domingo, outubro 30, 2011

A LUTA DOS CONTRASTES NA CAÇA VIRTUAL DE IVO BARROSO



W. J. Solha




Veja este meu quadro:




Foi ele (e outras inversões minhas) que me aguçaram o espírito no que li os versos iniciais do poema O MURO, de Ivo Barroso, na edição de 2001 de A Caça Virtual (Record):


Este muro começa
de cima para baixo:
a prumada mais alta
é o seu encaixe.

Seu limite na altura
é o seu alicerce.

Voltei à epígrafe do livro, retirada (sem crédito) de East Coker, o segundo dos Four Quartets de Eliot:

in my end is my beginning

Tem a ver.

De repente dou com um trecho de poema longo (PAPEL & CHÃO), em que, em poucos e lindos versos, leio o que me custou um romance inteiro pra dizer:


Resumo meu livro, pra que você veja o relato poético abaixo com o mesmo relevo com que o vejo: há dois irmãos nos anos de chumbo: Roldão, que parte pra guerrilha do Araguaia, Oliveiros, que fica, cheio de remorsos por não encontrar base teórica pra fazer o mesmo, enquanto escreve o roteiro de A Batalha dos Guararapes.

No entanto / não tivemos exílio / antes uma ausência permitida.

Não fugimos de noite / o passaporte era de nossa própria / senhoria.

Não nos tiraram dentes unhas pênis / antes nos deram passes mordomias/

Mas quanto mais deitavas e rolavas / mais na mente de noite mal dormias

Porque uma coisa (ao menos) bem sabias/ Estavas em Sião/ Babel ardia.

Meu deus! Faltara-me, e – se poeta finge a dor que deveras sente – faltaram também ao Ivo aquela luta dos contrastes tão bem resolvida por Che, no que apregoava:

- Hay Que Endurecerse, Pero Sin Perder La Ternura!

Veja como o Poeta começa seu poema É PRECISO:

É preciso ser duro

como a pedra

como a pedra que parte

como a parte da pedra

que penetra a parede

e a parte.

(...)

E é preciso ser fraco

É preciso ter siso

E simulacro. É preciso

Todos os dias vencer

Os deuses pigmeus/golias

Nessas alturas já me era possível perceber que eu estava diante de um grande poeta, com poética firmada nos tais contrastes – Babel/ Sião, pigmeus/golias, É preciso ser duro, É preciso ser fraco. Tudo com as devidas inversões, como em a pedra que parte/ como a parte da pedra / que penetra a parede / e a parte. Como no muro, cujo limite na altura... é seu alicerce. Como na dura percepção de que quanto mais deitavas e rolavas / mais na mente de noite mal dormias.

Não por acaso, deparo-me com esta expressão, na última estrofe de O MURO:

- Inverte-se.

Em LE TOMBEAU DE COUPERIN:

- o inverso.

Em SONETO EM VESPERAL:

- Inverso Chantecler.

Pistas. Como a do verso de Eliot!

LITANIA

Mística rosa.

Rubi. Diamante.

Um pouco de esposa.

Um pouco de amante.

Criada sua chave-mestra, o contraste, ele brinca, produzindo vários deles com outras obras de arte. Referindo-se à Divina Comédia, por exemplo, de clássico início...

Nel mezzo del cammin di mostra vita

mi ritrovai per uma selva oscura

ché la diritta via era smarrita.

... Ivo, em NOVA PROFISSÃO DE FÉ...

... declara

ser bom poeta

na tela clara,

já não procura

a via reta

na selva escura.

Novo tema a ser contraditado, ele o encontra em João Cabral de Melo Neto, com seu famoso começo:

Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.

Como se aperfeiçoasse o ovo (o que ele demonstra ser possível), Ivo diz, por contraste, em A FÁBULA DO GALO:

Acontece, entretanto, que o meu galo

Não fazia a manhã nascer do canto.

Sabia muito bem que

Se cantasse

Ou se deixasse de cantar

- o dia

Rompendo as cercas do quintal

Viria empoçar-se em seus olhos de suspeita.

Mas... o desfecho é altamente poético:

(...)

Era quando lhe vinha da garganta

Aquele anseio de ajudar o dia,

E na sofreguidão que o exasperava

- sabendo embora que cantasse

Ou que deixasse de cantar –

Cantava.

Do mesmo modo, o poema OS CAMPOS FLORESCERAM me remete ao Trigal com Corvos, do Van Gogh, do qual Ivo tira os corvos de cima do campo, inverte o campo do ataque, e me faz lembrar – em versos extremamente bem concebidos - o início do Veludo Azul, de David Lynch:

Mas por baixo do trigo, mas por baixo

do verde ora perene das espigas,

como o fio escorrente de um riacho

Passa um conluio rubro de formigas.

Nada lhe escapa ao gênio. O bíblico Filho Pródigo é um problema resolvido? O dele, não:

(...)

notou nos olhares da chegada

o já pressentimento da partida.

Na primeira tocata de VISITAÇÕES DE ALCIPE, quem ele contraria é Poe em O Corvo , assim como contrariou o galo de João Cabral

Busquei no estudo um bálsamo: no fausto

de meu estúdio à morta luz da vela

lia doutrinas de outros tempos e chamava

na mente por um nome, mas nada. nem um corvo,

um mocho respondia.

Dante, Vincent, Poe, Cabral, os Evangelhos. Mas nem pensar num basta na ousadia dos contrastes. Poeta, Ivo Barroso poderia ter abordado o tema do Laocoonte como ele está na Ilíada de Homero e Eneida de Virgílio, mas – mestre da imagem poética – vai direto a esta vigorosa escultura, atribuída a três artistas de Rodes – Polidoro, Agesandro e Atenodoro ( daí a desproporção dos personagens):




A mão direita afasta o ser em círculos

fechados contra o centro de si mesma.

Outros anéis — imóvel,

mantêm o pé na véspera do passo.

Do lado

onde o ofídio (mais olhos do que boca) ofende,


freia-o trêmula
a outra mão
— serpente do homem



E leia o final... devagar:

Equilíbrio de forças sobre o nada

momento de estática — vida?

…esse braço que vai ceder

e

teima.

Poética da contramão, da inversão, do contraste!

Alumbro-me / de sombras (A UNGARETTI).
Como a um fruto / te decepo ao meio / o que gosto em ti / o que não gosto /metades sem sentido / ansiando pelo todo. (LÂMINA).

E uma obra-prima:

FINADOS

Os mortos nos visitam no seu dia
e deixam flores na portaria.
Depois em paz
vão almoçar na trattoria.
De nossos cimos
ainda ouvimos
sua alegria.

Mas já não rimos.

Dizer, porém, que a grande arte de Ivo Barroso consiste nessa... indústria, seria obscurecer versos que eu gostaria de ver isolados como jóias...em estojos com veludo azul:

(...) dos versos em que os sons têm cores de aquarelas

(...) via os peixes azuis de rimas e assonâncias

(Isto é de OS POETAS DE SETENTA ANOS)

Este poste que fura um túmulo de luz

na noite sem mistérios

(ACALANTO)

Encerro:

In my beginning is my end.

Mas vou deixar você, agora, à sua própria sorte, no universo de A CAÇA VIRTUAL. Veja – mas veja MESMO, veja cada um dos versos soltos, de-cu-pa-da-men-te – desta pequena jóia:

VIDA

Crianças tagarelam no playground
uma formiga escala o himalaia de um vaso
a espinheira espalha a perplexidade de suas folhas bífidas
o mármore da janela espera outro milhão de anos

eu escrevo.

Nenhum comentário: