W. J. Solha
http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/images/20060920-gomes.jpg
Porque Flaubert disse “Madame Bovary c´est moi” – “Madame Bovary sou eu” -, perguntei ao Marcelo Gomes, num dos intervalos das filmagens:
- “Veronicá cé moá?”
Ele sorriu como aí na foto:
- Não... O que aconteceu foi que, depois de fazer dois filmes com homens em primeiro plano, resolvi fazer uma coisa que desejava há muito tempo: um longa sobre a mulher jovem atual, em que ela deixa de lado o protetorado masculino e se lança para a vida.
E, em complemento:
- Elas me fascinam...
Marcelo estava feliz. Posso dizer que muito feliz, fazendo seu terceiro trabalho como diretor. Bom: pelo filme e porque, enquanto rodávamos “Era uma vez Verônica”, agora em novembro, ele recebia ótimas notícias a respeito de seu filme anterior, feito com Karim Aïnouz.http://noticias.r7.com/blogs/rubens-ewald-filho/files/2010/05/Viajo-Porque-Preciso-Volto-Porque-Te-Amo.jpg
Fora concedido o prêmio de melhor filme ao “Viajo porque preciso, Volto porque te amo” nos festivais de Cuiabá e Barcelona, além de seis outros no cuiabano, incluindo o de melhor direção, repetindo o triunfo já ocorrido nos festivais do Rio e de Havana.
Isso me reforçou a sensação inesperada de que – embora não me considerasse essas coisas todas como ator – estava sendo dirigido por alguém que já era uma lenda viva, graças também a seu primeiro longa
https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEje7U9P3K85fLWPZCa-9mUz4oT7MrNOnrq_VQadgKmIKu6YFUwQI_kAg0NnLH0re2SYz5VRNiyWWLJmxyKFss9A8A9D_MQkri0eEvBpBqPuBpDiZQhB3DB2QWYBdi6m8Gt5D7V4xw/s1600/cinema+aspirina+e+urubus.jpg
E aí? Como fui levado a essa experiência? Conto de novo: no final de agosto eu estava na última semana de minha participação de outra grande produção recifense – “O Som ao Redor”, do também já célebre Kleber Mendonça Filho – quando recebi telefonema de Lívia de Melo, da REC Produtores:
- Você vai ter sua última sequência da filmagem agora na sexta-feira, dia 27, não?
- Sim.
- Então gostaríamos de convidá-lo para um teste, aqui na produtora, para o novo filme de Marcelo Gomes, na próxima semana. Pode ser?
Eu imaginava que Marcelo – que vinha procurando atores e atrizes em Salvador, Maceió, Recife, João Pessoa e Fortaleza, para os papeis de Verônica, de José Maria (pai dela), e de Gustavo, o namorado – já concluíra essa busca. Mas pesou, certamente, uma recomendação especial do Carlos Dowling, avalizada pelo fato de eu estar no longa do Kleber.
- OK.
- Então vou lhe mandar por e-mail o texto da cena que você deverá interpretar com a também paraibana Suzy Lopes. Certo?
Ensaiei com Suzy na viagem pra Recife, no assento traseiro do carro do Gilmar Nóbrega, ele já meu amigo das tantas idas e vindas que fizemos a Pernambuco durante a realização do filme de Kleber, Suzy sabendo de antemão que não pegaria o papel de Verônica por não se ver reproduzida no “retrato falado” de moça, mas sem deixar, por isso, de dar o melhor de si na oportunidade de mostrar seu talento, pois poderia ser escalada para outro papel (o que acabaria acontecendo), e percebia a necessidade de me apoiar – solidária - na performance que eu deveria oferecer ao Marcelo.
Preparado pra a sequência que deveria ser num sofá, em que “minha filha” estaria deitada, cabeça no meu colo (como acontecera no carro) demos com a câmera, no pequeno estúdio, ante uma mesa de bar com garrafa e dois copos, Marcelo e Lívia preparando tudo. Eu e Suzy nos sentamos, ela com a cabeça deitada na mesa, ouvimos a palavra “Ação”, começamos a encenar, Suzy interpretando seu papel com segurança, eu da maneira mais despojada e afetuosa possível. Mas acabei chorando – apesar de mutcho matcho - e, quando terminamos a cena, Marcelo disse, com sorriso fixo:
- Muito bem. Agora vamos repetir tudo, OK? Mas Solha – recomendou. – desta vez sem lágrimas.
Sorri num sopro, tomando a coisa como restrição, embora a reação me tivesse vindo por conta da grande tristeza de meu personagem, sem que eu a tivesse programado.
- OK – respondi. - Sem chorar.
Fiz o que me pediu.
- Muito bem. – repetiu. - Agora vamos mais uma vez, com você um pouco bêbado.
Fiz isso.
- Muito bem. Agora, mal- humorado.
Fiz isso. Teste encerrado, nenhum comentário. Eu disse a Suzy, no que viajávamos de volta:
- Perdi o papel.
E ela:
- Tenho certeza absoluta de que você vai ser o seu José Maria.
- Por que?
- Porque eu estava lá e vi o que você fez!
Dez dias depois, ligação do João Vieira Jr., um dos produtores de Cinema, Aspirinas; Viajo porque Preciso e Era uma Vez Verônica:
- O Marcelo gostou muito de seu teste e nós gostaríamos de tê-lo no papel de seu José Maria em Era uma vez Verônica. Aceita?
Hermila Guedes me disse, depois de ver no monitor uma cena em que ela penteia meus cabelos, enquanto seleciono discos de frevo pra ouvir com amigos:
- Nossa, parecemos realmente pai e filha. O mesmo rosto longo, testa alta, o mesmo nariz...
http://www.historiadocinemabrasileiro.com.br/wp-content/uploads/2010/08/FOTO-Hermila-Guedes.jpg
http://www.eltheatro.com/NOVOSOLHA.JPG
Marcelo disse:
- Esse foi um dos motivos pelos quais foram escolhidos. Como tínhamos fotos de todos os atores e atrizes disponíveis, formamos com elas todos os pares possíveis e vocês formaram a mais perfeita dupla pai-e-filha.
Acho que também pesou, subliminarmente, um dado sobre meu personagem, constante no roteiro: ele é de classe média por opção, porque suas idéias esquerdistas o teriam afastado da rica e tradicional família pernambucana a que pertencia. Ora, o romancista e poeta Fernando Monteiro, amicíssimo de Francisco Brennand, não foi o primeiro a me dizer que tenho muito do escultor em certa fase da vida, bastando-me – para fazer o papel dele - um par de óculos de aros redondos e pretos; cachecol; barba um pouco maior, e um repartido no cabelo, à direita, que produzisse uma onda cainte do lado esquerdo da testa:
http://www.ufrgs.br/comunicacaosocial/jornaldauniversidade/figuras/111/P%2013%20-%20CULTURA%202%20-%20Francisco%20Brennand%20-%20Foto%20Juan%20Esteves.jpg
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Assim, foram esses tortos caminhos que me levaram ao prazer intenso de contracenar com Hermila Guedes - uma tremenda atriz – os dois sob um grande maestro a nos orquestrar falas e gestos com enorme conhecimento de cinema e psicologia.
Marcelo tem afeição extrema pelos atores e atrizes sob sua direção. Alto, magro, lembra-me o Ariano de vinte, trinta anos atrás, inclusive pela voz.
- Ele me imita!, disse-me arianamente, provocando-me uma gargalhada.
Depois de cada cena ensaiada ou filmada, chega sempre sorrindo e abraça-nos afetuosamente, dizendo “Valeu! Lindo, lindo!”, ou sussurra-nos discreto, quase inaudível:
- Menos emoção. Você é cheio de vitalidade. Seu Zé Maria, não. Sorria um pouco, para tirar esse vinco da testa. Isso! Agora vamos de novo. De leve, bem de leve...
Dissera-me o Pedro Freire – ao fazer o laboratório do elenco, antes das filmagens - que um dos motivos pelos quais eu fora escolhido tinha sido o de pôr certa doçura em meu personagem. Era isso que Marcelo me cobrava agora.
Sentindo constantemente o peso da responsabilidade, passei as noites literalmente em claro, dizendo minhas falas de todas as maneiras possíveis e imagináveis, representando sozinho, no apartamento do quarto andar do Mar Olinda Cult Hotel, na Conselheiro Aguiar, vendo a praia de Boa Viagem pela janela. E haja cerveja e cigarro a noite toda, este ( já que não fumo) pra produzir uma voz mais grave na manhã seguinte, a calhar em seu Zé Maria. Foi numa dessas noites insones que criei o requerido tremor da mão direita, que tornei fora de meu controle ao estirar um tendão do antebraço direito. Noutra dessas noites descobri que, pra conseguir um suspiro fundo,numa das cenas vitais do dia seguinte, bastar-me-ia expirar antes da entrar em quadro, para, no momento certo, aspirar aquele ar sentido que o personagem requeria. E como transferir o olhar de infelicidade profunda para o de uma surpresa seguida de encantamento? O espelho – a que não costumo dar muita atenção – deu-me lições precisas.
É incrível como um diretor consegue tais esforços de um ator , sem nunca forçar a mão.
Bem, agora o que me resta é esperar. O cinema, já dizia o Kléber, é A Arte da Espera. À Karen Harley - e ao Marcelo, claro - cabem agora a edição do filme, as decisões, no meu caso, do que deve ou não ser preservado de todo aquele empenho. Felizmente os dois estavam muito felizes com o material que já tinham em mãos, felicidade repartida com uma eufórica produtora, Sara Silveira,e com o diretor de fotografia, o grande Mauro Pinheiro Jr.
Despedi-me de toda a equipe técnica do filme na madrugada de 28 do mês passado, sob aplausos, curvando-me ante eles um ator faz no palco. Recebi do Marcelo um gratificante abraço com um sussurro:
- Muito obrigado.
Hermila também me deu igual abraço:
- Muito obrigada pelo pai que me deu.
Parece-me que valeu a pena.
Um comentário:
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