quinta-feira, maio 05, 2011
O peru é nosso e ninguém bota a mão!
Francisco Nunes da Costa
"PRÓXIMO DA CASA DOS “HATEFIELD’S” em Tambaú, havia um grande e conhecido pensionato ou grupo escolar (não lembro bem), administrado por freiras, onde costumavam se hospedar moças e senhoras de outras cidades.
No verão aquela casa ficava bastante movimentada. As freiras aproveitavam a grande freqüência de veranistas e, ao final de cada verão, realizavam alegres quermesses com o intuito de angariar fundos para seus projetos de caridade. Os moradores da vizinhança recebiam convites especiais e ninguém se abstinha de participar de tão inusitado evento, que ocorria apenas uma vez no ano. Naquele final de verão de 53, nós, moradores da “mansão”, também recebemos o convite e, já sabendo da alegria que envolvia o acontecimento, comparecemos determinados a chamar a atenção para o nosso grupo.
Dentre as várias brincadeiras e sorteios, o leilão era o que mais atraía e mantinha a atenção dos convidados. As prendas, de vários valores, eram arrematadas com grande euforia numa disputa acirrada e barulhenta. Cada prenda era encarada como troféu de uma batalha a ser vencida entre os grupos adversários reunidos em torno das mesas. As brincadeiras e gracejos provocantes, por vezes depreciativos, eram considerados armas de ataque para arrasar os concorrentes, e, na verdade, a vitória existia pelo simples fato de ganhar e não por interesse no prêmio. Quando era batido o martelo, o vencedor exultava e as freiras aplaudiam com alegria por saber que uma nova rodada poderia começar.
Para o final da festa, aguardado por todos com muita expectativa, ficava reservada uma prenda especial, encerrando assim a quermesse daquele ano. A essa altura, muitas cabeças já estavam quentes e alguns já nem sabiam o que ali faziam.
A freira, mestre-de-cerimônias, ressaltou o grande prêmio, desafiando os grupos que poderiam disputá-lo naquela tarde. Correu um olhar circundante pelas mesas, fixando-se propositalmente em algumas delas e com ar de provocação convidava para o último lance da noite.
— A prenda... — anunciou a freira, com voz alta, no silêncio do suspense — será este enorme e cheiroso peru!
Todos olharam para a bandeja que ela trazia nas mãos coberta por um pano branco, de linho. E como se tentasse produzir uma reação de gula no nosso grupo, ela levantou a pequena toalha e pousou o coitado do peru assado bem à frente da nossa mesa. De fato, o cheiro e a aparência daquela pele tostada nos desafiou para que, custasse o que custasse, os moradores da casa dos “Hatefield’s” fossem os vitoriosos daquela preciosidade dourada, que jazia, com as pernas esticadas para os céus.
A freira deu início ao leilão em meio a grande gritaria dos presentes, que em coro ritmado e, com vozes exaltadas, cantavam o bordão:
— O peru é nosso... o peru é nosso... e ninguém põe a mão!!
Em meio a tanta euforia, a freira desafiava os outros grupos, insinuando, pelo olhar, que a prenda seria nossa.
Os que ali estavam entenderam o recado da irmã festeira, que mais e mais se animava com a exaltação geral, sem entender que os grupos opositores ao nosso se inflamavam com o visível favoritismo dela. A nossa mesa deu o primeiro lance, que fez esquentar o sangue dos que brigavam pelo peru. Embora elevado, em relação ao valor do prêmio, ninguém desanimou. E os lances se sucediam cada vez mais competitivos, acompanhados do grito ritmado da expressão: “O peru é nosso e ninguém bota a mão”, que já se tornara musiqueta de baderna. A freira percebeu a situação constrangedora em que ficara, mas não podia abandonar o posto naquele momento crucial e disfarçava para não permitir que a sua alegria fosse encarada como cumplicidade daquela euforia maldosa. Cada lance puxava outro ainda mais alto, vibrante e ameaçador.
A casa dos “Hatefield’s” quando se sentia ameaçada cobria qualquer lance, provocando e dificultando ainda mais a finalização da brincadeira. Enquanto isso, a freira, de olhos arregalados, parecia não acreditar que o peru fosse lhe render um valor tão alto. Nem lhe chamavam à atenção as cabeças cheias de cervejas que aos poucos já começavam a desvirtuar o verdadeiro sentido da quermesse.
Finalmente, a euforia desenfreada cedeu lugar à razão e o martelo foi batido com o lance dos “Hatefield’s”.
Houve admiração geral e o peru foi colocado em nossa mesa com aplausos e vaias vindos de todos os lados.
Fez-se um breve silêncio enquanto os arrematantes se cotizavam. E logo a música ganhou outro tom, cantado apenas pelos seis integrantes da nossa mesa:
— Venham! Venham! O peru é de todos! O peru é de todos!
Depois de sermos aplaudidos e consagrados como vitoriosos, o peru foi estraçalhado e franqueado para quem quisesse, e seus pedaços devorados em poucos minutos, com muitas brincadeiras. As freiras se entreolhavam assustadas, tentando se manter à parte das piadas maliciosas, sem contudo deixar de demonstrar a enorme satisfação pela quantia arrecadada que correspondia a mais de dez perus.
Para encerrar a tarde de “peruada”, foi ensaiada uma dança de despedida. Cada qual correu para conseguir um par e eu, lerdo e zonzo pelo excesso de cervejas, sobrei, ficando a um canto da parede, sozinho. De repente, vi a saia da freira organizadora passando pela minha frente e, baixando-me um espírito endiabrado, segurei-a pelo braço, implorando que dançasse comigo. A pobre freira repeliu-me, compreensivamente, alegando sua condição de religiosa. Alguns amigos se movimentaram em minha direção e, em solidariedade à freira, empurraram-me para fora do recinto sem não antes me chamar à atenção pelo meu procedimento, que, de modo algum, condizia com o conceito dos respeitados moradores da casa dos “Hatefield’s”.
Estava encerrada a quermesse, para mim antes do tempo...
(extraído do meu livro" Minha vida meu Tudo")
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3 comentários:
Quero destacar aqui os nomes dos 6 amigos que estavam na mesa dessa quermese: Dr. Edwald d'Oro, engenheiro, Eurípedes Gadelha, jornalista e meu colega nos Correios, João Geraldo Leite (Joquinha), da Sul América, Geraldo Rolim, estudante, Elcyr Dias, jornalista e eu, o cara de pau.
Francisco Nunes
Bela descrição do O" peru é nosso"....Imagino como era o dia-a-dia na mansão
dos Hatefield........ obg...té mais ver... Luna
Obrigado Zeneudo pelo seu comentário. Foi, de fato, um período maravilhoso da minha vida. Ali fiz muitos amigos, vivi e testemunhei muitas histórias e aprendi o verdadeiro significado da palavra liberdade.
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