quarta-feira, novembro 30, 2011

Estranhas Maravilhas


Raul Córdula




A arte de Jairo Arcoverde me interessa desde quando descobri um quadro seu pendurado na parede de num banco da parte antiga de João Pessoa, no início da década de 1970. Já tinha ouvido falar dele, pois na cidade existiam alguns parentes seus, e na época tudo lá era ainda menor. Mas meu encontro com sua pintura, embora apenas com aquela tela, foi marcante. Eu era um artista com poucos diálogos além dos limites cotidianos e ingênuos de qualquer província, e nada além dos deslumbramentos que me provocavam os pouco e raros livros de arte que me chegavam às mãos, ou as conversas e instigações com os meus pares jovens artistas. A pintura de Jairo então me revigorou, e revigorou as atitudes de alguns amigos pintores. Não que nós não tivéssemos informações sobre uma arte livre de cânones acadêmicos, e eivada pelo inconsciente com símbolos ancestrais, como era e continua sendo a pintura de Jairo, eu mesmo sempre me aninhei nesta vertente dos sonhos onde Jairo coexiste, mas também porque aqueles tempos tenham sido especiais.



A década de 1970 foi especial e estranha, vista de longe se perde num emaranhado de interfaces como se fosse um filme sem roteiro, mas se analisamos em detalhes encontramos encalhados naquelas tramas enferrujadas algumas ilhas de pensamentos organizados e lembranças de acontecimentos racionais resultantes da procura do sentido perdido na absurda realidade política e social em que vivíamos. O artista da época lutava em duas frentes: para suportar a frustração do seu ego político ferido e para sobreviver na dura realidade do dia-a-dia. Muitos de nós nos dispersamos, alguns por opção, outros por desencanto, mas outros resolveram enfrentar o poder abusivo usando sua arte como suporte para a ideologia política. Não só a arte, mas as próprias atitudes se modificaram. Assolou-nos a idéia do ‘viver perigosamente até o fim’ inspirada por Godard da década passada em “Acossados”. Ele foi um dos ícones da época cujos filmes mediavam com o mundo a atmosfera de uma Paris que se rebelava, um misto de existencialista e maoísta. Para muitos de nós, que vivíamos ecos beatniks, o álcool e a maconha falavam ao pé do ouvido como pequenos demônios de desenho animado, prometendo-nos infernos e paraísos. Vivíamos a utopia do heroísmo e desobedecemos à ordem instituída.

Daí o meu diálogo com a arte de Jairo. De início foi uma fala solitária e distante, mas com a esperança de encontrá-lo, conhecê-lo, trocar idéias, negociar territórios de linguagens que nos eram comuns. Nossa conversa começou ali, naquele banco, bem antes de eu encontrar sua figura batava nas ladeiras de Olinda e saturar minhas retinas com seus quadros iluminados pelo sol. Na casa de Humberto Magno o encontrei um dia bebendo rum na roda de amigos. Na parede um quadro seu com figuras saídas de uma fantasia branca, azul e laranja, figurinhas bizarras pintadas por um homem que trazia consigo o sentido do maravilhoso. Maravilha, eis a palavra que traduz a obra de Jairo, “maravilha” no sentido de algo que pertence a uma dimensão onde as coisas, os objetos comuns que circulam naturalmente, os animais, os insetos, os viventes grandes e pequenos estão carregadas de uma beleza incomum e assustadora, algo que só pode ser concebido num estado de consciência avançado.

Muitas coisas me identificam com isso, uma delas é meu interesse pela garatuja, pelas anotações nos cadernos de recados ao lado dos telefones, pelos símbolos rabiscados nos muros como vaginas, falos e corações, pelos insetos, peixes, tartarugas, centopéias. Um grande poeta paraibano chamado Luis Correia escreveu nos anos 60: “No lugar onde mora Amélia Reis / o tempo é tão imoto e sem aragem / que sobre o corpo dela as unhas crescem / como crescem nas árvores asa bagens. / No lugar onde mora esta menina / o tempo tem raízes tão mortais / que pra frutificar eu estrumei-o / com os mansos e dejetos animais.” Este clima surrealista, onírico, esquizóide, é para mim uma das traduções de “maravilhoso”.

