domingo, agosto 14, 2011

A NECESSIDADE DE VILÕES


W. J. Solha

Há séculos assisti a um filme de Disney, em que o Espelho Mágico (de “Branca de Neve e os Sete Anões” ), engrandecia o papel dos bandidos nas grandes narrativas:


- O que seria da estória da princesinha, por exemplo, sem a terrível presença da Bruxa, que também é a Rainha Má? O que seria da lenda de Chapeuzinho Vermelho sem o Lobo Mau? E da de Cinderela sem a Madrasta e o gato Lúcifer?

Lembrei-me disso quando estava na diretoria do Sindicato dos Bancários da Paraíba, no final dos anos 80, e fiz um texto pro nosso boletim, no qual falava do gerente do CESEC, o que mais nos dava trabalho:

- Estamos com tudo! – brinquei, aproveitando-me do sobrenome dele, francês - O Jean Valjean, de Os Miseráveis, tem seu grande vilão no inspetor Javert; Napoleão teve como vilão Talleyrand; e nós – caramba - temos o Dubois!

No Trigal com Corvos enfatizo – no mesmo tom - o fato de que tanto César quanto Popeye nada seriam sem seus respectivos Brutus. Por que? Porque sem eles não haveria conflito, e dificilmente o desenho animado e a tragédia nos envolveriam.

A figura mais fascinante de Guerra nas Estrelas é, sem dúvida, o sinistro Darth Vader. Hannibal Lecter (Anthony Hopkins) “engole” O Silêncio dos Inocentes. O Coringa (Heath Ledger) rouba completamente a cena de Batman: O Cavaleiro das Trevas. Norman Bates (Anthony Perkins) apaga todos os outros personagens de Psicose. O computador Hal é a figura inesquecível de 2001 – Uma Odisseia no Espaço. Alex ( Glenn Close) é assombrosa, em Atração Fatal. Jack Torrance (Jack Nicholson) marcou época em O Iluminado. O frio nazista Amon Goeth (Ralph Fienes) é terrível, em A Lista de Schindler. E o que dizer de Roy Batty (Rutger Hauer), o louro replicante de Blade Runner? Que seria do Shane – vivido pelo louro Alan Ladd – sem o contraste com Jack Wilson – Jack Palance, o pistoleiro de negro, em Os Brutos Também Amam? Que graça teria de Mozart sem Salieri, no Amadeus?

Shakespeare também era mestre na criação desses personagens: Macbeth (e, mais do que ele, a sua Lady), Ricardo III, Coriolano e Iago são soberbos. E o que seria do final dO Auto da Compadecida sem o Encourado (o demônio)? Que seria de Fogo Morto sem a tríade Coronel Lula de Holanda, Tenente Maurício e Antonio Silvino? E de Moby Dick sem Ahab e, principalmente, Moby Dick? Nada como Dagoberto Marçau, em A Bagaceira, pra fazer valer a revolta do filho Lúcio. E há o Drácula, Franskenstein, Mr. Hyde (o lado mau do Dr. Jekyll), Nosferatu, etc, etc, etc. Em alguns casos, o mal vem do próprio bem, como em Édipo Rei, no qual ele investiga o assassinato do pai, sem se saber o próprio assassino.

Qualquer estudo sobre Arte mostra a importância da treva, num quadro, para que se realce a luz, fato tão marcante que se tornou metáfora religiosa: o Evangelho de João classifica o Verbo, de cara, como lux in tenebris. E veja, na Última Ceia de Da Vinci, a importância que tem o Judas, a ponto de existir uma lenda de que o modelo para ele e para o Cristo teria sido um mesmo homem, flagrado numa missa, depois numa taberna.

Mas e quando se trata de História com agá maiúsculo?

Um dos livros mais lúcidos que li sobre as razões da miséria latino-americana e da África, foi Bandeirantes e Pioneiros, de Vianna Moog, no qual ele demonstra que até agora, nós – do hemisfério sul - perdemos feio para Estados Unidos, Canadá e Europa, em termos de evolução, simplesmente porque no lado de baixo do Equador sempre tivemos tudo fácil demais: muito peixe, coco, banana, caça à vontade, além de um clima tropical que nos permitiu a nudez – até chegar o cristianismo - sem problemas: a terra, na verdade, sempre nos foi mãe, não madrasta. “Berço esplêndido” diz tudo. Já o Primeiro Mundo teve, de cara, o frio que o forçou a se pôr muito bem agasalhado e abrigado, pois – ao contrário das aves que migram com facilidade, e dos animais, dotados de peles, couros, presas e garras – somos demasiado lentos e frágeis. Esse vilão – o frio -, mais seus efeitos colaterais, fome, dor e morte, guerra pra todo lado, geraram a necessidade da resistência e do raciocínio, nele, daí a chamada Ci-vi-li-za-ção.

Vivi mais da metade da História do século XX e a vi sempre cheia de magníficos personagens positivos – tipo Einstein e Chaplin, Rachmaninoff e Joyce, Sartre e Bertrand Russell, Gandhi e Borges, Picasso e Walter Gropius – mas a marca mais funda deixada na centúria foi, incontestavelmente, a de seus imensos vilões, como Pinochet, Franco, Idi Amin, Papa Doc, Mussolini, Stálin... e Hitler, claro. Parece-me que eles sempre tiveram a mesma função da Lua ao provocar as marés, e das placas tectônicas ao nos fornecer terremotos e tsunamis, sem falar dos furacões, vulcões, tempestades: agitar, para que haja vida. Quem não sabe que o grosso da ciência e tecnologia adquiridos no final do último milênio surgiu do desespero causado pelas duas guerras mundiais? Lembro-me de um velho documentário sobre a Primeira Grande Guerra, em que se via como ela começava de modo clássico, comandada por generais a cavalo, que assistiam a batalhas do alto das colinas – tal e qual os quadros em que dominava Napoleão, no século anterior – passando, logo depois, a se encher de pequenos tanques, caminhões, e de bombardeios de aviões. Claro que esses avanços foram utilizados, depois, nos utensílios da paz. Deus dá o frio – diz o povo – conforme o cobertor. Ou “não há mal que não traga um bem”, o que a física confirma ao afirmar que Toda ação provoca reação igual e contrária.

De nosso ponto de vista, vilão é vilão. Sub specie aeternitatis, instrumentos da Vida. Eis tudo.

Sem os obstáculos ao bem-estar, ... não somos nada.

2 comentários:

www.ecologiaemfoco.blogspot.com disse...

PERFEITO! De vilões e herois, nem todo mundo consegue sintetizar tão bem como o faz o Sr. Solha. Vou "armazenar" este breve, porém completo apanhado sobre nossos percalços civilizatórios. Sobre os vilões, da vida real (Idi Amin, Hitler...) como evitá-los se são os mais espertos e oportunistas!? Catástrofes? As antrópicas superam (em muito) as naturais.Os genocídios apresentam registros recentes estarrecedores. Os ugandenses e serra-leonenses sobreviventes que o digam! E continua... Síria, Líbia, Iraque, Irã... E nosso Brasil não fica pra trás, com suas especificidades. Postei algo sobre isso no www.ecologiaemfoco.blogspot.com. BG

Hugo Caldas disse...

Meu caro Solha

No rol dos "meninos maus" acho que, como diria David Nasser no "O Cruzeiro", "falta alguém em Nuremberg": que tal incluir personalidades como Pol-Pot, Somoza, Strossner, Fidel e os carniceiros membros do governo turco, Mehmet Talaat, ministro do Interior, Ismail Enver, ministro da Guerra, e Ahmed Jemal, ministro da Marinha, que perpetraram o esquecido "Genocídio Armênio" entre 1915 e 1918? Sabia que essa tragédia serviu de inspiração para o Adolph maluco? Tem Vossa Mercê absoluta razão - "No hay mal que por bien no venga" - a aviação comercial se firmou no mundo inteiro por conta da adaptação de um avião militar, C-47, transporte de tropas, no Douglas DC-3 sua versão civil. Ainda hoje esse equipamento voa em diversas partes do planeta, inclusive aqui em Pindorama. Texto incisivo, mas absolutamente verdadeiro. Gostaria de tê-lo escrito. Hugo