sexta-feira, junho 03, 2011

Eu polícia?

Francisco Nunes

Ser policial, igual ao meu pai, nunca imaginei. Mas a certeza de um salário, alimentação, e talvez até local para dormir, foi, naquele momento, um xequemate perfeito no destino. Eu estava em João pessoa há 40 dias e, até aquele momento, nenhuma oportunidade de emprego surgira. Eu nem sabia por onde começar a procurar.

Chegando ao quartel com minha mãe ela se dirigiu ao oficial de dia e disse que gostaria de falar com o Major José Guedes. Prontamente fomos conduzidos ao seu gabinete.

— Este é meu filho — disse minha mãe. Ele está desempregado e eu queria lhe pedir que o colocasse na Polícia.

O major pegou uma folha de papel que estava sobre a mesa, anotou meu nome e minha idade. Depois, disse-me que comparecesse no dia seguinte para exame médico.

Fiz os exames no dia 3 de abril. Quatro dias depois, recebi a convocação para apresentação no quartel da Força Policial, na manhã seguinte. Comemorei, sem nenhuma noção do que poderia me aguardar. Sentia apenas que minha vida tomaria novo rumo a partir daquela brilhante idéia de minha mãe.

Então, no dia 8 de abril, às 8 horas da manhã, no quartel, apresentei-me ao oficial de dia. e este incumbiu um soldado da guarda de me conduzir à presença do Major José Guedes. No gabinete, fiquei aguardando. Um sargento foi chamado e o major disse, apontando para mim:

— Este é o rapaz de quem lhe falei. O sr. está com o exame médico dele?

— Sim senhor — confirmou o sargento.

— Então — disse o major —, pode incluí-lo na Força, a partir de hoje.

O sargento pediu que eu o acompanhasse. Fui levado a um setor chamado de Furrielança e, ali, me entregaram duas fardas sem ajustes, na cor cáqui, duas camisas de malha, dois pares de meias brancas, um par de borzeguins pretos, um cinto da mesma cor, três cuecas, um bibico e um capacete. Peguei o fardamento, e o sargento me conduziu ao alfaiate para tirar as medidas e fazer o ajuste.

Fui informado de que poderia usar roupa civil até que a farda ficasse pronta, mas quando a recebesse, pelo regulamento, só poderia andar fardado, até mesmo nos dias de folga. Depois, o sargento me mostrou o alojamento onde eu ficaria. Era um grande salão com camas arrumadas uma ao lado da outra, dispostas simetricamente, formando duas alas, com um corredor central. Embora fosse um ambiente limpo, não havia qualquer elemento decorativo. Indicaram a cama que eu deveria ocupar, cuja arrumação ficaria por minha conta a partir daquele momento, e o pequeno armário para guardar meus objetos e minhas roupas.

Saí meio intrigado, pensando comigo mesmo: “Como será a vida nesse tal de alojamento?”

No pátio do quartel, o sargento se despediu e sentenciou:

— Aqui, agora, começa sua nova vida... Seja disciplinado e boa sorte!

Fiquei perambulando pelo quartel, durante aquele dia, conhecendo as instalações e observando o procedimento dos recrutas e soldados. Mandaram-me para a barbearia onde me barbearam e apararam meu cabelo ao jeito militar.

Foi a primeira noite que dormi ali.

Cedo, muito cedo, às 5 horas da manhã, acordei, pela primeira vez, ao som frenético de uma corneta, e vi todos agitados, arrumando suas camas, preocupados em dobrar o cobertor em forma de “V”; uma cama parecia cópia da outra. Imitei.

Outra vez, a corneta. E gritaram:

— Formar, para o rancho!

— O que é rancho? — perguntei.

— O café — responderam.

Descemos para o pátio e uma fila se formou para entrarmos no refeitório. Após o café, outra vez, no pátio, apareceu um sargento sisudo, de apito na boca, segurando uma prancheta. Chamava cada um pelo nome, separando alguns para a direita e mandando outros entrarem em forma. Eu fiquei entre estes últimos, em forma. Finalmente, ele soprou o apito e disse apontando para um grupo de cada vez:

— Vocês estão na escala de serviço do dia, e vocês, que estão em forma, irão para a ordem unida.

Eu perguntei ao companheiro do lado o que significava ordem unida, e ele, de pescoço duro, sem me olhar, respondeu em voz baixa:

— Exercícios de marcha, caminhar olhando para a nuca do companheiro à sua frente.

— Ah, sei... — respondi, vacilante.

Naquele mesmo dia, recebi a farda. Vesti-a, orgulhoso. Olhei-me no espelho e gostei da minha imagem. “Eu, soldado? Nunca me imaginei!” A cor caqui da farda não favorecia a minha pele morena. O capacete encobria meus cabelos castanhos e crespos, bem aparados, e concedia à minha face afilada um tom sisudo, atenuado pelo brilho ainda infantil dos meus olhos miúdos. Ser militar nunca foi um desejo, e a farda, embora garbosa, deixava meu físico franzino, com um jeito meio engraçado, que lembrava o soldadinho de chumbo que ganhei, certa vez, do meu avô. Mas eu pensava que era assim mesmo e que
com o tempo eu me adaptaria àquela vestimenta e à vida no quartel.

À noite, fui visitar minha mãe. Quando ela me viu, abriu um largo sorriso:

— Apolônio, seu pai, precisava ver como você está parecido com ele!

Pensei nele e concordei:

— Eu também gostaria que ele pudesse estar aqui, ao nosso lado, comemorando o meu novo momento. E continuei: — Não preciso mais pedir ajuda, nem mentir, nem fugir de ninguém. Agora tenho trabalho, salário, casa, roupa e comida. Posso estudar, fazer boas amizades, e, quem sabe, encontrar caminhos melhores — disse, abraçando minha mãe.

Retornei ao quartel.

Todos os dias, a mesma rotina: pela manhã, um instrutor conduzia os recrutas nos cansativos exercícios de educação física e, à tarde, éramos submetidos a todo tipo de treinamento: da ordem unida ao manejo das armas.

Passei a entender melhor a relação entre as pessoas, a hierarquia, o cumprimento do dever, a disciplina militar rigorosa.

A minha vida mudava com muita velocidade, e eu percebia que essa nova maneira de enxergá-la estava me transformando em outra pessoa.

Eu dormia no quartel. Tinha direito ao rancho. Ganhava 50 mil réis. Minha mãe cuidava do meu fardamento com um carinho especial e eu lhe dava mensalmente 30 mil réis para ajudar nas despesas e recompensá-la pelos dias em que estive morando em sua casa. Todo final de semana eu a visitava, conversávamos e, antes de sair, trocava a farda usada por outra limpa.

Por sorte, assim que passei a pronto, fui escolhido para trabalhar na Casa das Ordens, setor do quartel onde eram publicadas as notícias da Polícia Militar, sob a direção de um oficial. Fui incumbido de operar o mimeógrafo na impressão do boletim diário, distribuído e lido em todas as unidades da Força, às 16 horas. O mimeógrafo era um aparelho antigo, “engasgava” o estêncil, e eu tinha que fazer alguns malabarismos para não atrasar o boletim. De qualquer forma, a despeito dessas dificuldades técnicas, era um privilégio trabalhar na Casa das Ordens.

Passei a servir na Companhia Extra, e, por ordem superior, só poderia dar guarda em prédios públicos, entre 18 e 6 horas da manhã, devido à minha atividade.

Dormia, excepcionalmente, num anexo da própria Casa das Ordens. No mesmo anexo, dormia também o cabo Lucena, responsável pelo material da Cia. Extra. Era um excelente companheiro, tinha bom papo e eu gostava muito de trocar idéias com ele.

Eu já era cabo quando Lucena adoeceu e foi internado com fortes dores de cabeça. Os exames indicaram um tumor no cérebro e a notícia surpreendeu a todos no quartel. Foi operado com urgência, porém não resistiu. Então, eu, por ser o seu melhor amigo e companheiro de quarto, fui escalado para comandar a saudação fúnebre na entrada do cemitério, na hora do sepultamento. A emoção me dominou de tal forma que, com muita dificuldade, a minha voz de comando foi ouvida pelos comandados para executar a salva de tiro. Foi, sem dúvida, o pior momento vivido por mim na vida militar.

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