Luiz Felipe Reis
Um ano após ser diagnosticada com leucemia, Drica Moraes festeja a volta ao trabalho
Aquele era um dia acalorado. Não apenas pelo sol, forte desde as primeiras horas da manhã. A afobação vinha por outros motivos. E ela sentia que atropelava seu próprio ritmo, “uma coisa que eu prometi que não faria jamais”, dizia. Pela manhã, caixas e mais caixas de mudança partiam de sua antiga casa na Avenida Niemeyer e eram agrupadas em seu novo apartamento, na Gávea. Uma correria da qual ela está reaprendendo a dar conta.— Tô saindo de uma casa enorme para um ovo — contava, por telefone, enquanto coordenava o atraso do frete, olhava o relógio avançar e imaginava o trânsito no Jardim Botânico se agravar, em meio a cálculos sobre o tempo que ainda teria para se arrumar antes da foto e da entrevista marcadas para aquela mesma tarde. — Não é por tudo o que eu passei que a gente não tem vaidade, né?
Minutos depois, estava pronta e a postos, no Parque Lage. Disposta a falar sem freios pela primeira vez desde que um transplante de medula a curou da leucemia diagnosticada há um ano.
— Recebi o diagnóstico no dia 10 de fevereiro. Naquele dia eu morri. Mas depois que você se interna é só luta e cura, recuperação e cura. Apenas isso diz.
A voz se cala, ela suspira e depois sorri. Aos 41 anos, Adriana Moraes Rego Reis está refeita e pronta para fazer renascer a outra metade que a completa desde que se entende por gente: a atriz. Foi o que aconteceu na semana que passou. Com um convite para gravar uma participação especial na novela “Ti-ti-ti”, Drica Moraes voltou ao batente. A ansiedade não é só por se ver na tela, a partir de 7 de março, mas por se reconhecer novamente como profissional da atuação.
A sensação é de começar do zero, como se fosse algo que nunca exerci na vida. O que você tirava de letra agora demanda concentração. Aquele nervoso antes de gravar, a ansiedade que te faz pensar que esqueceu tudo. Eu ainda tenho a memória um pouco alterada. Mas aí você fecha os olhos, respira fundo e vai embora. Foi um prazer! — exclama ela, que ainda está no elenco de “Bruna Surfistinha”, que estreou na sexta-feira (filme em que trabalhava quando começou a se sentir mal, aliás), e já foi convidada pelo diretor Enrique Diaz para fazer a peça “A beautiful view”, do autor do sucesso “In on it”, Daniel MacIvor.
Na novela, durante sete capítulos, ela vai aparecer como a roqueira Teresa Batalha, ex-companheira de Jaqueline (Cláudia Raia) numa banda dos anos 80. O retorno ao trabalho foi muito pensado, assim como o convite feito pela autora Maria Adelaide Amaral. Durante o tratamento da atriz, realizado no Hospital Albert Einstein, em São Paulo, as duas estreitaram laços. Visitas, jantares, papos e trocas de experiências acentuaram a admiração que a autora nutria há algum tempo pela atriz.
Sempre que ela estava em cartaz em São Paulo, eu ia assistir — conta Maria Adelaide. — Então, a convidei para fazer o papel que a Malu (Mader) interpreta, mas ela não pôde, por causa da doença. Durante o tratamento, eu dava um jeito de encontrá-la, e ficamos amigas. À medida que ela ia melhorando eu pensava que ainda dava tempo. Deu, ela topou, e acho que é um grande ganho para ela, mas um ganho ainda maior para a novela, porque ela é uma grande atriz. Transita entre o drama e a comédia com fluidez. Acompanhar seu retorno é um presente. Eu também já enfrentei um câncer, mais leve, e sei como é. Ou você luta, ou você luta. Não há opção. E ela é tão cheia de vida e de planos que superou.
O retorno à TV vai ocorrer uma semana depois de ela ressurgir nas telas de cinema como a cafetina Dona Larissa no longa “Bruna Surfistinha”, dirigido por Marcus Baldini, que estreou anteontem. Lembrar do filme e vêlo em cartaz faz com que a atriz experimente um misto de sensações. Foi no fim de 2009, durante as filmagens, que Drica começou a passar mal. Numa das locações, um prédio antigo e sem elevadores, o esforço para subir os degraus era cada vez mais visível e incômodo. Sentia-se fraca, como se tomada por uma virose tão forte quanto inexplicável. O contexto urbano ao redor e o lastro temático do longa não agiam a favor. E mais de uma vez ela foi levada da cracolândia da capital paulista para um hospital. Apesar de fragilizada, até então a única certeza que tinha era de que o corpo não funcionava como o rígido cronograma de filmagens pedia, que a mente não respondia ao chamado do texto e que a personagem lhe exigia mais do que o esperado.
Baixei no hospital algumas vezes, mas achava que era uma virose, porque o difícil da leucemia é fechar um diagnóstico, conta Drica. Os exames são capciosos. Pode não dar nada e logo depois você ter que se internar às pressas.
Transplante faz oito meses Vestindo uma personagem “raivosa, intensa e brincalhona de um modo quase esquizofrênico”, como define Baldini, a cafetina sugava a energia da atriz ao passo que chamava a atenção de todos no set mais simples, apesar de ela se sentir mal. Ela enfrentou muito bem aquilo na hora, e quando entrava em cena tudo mudava, recorda o diretor. A Drica consegue pensar e acrescentar nuances ao personagem enquanto o interpreta. Fazia coisas que surpreendiam a todos. As pessoas se tornavam espectadoras do que ela fazia. Foi horrível saber que ela estava realmente doente, mas agora é uma grande alegria saber que está recuperada.
