache bem simpática de nome "Pink Cloud". Por incrível que pareça conversamos boa parte da noite sobre o cinema de Glauber Rocha. A admiradora tinha visto recentemente, "Terra em Transe" pela enésima vez. Podem vocês muito bem avaliar o tanto de volúpia e sensualismo da minha noite.

Lá pelas tantas decidi ir dormir, sem a índia, evidentemente, pois só o sacrifício de tirar toda a roupa já seria demais. Um frio do bute. Mas o Graça, não. Ele não estava nem aí. Faria o que estivesse ao seu alcance para dar uma corneada na mulher. Ah, disso não abriria mão. Não voltou para o quarto, só reaparecendo quando o sol já ia alto. Disse-me depois que foi uma noite de loucuras. Acredito. Pelo riso cretino estampado na cara.

A respeito da sua jovem esposa, ainda hoje tudo é motivo de aborrecimento para o Graça. Diz, por exemplo, em tom professoral, que a sua mulher simplesmente despreza, não faz caso de uma das maiores invenções do engenho humano. A rosca. Parece brincadeira mas nunca que ela fecha qualquer rosca. Seja de garrafa térmica, ou frasco de adoçante dietético. Teve rosca, ela não usa. Ou melhor, não fecha. O pobre do Graça sempre na maior aflição para que o café não esfrie e o dietético não esparrame pela mesa. Agora deu de roncar à noite e dormir a seu lado tornou-se absolutamente insuportável. Suas abluções matinais, quando inicia o seu ritual particular de lavagens, são impertinentes. De uns tempos para cá se deu ela ao temerário desplante de freqüentar uma seita, aquela mesma que tentou salvar o Tim Maia. Virou praticante empedernida. Para ela, tudo na vida agora tem uma razão de ser e de viver, mercê os grandes ensinamentos dos espíritos de luz e do Mestre Tashiro Yamamoto. Uma chatice monumental.

Voltamos eu e o Graça, à Chicago um ano e meio depois e soubemos que a Cindy havia morrido. Vítima de aids. Foi um choque. Muito mais para o meu amigo e vocês lembram da noite de loucuras que resultou naquele riso cretino estampado na sua cara lavada.

Pois bem, arquitetou o Graça maléfico plano contra sua dadivosa esposa. Havia lido em alguma revista velha encontrada em algum consultório médico que às vezes pessoas que tiveram contato direto com o vírus não apresentam sintomas nem estão devidamente contaminadas. Mas carregam consigo o funesto vírus e podem inocular outras pessoas. Sua vingança seria maligna.

Voltou da viagem mais amoroso do que nunca. Não tinha noite que o fizesse esquecer as suas obrigações matrimoniais. Era muito amor.

Mas os chatos não morrem...

O tempo passou, a empresa fechou, mudei de profissão. Os nossos caminhos se separaram. Certo dia encontrei em um café muito do chic no Shopping Center ela, a esposa do Graça. Disse-me quando por ele perguntei que o meu amigo havia passado dessa para uma melhor. Havia morrido de uma moléstia misteriosa. Foi definhando, definhando, ficou só pele e osso e finalmente bateu as botas. Deixou-a porém, em boa situação financeira pois ela, prevenida como sempre, havia feito um seguro de vida no nome dele cuja beneficiária era ela própria. Já até havia comprado um carro. Agora ninguém mais a segurava. É os chatos não morrem mesmo. Ao final da conversa pagou com cartão e saiu toda serelepe. Foi quando eu percebi que havia deixado a garrafa térmica e o adoçante abertos. Deixara as roscas sem fechar.

Pobre Graça.

3 comentários:

W.J. Solha disse...

Grandes personagens às vezes são os secundários, como essa mulher que topava rosca.
Solha

Márcia Barcellos da Cunha disse...

Hugo,

Antes não tivesse caído nos braços da "tentação"...Abraços. Márcia

Zeneudo Luna disse...

Caro Hugo....este blog como todos os outros, pra mim são fantasticos....Seus contos são lidos relidos..obg...luna