Os artistas irmãos Aprígio e Frederico, aliás, também são ligados a significados das garatujas, como na arte de Jairo. Por exemplo, nos anos 1980 eles fizeram flotagens das marcas deixadas nas calçadas por pedreiros ou pelo povo enquanto o cimentado da calçada estava secando. Com isto Aprígio editou na Oficina Guaianases um álbum de litogravuras intitulado “Das Calçadas de Olinda”. Estas marcas humanas são minha obsessão há muito tempo, em 1965 Antonio Dias escreveu no folheto de uma exposição que fiz na Galeria Verseau, em Copacabana, estas palavras: “Procura no muro a indicação para o registro: não estará escrito ali “abaixo a ditadura”? não estará desenhado ali um coração atravessado por uma flecha?, e principalmente aquelas manchas, não serão elas semelhantes aos personagens desse drama, deformadas marcas de abandono?”

Os sinais que Jairo dispõe judiciosamente em suas telas são certamente memórias da infância que ele desenfreadamente marca nas telas e papéis e, ao mesmo tempo, com isto é levado a uma sabedoria madura. Faz-me lembrar uma famosa anedota sobre Lacan: contam que o grande psicanalista, num jantar em sua homenagem em Beirute, foi assediado por uma bela mulher que se dizia totalmente seduzida por ele. Ele então lhe disse: “Senhora, vou contar-lhe um segredo, eu só tenho cinco anos.” Às vezes Jairo tem cinco, mas outras vezes ele tem cem.

Uma arte assim, que evoca o inconsciente, segue uma vertente que, no período modernista, se alinhava com o surrealismo, embora a história nos aponte Boch, Breugel, Arcimboldo e Goya muito antes dele, entre o século XIV e XVII. O crítico de arte mineiro Frederico Morais, que também atuou na área da educação artísitca, desenvolveu um esquema para classificar as correntes da arte moderna, e para isto ele usou o cartaz como meio. Ele dividiu as correntes artísticas em três: Construção, Caos e Inconsciente. Na Construção ele colocou toda arte de tendência cerebral, desde Da Vinci e outros renascentistas, passando por Cezanne, e o cubismo, e pelas escolas construtivistas como o neoplasticismo de Mondrian, o suprematismo de Malevitch e o concretismo e neo-concretismo brasileiro. Na corrente do Caos ele vem com Goya e passa por Van Gogh, Munch, os expressionistas, e depois as correntes da arte abstrata como a Action Peinting de Polok e Kooning, o taxismo, a nouvelle figuration e a pop art. Entre uma corrente e outra estava os Inconscientes como os naïfes, o surrealismo, o dadaismo e movimentos como o grupo COBRA – Copenhague, Bruxelas e Amsterdam –, e artistas como Paul Klee e Joan Miró. Muitos artistas de nossa geração tiveram forte influência de Klee e Miró, e Jairo é um deles, apesar do fato de não ter tido contato direto com as obras deles. Nosso olhar para este tipo de arte nasceu mesmo dos livros que víamos. Mas, por exemplo, Karel Appel, Cornelle e Alexisnky, do Grupo COBRA, ainda hoje influenciam jovem artistas.

Começamos a pintar adolescentes, na fase da vida em que tudo é importante, tudo é crítico, tudo marca para sempre. Jairo escolheu seu caminho na adolescência, quando ainda estava no curso livre da Escola de Belas Artes. Suas paisagens urbanas retratando sobrados da cidade antiga eram vendáveis, e com isto ele se profissionalizou precocemente, vivendo cedo de vender pintura.