Até a recuperação, Drica atravessou uma tormenta. Se os sintomas camuflados já combaliam seu corpo, a confirmação da leucemia a atingiu como uma granada de efeito moral. Ela desabou.
— Vem um puta medo, uma puta raiva... — diz. Mas logo percebeu que o chão não era o lugar ideal para permanecer: Você cai, chora, mas não pode ficar lá na deprê. Eu nunca fui chegada a uma deprê, e isso me ajudou — acredita. — Acho que definiu todo o jogo da recuperação. Apesar de tudo, é preciso ser assertiva, positiva. Muitas vezes fui dormir sem saber se iria acordar... Muitas noites que não terminavam, e isso foi até bem pouco tempo atrás.
Nesta semana, ela marca na agenda oito meses desde que se submeteu a um transplante de medula óssea. Sobre o doador, sabe apenas que é um homem.
— O homem da minha vida. A vontade de conhecê-lo é enorme — conta. — Fico impressionada com a capacidade de adaptação do ser humano. A minha principal fábrica de células agora não é minha. E mesmo assim estou me dando muito bem com ela.
Desde o transplante, ela diz que a cada dia se sente mais motivada, inteira, enquanto, aos poucos, “as paranoias vão diminuindo”. Tem gente que tem medo de pensar e falar na morte. Tive uma relação com isso bem verdadeira, afirma. Não sei, chega uma hora em que você olha para si e diz: “Quer saber, tudo bem se eu morrer. Já fui muito feliz, fiz um monte de coisas... E daí se eu morrer? E daí? O mundo vai continuar igual, o meu filho vai crescer e vai ter amor pra cacete em volta dele. Agora, se eu puder decidir, não tem dúvida. Eu queria ficar aqui.” E sobrevivi.
O giro de 360 graus que alterou o eixo existencial da atriz não é de agora. Drica se diz uma “mulher de verões”, e foi no de 2009 que a terra começou a descolar dos seus pés: Em janeiro eu me separei, em fevereiro o Mateus (filho adotivo da atriz) chegou e eu era mãe solteira... Foi muito duro me desapegar do senso comum. Tinha uma ideia de família convencional, com pai, mãe e filho... Decidi que a minha seria diferente. Me desapeguei de um amor e da ideia do casamento, saí da casa que construí há mais de dez anos, decidi deixar a TV para fazer mais cinema...
Recuperada, ela agora atravessa a fase da “formiga cabeçuda, que a cada dia leva uma coisinha para casa”, como diz. Aos poucos recupera a memória e usa “o embaralhamento para selecionar o que vale a pena lembrar”. A volta ao trabalho a faz recobrar o desejo que a levou ao Tablado, aos 12 anos, e a montar um grupo de teatro com os amigos, aos 19. Sobre a Cia. dos Atores não há um pingo de lapso, e ela não vacila em dizer que foi ali que curtiu suas mais valiosas experiências. A relação é tão forte que não chega a ser delírio imaginar que há certa conexão no fato de a companhia ter enfrentado o seu ano mais difícil — rifando equipamentos para saldar dívi dívidas e impedir o fechamento de sua sede — no mesmo período em que Drica enfrentava o seu turbilhão particular.
- A companhia é tudo para mim, um pulmão que se abre para a experimentação, a troca, o risco, coisas com que o teatro deve se comprometer.
Mais teatro nos planos
Drica se refere a Enrique Diaz como um “irmão a quem devo muito do que sei e muito do que desaprendi”. Define a experiência com Amir Haddad, que a dirigiu em “Pixinguinha”, como um teatro “libertador, que nos livra das máscaras, das coisas que a gente carrega sem saber o porquê”. E cita Aderbal Freire Filho, que a dirigiu em sua última montagem, o monólogo “A ordem do mundo” (2008), como o homem que a ajudou “a juntar palavra com ação”. E é com eles que ela pensa em trabalhar quando voltar ao teatro. O primeiro da fila é Diaz. Juntos, eles começam a ensaiar “A beautiful view” ainda este ano.
— A Drica é uma pessoa muito próxima, fomos namorados por duas vezes. Então, a ligação, o afeto e a amizade que temos vêm de tempos — conta Diaz. — Depois de tudo o que ela passou, vê-la voltar a trabalhar é constatar uma atitude heroica. Vai ser muito importante voltar a trabalhar ao lado dela. Experiência que Amir Haddad desfrutou quando Drica ainda era uma jovem atriz:
— Era aparentemente frágil, pequena, gentil, mas quando entrava em cena ficava enorme, bonita e poderosa. É toda a força que ela nos mostrou agora. Força e multiplicidade que levam Aderbal Freire-Filho a agradecer no plural pelas muitas vidas que foram salvas com a boa saúde de Adriana e com o retorno profissional de Drica:
— A minha sensação é de que se salvaram muitas, venceram muitas. E por isso temos que comemorar as muitas vidas que ela por si só representa.
Colhido no Conteúdo Livre
Um comentário:
MINHA VIDA!...
Se não fosse esta vida,
Que vida que eu viveria?
Mais bem vivida, seria,
Que a vida que agora vivo!...
Dizem: a vida que se vive
Nós é que podemos escolher...
Escolher a vida que se vive...
Desconsiderei esse poder!...
Se quisesse, por acaso,
O meu viver escolher,
Escolheria outra vida,
Não escolheria o poder?...
O Poder não escolhi
E tão pouco a quero ter...
A vida que vivo a prefiro,
É mais vívido vivê-la...
É o meu querer esta vida.
Esta vida é o meu querer!...
J. P. Fontoura.
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