W. J. Solha
Lembro-me do alvoroço quando se mostrou ao mundo, em 1994, o resultado da restauração dos afrescos de Miguelângelo na Capela Sistina. Em lugar de se ver confirmada uma pintura “séria”, quase tão tenebrista quanto a de Caravaggio, Ribera, Rembrandt ou La Tour, o que se viu foi algo tão cheio de tons róseos e azuis celestes, quanto uma criação de... Disney!
Exatamente o mesmo acontece agora – em âmbito nacional – ao se ver a noção que se tinha da aparência dos cangaceiros totalmente alterada pela revisão radical produzida pelo belíssimo “Estrelas de Couro – A Estética do Cangaço”, de Frederico Pernambucano de Mello, magnificamente editado pela Escrituras, de São Paulo. O volume provocou tão justificado entusiasmo em Ariano Suassuna, que ele declarou, no seu prefácio, que se não fosse escritor e palhaço frustrado, “não seria outro, senão Estrelas de Couro o livro que gostaria de ter escrito”.Lampião também me fascina. Em meu romance “Relato de Prócula” fiz, a certa altura - uma adaptação de velho ensaio meu – “Se Jesus foi a Luz do Mundo, Virgulino foi Lampião” – onde enumero uma série de Coincidências Significativas entre o Rex Ivdeorvm e o Rei do Cangaço. Da observação extasiada desse personagem me veio a sensação, quando vi o documentário sobre ele, feito por Benjamim Abrahão, de que o cinema de ficção jamais captou o espírito do cangaço. Agora, ao ler e VER a obra de Frederico Pernambucano, compreendi o motivo disso e descobri que não estava sozinho em meu descontentamento.
- Curioso – diz ele - que essas cores, esse luxo, essa variedade individual no plano estético não fosse captada pelos grandes pintores contemporâneos da fase áurea do cangaço, dos anos 20 e 30, a exemplo de um Portinari, (...) um Vicente do Rêgo Monteiro, um Santa Rosa, um Lula Cardoso Ayres.
- Ainda está pra surgir quem consiga combinar na tela – não se exclua aqui a de cinema – o ethos e o ethnos dessas comunidades móveis de irredentos brasileiros chegados a dias tão recentes...
A maravilhosa, farta ilustração do volume especial da Escrituras, é justamente a “restauração” da verdadeira imagem do cangaço. O impacto que me causou foi o mesmo que sentiu um jornalista ao ver o bando entrando em sua cidade, Tucano, Bahia, em 1928:
- Vinham tão ornamentados e ataviados de cores berrantes que mais pareciam fantasiados para um carnaval. Eis aí: Disney, Fantasia, Surpresa.
E veja o que deduz Clarival Valladares, citado no livro:
- Ao invés de procurar camuflagem para a proteção do combatente, ele é adornado de espelhos, moedas, botões e recortes multicores. (...) Lembremo-nos, entretanto, que no entendimento do comportamento arcaico, o homem está ligado e dependente ao sobrenatural, em nome do qual ele exerce uma missão, lidera um grupo, desafia porque
se acredita protegido e inviolável e, de fato, desligado do componente da morte.
Frederico Pernambucano completa:
- O Símbolo opõe mistério concebido por criação e decifração, a mistério natural. Espécie de similia similibus curantur do espírito, mistério bom contra mistério ruim. E vemos em seu livro o belo crucifixo de Lampião, que pertencera à baronesa de Água Branca, nas Alagoas. Vemos o Coração-de-Jesus numa medalha de ouro, de Maria Bonita. Vemos fotos das orações da Pedra Cristalina, a do Santo Lenho, a de Santo Agostinho e a de Nosso Senhor Jesus Cristo, que Virgulino carregava por toda parte. Vemos um “Signo de Salomão e suas implicações”. Vemos Lampião e todo o seu bando de joelhos, rezando na caatinga. E a essa inesperada sensibilidade, somo uns versos de que nunca me esqueci, pela beleza e ternura extraordinárias, que esse bandoleiro fora do comum criou para incluir na “Mulé Rendêra”:
Eu estando mais meu mano,
Meu mano estando mais eu,
Só penso que o céu é perto
E o largo do mundo é meu.
Eu agora me lembrei
De meu irmão Ferreirinha:
A minha rede era dele,
A rede dele era minha,
Eu rezava o Padre Nosso,
E ele a Salve Rainha...
E quem inseria tanta cor no bando?
Pernambucano conta:
- É perceptível a satisfação com que Lampião se deixa flagrar pela objetiva de Abrahão no ato da costura, em 1936, debruçado sobre a máquina Singer de mesa, a mão cheia de anéis a conduzir o veio da engenhoca, dando ritmo ao bordado. Cena rara de riso em quem até o sorriso pouco estampava.
- Lampião distribuía candeeiros aos cabras habilitados no ofício e se isolava na confecção de cartucheiras, bandoleiras, correias de cantil, bainhas de pistola e perneira, além de testeiras e barbicachos traseiros para os chapéus.
E é assim que, de repente, associo Virgulino ao Arthur Bispo do Rosário, o grande artista doido, interno de um hospício carioca e contemporâneo de Lampião, que também se esmerava nos infindáveis bordados nas roupas e mantos complexos e hoje famosos que criava, o mais estupendo deles para se apresentar a Deus.
- O Rei do Cangaço, ao cair morto, portava jogo de bornais em lonita verde-oliva clara, inteiramente floreado nas cores amarelo-ouro, rosa claro, azul-real e vinho. O de Zé Bahiano, em brim-caqui, adornava-se nos matizes escarlate, amarelo-ouro, castanho escuro, azul-real e rosa claro. (...) O de Maria era caprichosamente ornamentado com nove cores: verde, vermelho, amarelo, salmão, azul, rosa, laranja, lilás e roxo. São os tons que hoje são vistos na Sistina.
Já o chapéu de Lampião era uma obra à parte, com suas estrelas de oito pontas costuradas nas abas, com que procurava se proteger pela frente e pelas costas... além de cerca de setenta peças de ouro. Sua foto e descrição no livro já valem os cento e cinqüenta reais que paguei pelo volume.
Que ninguém faça doravante, recomendo, romance, cordel, teatro, filme nem quadro sobre cangaceiros, particularmente sobre Virgulino, sem ter já como relíquia este “Estrelas de Couro – A Estética do Cangaço”, de Frederico Pernambucano de Mello.
Escritor, dramaturgo, ator e poeta.
wjsolha@superig.com.br
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