Hugo Caldas
O caso ficou conhecido como "O Falecimento de Maria Preá".
Antes de mais nada, mister se faz localizar geograficamente onde tudo aconteceu. Foi em Brejo de Xaxerê do Norte, umas doze léguas pra lá dos Cafundós do Judas, ainda em solo paraibano, bem pertinho da fronteira com o Ceará. Lugar inóspito, de uma secura abrasadora, na verdade a região jamais fora amena. A seca era como um castigo de Deus. Dizia-se que dava para fritar ovos na calçada da Pracinha. Chuva, por ali só de dez em dez anos ou quando muito apenas na imaginação dos poucos alunos da escolinha paroquial onde a professora Maria Gertrudes, derramava meia caneca d'água numa peneira para demonstrar o que era a chuva.
Quando Padre Belarmino aportou por aquelas bandas em 1937, chegado recém da sua ordenação em Roma, era homem bem-apessoado. Ainda lembrava muito o jovem padre saído do seminário de Lagoa Seca, em Campina Grande. Um padre cheio de esperanças e planos, nos seus quarenta e cinco anos de idade, para o serviço da Santa Madre Igreja Católica Apostólica Romana.
Além de professora na escola paroquial, Maria era muito chegada às coisas da casa do Senhor. Não se poderia afirmar em sã consciência que a professora Maria Gertrudes fosse uma beata, na mais completa acepção da palavra. Digamos que a jovem adorava perambular pelos altares da pequena igreja, sempre vigilante e sempre cantarolando o bendito favorito, boa zeladora que era.
A nós descei divina luz
A nós descei divina luz
Em nossas almas acendei
O amor, o amor de Jesus
A nós descei divina luz
Em nossas almas acendei
O amor, o amor de Jesus
Tinha o porte de princesa, vestia-se bem, sempre uma roupa leve que lhe vinha dos ombros e caia aos tornozelos. Falsa magra, belas pernas que apareciam furtiva e generosamente graças à uma pródiga fenda na saia. Seios rijos e túmidos, uma deslumbrante cor bronzeada, cabelos curtinhos, usava óculos com lentes marrom-claro embora não os necessitasse, falava num cicio, adocicando as palavras que lhe saíam num quase sussurro. Isso tudo, convenhamos, destrambelhou de vez a cabeça do Pe Belarmino que não se conteve quando certa tarde quente a viu trepada, pés descalços, no altar de Nossa Senhora da Conceição limpando diligentemente uma sujeirinha de azinhavre no sovaco do crucifixo. Não se conteve e ali mesmo puxou-a para si e perdendo o equilíbrio, caíram ambos em um providencial colchão de molas que havia por detrás do altar-mor. A agarração começou naquele instante e ali ele a amou pela primeira vez.
Da parte de Maria Gertrudes houve pouca ou nenhuma resistência ao assédio do padre. Deste dia em diante o caso com a professorinha virou um chamego, um amor louco, que só tendia a aumentar. Cada vez que Pe Belarmino ficava inquieto, de pronto aparecia Maria e lhe matava a fome. Uma bela e fogosa potranca nos seus trinta e dois anos de idade. O tempo foi passando e os dois se amando até que, por um descuido natural das pessoas que se amam, deixaram uma pista. Um pequeno bilhete amoroso onde se tratavam carinhosamente por Seu Moço e Dona Moça. De posse do bilhete comprometedor, analisando e tirando suas próprias conclusões, Pedro Sacristão terminou por flagrar os amantes no bem-bom. Foi num desairoso domingo, após a missa das dez. Maria e o padre foram até a cozinha preparar o almoço e não se sabe como, nem porque, se por artes do Diabo ou do deus Eros, caíram nos braços um do outro quando inesperadamente surgiu Pedro Sacristão berrando porta adentro: "Te peguei, Maria Preá”.
"Maria Preá" era o apelido de infância da professora Gertrudes. Daquele dia em diante o casal perdeu a paz, o sossego. Era uma chantagem por dia. Uma intimidação atrás da outra. Ameaça de contar para toda a cidade o segredo tão bem guardado. Seria um escândalo. E ainda exigia pagamento. Grandes quantias. Um inferno. Se Belarmino reclamasse o sacristão gritava nervoso e cheio de impaciência: "E a Maria Preá, e a Maria Preá"?
Pedro Sacristão era um sujeito branquelo, atarracado, sempre ostentando uma barba de uns três dias, asqueroso odiento e sempre suado. Não era evidentemente uma figura agradável à vista. Dizia-se que quando jovem Pedro Sacristão emigrara para o sul, mais especificamente para o Rio de Janeiro, onde à falta de outra habilidade acabou sendo ajudante de missa na Igreja da Penha. Esgotados todos os esforços para a sua permanência, teve que voltar à "Pequenina e Heróica" não sem antes, como última tentativa para manter-se no Rio, arriscar um trabalho de garçom e cantor de tangos em um cabaré de segunda, na Lapa.
De volta aos pagos tabajarinos, Pedro Sacristão veio cheio de salamaleques, cheio de pabulagem, forçando um sotaque carioca, o que não agradou em nada, porque as pessoas continuaram a vê-lo como o Pedro Sacristão de sempre. Uma inutilidade ambulante. Mas, em cidade pequena quem não é parente é compadre e logo começaram a descobrir e espalhar aos quatro cantos, certos fatos digamos, desabonadores da conduta do sacristão, fatos que davam conta que ele perdera no Rio a sua virgindade e voltara adepto de certas práticas pecaminosas tais como "a do amor que não ousa dizer o seu nome". Diante de tanto disse-me-disse foi formada uma comissão de senhoras da alta sociedade local para falar com Pe Belarmino que a tudo ouviu em compenetrado silêncio e ficou de apurar a veracidade das acusações.
A tudo estava atento o Nêgo Pilão. Pilão era um tipo estranho e bastante conhecido na cidade por seus hábitos nada ortodoxos com referência a sexo. Negro retinto, parecia um autêntico zulu, apresentava várias falhas nos dentes da sua bocarra. Olhos eternamente injetados pelo vício da bebida. Falava-se em surdina que, em matéria de sexo Pilão gostava mesmo era de outra fruta e que dia seguinte ao seu casamento com a filha do barbeiro Silvino, a devolveu à seus pais, taxativo:
- b..... só tem cartaz, bom mesmo é um c......!
Certo dia Pe Belarmino deu com Bentinho Alvaiade, negrinho de recados do Engenho Jaçanã, batendo nervosamente na porta da igreja. Era chamado às pressas por Dona Ermengarda Teixeira para ir dar a extrema-unção ao Coronel Epaminondas que dava mostras de querer partir desta para outra melhor. Na pressa reuniu os paramentos e somente se deu conta de que havia esquecido os Santos Óleos quando na estrada. Parou deu meia volta na charrete e rumou direto à casa. Ao chegar, bela surpresa!
Padre Belarmino foi entrando apressado na casa paroquial. Logo notou que havia algo de errado. O silêncio sepucral só foi quebrado ao ouvir sussuros e vozes não devidamente articuladas, emitidas por quem sente dor ou prazer. De súbito divisou na penumbra o sacristão na posição em que Napoleão perdeu a guerra, com as calças arriadas e por trás dele ninguém menos que o Nêgo Pilão bem animadinho, resfolegando que nem locomotiva ameaçando sair da estação. Padre Belarmino ante a cena dantesca, envergonhado, perdeu a voz. Entretanto, conseguiu sair do torpor, se recompôs e imbuído do mais puro sentimento cristão encheu os pulmões e com o desabafo entalado na goela há tempos, gritou:
"Pedro Sacristão, seu filho da puta, você se oriente, pois pra nós, daqui pra frente, morreu Maria Preá."
21 comentários:
Hugão, genial. Gostosíssimo de ler.
Parabéns.
O autor, Hugo Caldas, é meu amigo. Paraibano da gema. Culto como poucos. Precisa melhorar muito para ser chamado de safado. Invejo seus escritos. Inveja daquelas antigas. Das saudáveis. Jorge
Maravilha, Hugo. História enxuta, excelentes descrições da região e dos tipos, desfecho pra lá de bom. Beleza pura.
Hugão, história (ou estória?) deliciosa. Parabéns. E mande mais! Carlos
Hugo, parabéns pela narrativa. Você consegue colocar em alerta todos os sentidos do leitor. Brinca, realmente, com a trama de forma simples, sem rebuscamentos e com uma leveza que dá pena quando a gente termina de ler. Que venham outras.
Um abração, Djanira
Hugo, adorei o seu conto. Estória autêntica, daquele tempo, na nossa Paraíba. Amei o teor, a linguagem, o nome das pessoas, tudo. Adorei o final, claro! Tu és mesmo um "caba da peste" Ô bicho bom!!!! Um grande beijo, Lucia Rosas, ou Cravo, como você preferir.
Hugão...Seus contos são sempre impagaveis...Este então, da Maria Preá é formidavel...obg témais ver....Luna amigo
Caro autor Hugo Caldas
Primeiramente obrigado pela leitura do delicioso conto "...Maria Preá". Permita-me, entretanto, alguma consideração que acredito seja por demais pertinente. Sobre, por exemplo, o sofrido Pedro Sacristão. No texto ele foi, não sei se deliberadamente, pintado como o vilão dos vilões. Por do que o Iago do Otelo. Quem sabe, não seria tão vil assim. O detalhe é que "gritou porta adentro, te peguei Maria Preá". Logo em seguida o autor confessa que "Maria Preá" era o apelido da professora quando criança. Muito provavelmente os dois tiveram uma infância juntos daí nascendo um amor adulto do sacristão e não correspondido pela professora, tomando a forma de um redemoinho e transformando o pobre Pedro em bandido. Não fabrique vilões meu caro Hugo, o mundo já está cheio deles. Vide Brasília. Um forte abraço. Hermes
Hugão, Meu Cachorro Camorim.
Você arrasou. Que coisa gostosa de ler! Já conhecia a história, mas vc arrumou tâo bem que ela me soou novíssima. Bravo, cachorrão. Quero mais outra. Bjs. Naza
Ótima estoria, essa como outras que o Sr. escreveu, fez nossa imaginação trabalhar, mas gostaria de saber se vai ter continuação, caso não tenha coloque outra! :D
CLaudinha
Hugo
E eu vou dizer o que, depois do que todo mundo já disse?! Assino embaixo, e reconheço a firma em cartório, dando alvíssaras e cantando loas. Tá bom assim, ou quer mais?... Aline
Toda história tem mocinhos e vilões. Inclusive as adaptações das histórias verídicas. Delicioso texto, pai.
Huguinho.
Muito bom. Manfredo
Gostei demais Hugo!
Parabéns pela narrativa estilística, mais deliciosa de se ler!
Amigo Hugo
Maravilha! Abração, Almir
Amigo Hugo,
Gostei muito, estou sempre a ler seus contos maravilhosos.
Aquele abraço........
Amilcar Lins
A história da morte de Maria Preá é realmente supimpa. Enviei prá um monte de gente. Saudações momescas.
Silvio
HUGO
Texto gostoso de se ler.
Criativo, versátil, engraçado.
Você foi muito fiel e feliz ao escrever sobre esses "causos" que são ainda tão presentes no cotidiano e na nossa cultura interiorana.
Gostei Imensamente - Obrigada ! Parabéns !
Beijos - LISE
Hugão
Fico muito feliz com os seus "writings" que dão um colorido ao blog...
Mas este, da Maria Preá é muito gostoso de ler prende a atenção da gente até o final e que final, hein?
Nunca tive dúvidas da sua grande habilidade para escrever mas o privilégio de fazer a primeira leitura qdo sai do rascunho é sempre minha.
Bjs, eu.
Estimado primo Hugo!
Boa Noite!
Quanta habilidade você tem para escrever e passar com fidelidade o que está sentindo. Parabéns!
No texto: "Morreu Maria Preá", em:"...sujeirinha de azinhavre no sovaco do crucifíxo"...achei genial! Engraçadíssimo!
Tive que ler sorrindo. É por demais engraçado.
Parabéns! Parabéns! Parabéns! Abraços da prima Márcia
Grande Hugo,
Texto simplesmente extraordinário, mas sendo de sua lavra não me surpreende, você escreve como poucos...
Forte abraço
Pompeu Cantarelli
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