A Escola mantinha um currículo básico que os alunos, jovens artistas que não quiseram se submeter ao curso superior que eram, curiosamente, os que mais cresceram como artistas tinham que acompanhar. Jairo, porém se recusou às regras curriculares. Destacando-se desde o início aos olhos de Lula Cardoso Ayres, ele trabalhava na Escola livremente, e conseguiu com Laerte Baldini, pintor gravador e diretor da Escola, um espaço só para ele.

Passaram pelos cursos livre e superior da Escola artistas como Ismael Caldas, Roberto Lúcio, José Tavares, João Câmara, Roberto Amorim, José de Barros, Arlinda Maciel, Isabel de Albuquerque, Marisa Lacerda, Silvia Pontual e Silvia Barreto. A Escola funcionava na Rua do Benfica. E nela ensinava um time de professores luminares da arte da época, como Reynaldo Fonseca, Vicente do Rego Monteiro, Fernando Barreto e Murilo La Greca, que somente ministravam aulas no curso superior, e ainda Reginaldo Esteves, Laerte Baldini, Roberto Correia, Raquel de Lima e Lula Cardoso Ayres, que também cuidavam do curso livre.

As paisagens pintadas por Jairo nessa época já anunciavam o artista maduro, já se via nelas resolução de problemas pictóricos maduros, como a composição espacial e a textura em harmonia com a cor.

Tive a oportunidade de escrever sobre sua arte, e para tanto enfoquei aspectos de sua vida no seio de sua família, a família de artistas que ele formou ao lado de Betty Gates, sua mulher ceramista e os filhos Marisa, Joana e Leonardo, os três filhos que se dedicam à arte na prole de cinco.

A marca do talento de Jairo ficou gravada nas casas onde viveu com a família no Recife, em Caruaru, e em Olinda, territórios marcados por crônicas de famílias de artistas. Nossa cidade dupla Recife-Olinda é pródiga em famílias de artistas como a dele – mais Recife do que Olinda –, onde a arte é ofício familiar há gerações, desde os ofícios artesanais até os criativos que chamamos arte, especialmente, muito especialmente a arte da pintura. Em Olinda, por exemplo, estão José Cláudio com seu filho Cláudio Manuel (Mané Tatú), ambos pintores; Gilvan Samico com seu filho pintor Marcelo Peregrino, sua mulher Célida e sua filha Luciana, ambas dançarinas; as pintoras Tereza Costa Rego e Laura Gondim, mãe e filha; o pintor Roberto Lúcio e sua filha escultora Marina Mendonça; Maria Carmem e a filha Vera Bastos; Thiago Amorim e seu irmão Marcos; os irmãos Aprígio e Frederico Fonseca; Giuseppe Baccaro e seus filhos, o pintor Matheus e o fotógrafo Francisco; o pintor Humberto Magno, sua ex-mulher Isa do Amparo e seus filhos Paulinho do Amparo, pintor e músico, e Catarina Aragão, artista visual e DJ; Liliane Dardot e Marilah Dardot, sua filha. Eu mesmo sou casado com Amélia Couto, designer, ceramista e fotógrafa, e venho de uma família de artesãos e artistas.

No Recife, Ariano Suassuna é um desenhista importante, exprime graficamente seu universo armorial, e sua esposa Zélia é gravadora e pintora, eles são pais do pintor e ceramista Dantas Suassuna, sogro do pintor e gravador Alexandre Nóbrega e tios do pintor Romero Andrade Lima; temos também Wellington Virgolino com seu irmão Wilton de Souza e os irmãos Vicente, Fedra e Joaquim do Rego Monteiro, da geração do moderna de 22.

Isto é também uma característica no meio dos artesãos, e Jairo viveu entre ceramistas em Caruaru, onde construiu uma casa no Alto do Mouro, o lugar dos artesãos do barro, onde viveu e trabalhou Mestre Vitalino, artista e músico, ele tocava pífano r toda sua família faz os seus bonecos até hoje. No Alto do Moura Betty Gates, mulher de Jairo, desenvolveu cerâmicas com delicados desenhos tirados do imaginário popular e com uma qualidade material sem par. Lá Jairo também sentiu a força do desenho puro, sintético, lacônico, que dão formas às imagens criadas pelos artistas e reproduzidas pelos artesãos, que às vezes os mesmos artistas, como foi o caso de Vitalino, Manoel Eudóxio, Zé Caboclo e Galdino e suas famílias, todos praticantes de uma maneira econômica de criar, algo neolítico em sua simplicidade técnica, e complexo no sentido sociológico do Agreste que trazem estes objetos simbólicos.

O encontro de Jairo e Betty com a cerâmica se deu por influência do mestre artesão Jeter Peixoto. Inicialmente ele construiu um forno à lenha e passou a trabalhar em todas as etapas do processo, cerâmico, desde a preparação do barro até a queima. Os dois se envolveram totalmente com a cerâmica, portanto sua presença em Caruaru, um artista moderno entre naïfes, teve todo o sentido e resultou em circunstâncias importantes para sua obra.

No alto do Moura o casal criou seus filhos vendo arte todo dia e aprendendo com eles e os amigos artesãos que ocupam inteiramente o lugar. Marisa diz sobre seu aprendizado: “Tivemos a iniciação artística em casa sob a batuta de papai e mamãe, nossos pais-mestres. Eles não deixavam por menos, nada de coisa feia ou mal feita, pois o domínio da técnica só se adquire através do treino, do trabalho repetitivo, o exercício nunca termina. Com essas palavras papai nos incentivava. Se o resultado de seu trabalho for bonito, cuide para sempre melhorar, se não, comece tudo de novo. Com eles freqüentamos exposições, ateliês de artistas amigos, museus e galerias. Tivemos de conviver com outros artistas e outros tipos de trabalhos, e ler, ler muito. Desenvolvemos nosso gosto artístico, mas conhecendo e respeitando o gosto dos outros.”

Nos anos 1960, quando Olinda estava sendo descoberta pelos artistas, ele teve ateliê com o pintor Ismael Caldas. É importante esta referência, Ismael sempre foi um artista possuidor de um espírito independente e crítico, assim como Rodolfo Mesquita. Fecho o firo com Humberto Magno, tão independente quanto os dois. De forma alguma quero fazer uma crítica comparativa, até porque este texto para mim é uma crônica, não crítica, mas considero os quatro artistas ligados em suas criações. Eles parecem olhar o mundo do mesmo ângulo, com os mesmos símbolos e sinais, embora suas pinturas sejam tão diferentes. O auto-retrato de Jairo em que com uma mão ele abre um olho e com a outra aponta para este olho aberto é enigma, de um certo ponto ele parece dizer que “não brinquem comigo, eu tenho os olhos abertos”, mas de outro ele estaria dizendo “ponha aqui uma gota de colírio”. Esta forma de ironia plástico-gráfica se exacerba em Rodolfo Mesquita, seu livro “Crítica do Horror Puro” é um exemplo fantástico de contestação. Já Humberto Magno, mais sereno do que Rodolfo e Ismael, esteve na vanguarda nos anos sessenta e transgrediu a ordem do belo e do barroco com uma geometria gritante nas ruas tortuosas de Olinda. Eis um recorte da criação de artistas da mesma geração que passaram pela ditadura eivados de paixão pela liberdade.

Mas como seria uma vida de artista? Uma fogueira de vaidades? Um frenesi de compromissos sociais? Ou se pautaria por uma disciplina monástica, sacerdotal, ascética? Nada disso: a vida dos artistas é como a vida de qualquer cidadão, uma constante mistura de trabalho e reflexão. O artista estuda, cresce, se casa, tem filhos, educa os filhos, faz feira, adoece, paga imposto, se desloca na cidade e conhece a felicidade e o sofrimento, como todo mundo. A vida de Jairo é exatamente assim: acorda e vai pintar; ouve música erudita e jazz, e vai pintar; rega o jardim, arruma qualquer coisa, e vai pintar... Na verdade nós vivemos num eterno agora e num infinito aqui.

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