sexta-feira, janeiro 21, 2011

TRANSPLARTES

W. J. Solha


Há coisa de cinco, seis anos, todo dia passava na minha rua um jipe tipo bugre, com alto-falante anunciando um sorvete, o locutor muito claro na recomendação:

- Traga a vasilha. Traga / a / vasilha.

Quando fui participar, como ator, no final do ano passado, de um episódio-piloto pra TV - criado e dirigido por Carlos Dowling – aconteceu que meu personagem, empresário apropriadamente chamado de Sr. X, convocou pra sua sala uma funcionária novata, pelo sistema de comunicação que ele classificava de “teleológico”. E vi - no monitor que ocupava todo o tampo de meu birô – quando ela veio apressadamente no corredor, sobraçando várias pastas, algumas quase caindo da bagunça, até que parou ante a entrada de meu gabinete, levou a mão à maçaneta com dificuldade e, nesse momento, eu lhe disse com voz forte e grave, causando-lhe susto, usando a mesma pausa do sorveteiro:

- Não abra / a / porta!

Do igual modo (caramba, que pretensão!), Santos Dumont - ao construir o 14-bis, não havendo à venda, na época (evidentemente) motores para aviões, serviu-se deste Antoinette V-8, de barcos de corrida:
Já o velcro – utilíssimo, por isso gigantesca fonte de renda - foi criado pelo engenheiro suíço George de Mestral em 1941...
... a partir da observação atenta, ao microscópio, de um...

... carrapicho. Ele notou que o desgraçado é cheio de pequenos ganchos e, ao atentar para as roupas em que ele sempre... se engancha, o homem viu que os tecidos são sempre compostos de enorme quantidade de laços, daí que a hastezinha gruda no pano, exatamente como um velcro, que ele acabou inventando, gruda em outro.

Parece incrível. Mas você diria que Angelina Jolie...
.. é filha de John Voight?


Bem, e o que seria deste teclado...
Sem este?:

Por outro lado, dizem que Lavoisier foi o primeiro cientista a enunciar o princípio da conservação da matéria, imortalizado pela frase:

— Nada se perde, nada se cria,tudo se transforma.

— Rien ne se perd, rien ne se crée, tout se transforme.

Claro. Mas a citação exata é :

— … rien ne se crée, ni dans les opérations de l'art, ni dans celles de la

nature...

— Nada se cria, nem nas operações da arte, nem nas da natureza .

Na verdade ele não criou essa lei, que já fora estabelecida por Anaxágoras de Clazomene, na Grécia Antiga, e divulgada em versos por Lucrécio, no século I a. C, no livro « De Rerum Natura » na forma que a consagrou. Ex nihil, nihilo, ele começa. E me lembro de ter lido há séculos, no livro « Força e Matéria », de Luis Büchner :

Do nada, nada vem,

Ao nada, nada regressa.

A matéria, de girar em círculo

Nunca cessa.

Isso já estava lá, no Eclesiastes 1-9:

— O que foi, isso é o que há de ser; e o que se fez, isso se fará; de modo que nada há de novo debaixo do sol.

Por isso Ariano Suassuna assume que lançou mão do cordel « A História do Cavalo que defecava dinheiro », de Leandro Gomes de Barros, para uma das cenas mais engraçadas do « Auto da Compadecida ». E por que não assumir, se os estudiosos apontam outras cento e cinco versões desse lance, vinte e sete apenas hispânicas, e se esse tipo de intertextualidade só faz dar prestígio às ideias originais, muito delas... insignificantes?

Acha que Spielberg se encabulou ao incluir no filme «A Lista de Schindler » - todo em preto e branco, a garotinha com o capote vermelho, em 1993, mesmo sabendo que...
... Copolla fizera o mesmo com os peixinhos no aquário do filme « O Selvagem da Motocicleta », em 83 ?
E que me diz desta xilo de Oswaldo Goeldi, de 1938?
Veja a primitiva suástica:

















O nazismo apenas inverteu o sentido dos braços da cruz gamada...

... e acabou modificando completamente o seu sentido – como símbolo de algo positivo.

E ninguém vê, hoje, « O Nascimento de Vênus », de Botticelli, ou a Casa de Las Conchas, de Salamanca...





















... sem pensar nesta logomarca:
Well: é claro que isso me remete – pela enésima vez - a Jorge Luís Borges:

“La circunstancia, la extraña circunstancia, de percibir en un cuento de Hawthorne, redactado a principios del siglo XIX, el sabor mismo de los cuentos de Kafka que trabajó a principios del siglo XX, no debe hacernos olvidar que el sabor de Kafka ha sido creado, ha sido determinado, por Kafka. Wakefield prefigura a Franz Kafka, pero éste modifica, y afina, la lectura de Wakefield. La deuda es mutua; un gran escritor crea a sus precursores.” Los crea y de algún modo los justifica.”

Exato. Podemos dizer que o impressionismo modificou e afinou a leitura de... Frans Hals, que viveu duzentos anos antes de Renoir e Monet:



Já Manet, também impressionista, como se sabe, foi muito influenciado por Velázquez - contemporâneo de Frans Hals. Como El Greco por Tintoretto e Ticiano. Como o paisagista inglês Constable pelo holandês Ruisdael. Como as figuras parrudas de Miguelângelo pelas marras de Jacoppo della Quercia...


... que só é conhecido, hoje, por esse fato. Uma injustiça, claro, como a que sofre Santo Agostinho ante a glória atribuída a Descartes – que viveu 1200 anos depois dele - pelo “Penso, logo existo”, que na verdade é seu. Infelizmente – como detectou Bertrand Russell – ele não deu o devido relevo ao genial princípio.

Na peça “Pigmalião”, de George Bernard Shaw – que deu origem ao musical “My Fair Lady” – um certo prof. Higgins transforma a grossa florista Lisa Doolittle numa mulher refinada... e se apaixona pelo que conseguiu -



Isso... modifica e afina a leitura que fazemos da lenda original de Pigmalião, rei de Chipre e escultor, que teria produzido em mármore a mulher ideal, a quem, depois, Afrodite daria vida:

Como se vê, ideias podem estar num carrapicho, num sorveteiro, no Si fallor sum ( Se falho, existo) agostiniano. A vontade de ser Horácio, o apagado amigo de Hamlet, por exemplo, de nome deslocadamente latino, me fez romancear a peça de Shakespeare, em minha “História Universal da Angústia” (Bertrand Brasil, 2005), de que ele é (na verdade eu sou) um narrador... paraibano (porque Shakespeare chegou a Londres no ano em que João Pessoa foi fundada). No mesmo volume está, também, o resultado de minha vontade de ver como seria a história de Édipo sob a óptica de hoje. E, ainda, entre outras coisas, está minha versão da história do Rei Saul, que escrevi pra compreender, afinal, as razões de sua profunda depressão, que me incomodou desde que tomei conhecimento dela numa bela história em quadrinhos que li aos 12 anos.



Aproveitando-me, aí, da cena da capa ( que poderia ser a de Oliveiros enfrentando Ferrabrás, Ulisses o Polifemo, Siegfried o Fafner, São Jorge o Dragão, Jerry o Tom, Mickey-Mata-Sete o Gigante, etc) encerro dizendo que o pensador, artista ou cientista que jamais fez um transplaRte... que atire a primeira pedra. Na verdade somos todos o mesmo ser humano tentando aperfeiçoar a logomarca da Shell, o Adão Jacoppo/Miguelângelo, o carrapicho, e a nós mesmos.

Um comentário:

Anônimo disse...

Hugo acabo de fazer uma viagem e andei por bibliotecas, pinacotecas e outras que tais, sentindo uma grande alegria ao constatar que existe alguém que enxerga o óbvio: na natureza nada se perde, nada se cria, tudo se copia.
Estou cansada de discordar da paternidade de certas criações que trazem às vezes bem claras a marca registrada do verdadeiro autor. Parabens. Não apenas li, reli e aprendi. Um grande abraço djanira