quarta-feira, agosto 17, 2011

O MAIOR TRUQUE DE TODOS OS TEMPOS

W. J. Solha

Todo artista trabalha com astúcias, como os ilusionistas, pois magos, mesmo - feito Merlin, Gandalf e Harry Potter - só do outro lado do espelho. Quanto estudei perspectiva pra fazer com que meus velhos quadros bidimensionais parecessem fundos! Como foi difícil o aprendizado dos macetes de literatura, pra que meus livros “projetassem as cenas como nos filmes” na mente dos meus leitores! Quanto observei os grandes atores do cinema, pra aprender como enganar meu próprio corpo, de modo que eu empalidecesse, gargalhasse ou chorasse sem qualquer motivo real, “por Hécuba”, como diz Hamlet.

Assim, combino, “monto” uma série de letras – “o/u/v/i/u o r/i/b/o/m/b/a/n/t/e t/r/o/v/ã/o” – e você, com meu personagem, “ouve” essa extensa detonação no céu. Como o cinema é arte bem mais recente, proporcionou aos primeiros cineastas algumas surpresas do mesmo naipe. Nunca me esqueci de quando soube que um deles – Dziga Vertov – fizera um documentário didático sobre os milagres da montagem, servindo-se de exemplos como o deste brevíssimo roteiro:

1 – Caixões são baixados às sepulturas em Cronstad, 1912.
2 - Canhões dão salvas em Petrogado, 1920.
3 - A multidão tira os chapéus em Moscou, 1922.

A edição tornara contínua uma ação originalmente fragmentada no espaço e no tempo!

Pois bem: foi do que me lembrei ao rever o Santuário do Senhor Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas do Campo, nesta foto:

Aleijadinho colocou aí, ante o templo de Cristo, os profetas que “O anunciaram”, numa sacada genial, como genial fora a ideia dos que juntaram o Novo ao “Antigo Testamento”, a fim de fazer crer que Jesus derivava diretamente das visões de Isaías, Joel, Daniel, Jeremias, Ezequiel e Abdias, além de Jonas, Baruque, Oseias e Abacuque, mais Amós e Naum, que assim... pareciam... avalizar-lhe a “missão”.

- Por que “pareciam”?

Porque esses homens viveram cinco séculos antes de Cristo, e a libertação que anunciavam aos hebreus não era a... interior, platônica, sequer a do jugo romano (com que nem sonhavam, claro) mas a do cativeiro da Babilônia, cidade sumeriana para a qual haviam sido arrastados, depois de dominados. Os profetas – que Aleijadinho vigorosamente pôs em transe - eram homens que o povo julgava em contato direto com Jeová, seus eminentes intercessores. E o desespero da raça de Abrahão era tão grande que, segundo está escrito, um anjo apareceu a um deles, Daniel (9-24), e lhe disse:

Setenta semanas estão decretadas sobre o teu povo, e sobre a tua santa cidade, para fazer cessar a transgressão, para dar fim aos pecados, e para expiar a iniqüidade, e trazer a justiça eterna, e selar a visão e a profecia, e para ungir o santíssimo.

Setenta semanas: um ano e meio! O comentário a esse versículo, na “Bíblia Sagrada – Versão Clássica do Padre Antonio Pereira de Figueiredo” – Editora das Américas, 1950, em 18 volumes -, é a de que se trata de “semanas de ANOS”, porque com 70 vezes 7 temos 490 anos, “exatamente a época de Jesus”. Imagine se um judeu, em Auschwitz ou Treblinka, suplicasse o fim do III Reich e Deus lhe dissesse que tivesse calma, pois isso aconteceria em 2435!

Isaías (45-1) é mais preciso, pois adianta o nome do libertador:

- Assim diz o Senhor a Ciro, meu Cristo, a quem tomei pela mão direita para abater nações diante de sua face, e descingir os lombos dos reis; para abrir diante dele as portas, e as portas não se fecharão;

O trecho é tão contundente, que na maioria das traduções vemos a palavra “Messias”, do original, substituída (não a da coleção que citei acima) por “Ungido”. Mas a Septuaginta (entre o terceiro e o primeiro séculos antes da era cristã) , ao fazer a versão do versículo para o grego, foi explícita:

“a Ciro, meu Cristo”: Τῷ χριστῷ μου Κύρῳ , ou, na expressão transliterada (escrita como se pronuncia) Tō christō mou Kurō .

Por coisas desse tipo, a leitura popular da Bíblia foi proibida pela Igreja por séculos, de modo que os fieis recebessem apenas a versão de suas fantásticas narrativas já devidamente “guaribadas” por seus pregadores. Conseguia-se, assim, o mesmo que Vertov ao exibir seu filme sem contar onde e quando suas cenas tinham sido colhidas:

1 – Caixões são baixados às sepulturas (em Cronstad, 1912.)
2 - Canhões dão salvas (em Petrogado, 1920.)
3 - A multidão tira os chapéus (em Moscou, 1922.)

Mas imagine a delícia, quando ele revelava a mutreta!


Nenhum comentário: