Ipojuca Pontes
Vamos adiante: como a dialética hegeliana é um poço sem fundo, pois nela nada “é” e tudo vive em permanente transformação, Marx encampou com entusiasmo frenético o esquema de Hegel, mas encontrou, de início, um forte obstáculo. Se ele queria, no testemunho algo ingênuo do simpatizante Annenkov, “suplantar Deus” – como aceitar tal entidade quando se tratava justo de dinamitá-la?Para superar a questão transcendente, que desprezava, a saída foi mamar fundo em Ludwig Feuerbach, um triste e desafortunado (morreu só e na penúria) ex-hegeliano de esquerda que, com sua obra “A Essência do Cristianismo” (Ed. Papirus, Campinas, 1988), colocou o Espírito absoluto de Hegel de “cabeça para baixo”.
De fato, para derrubar o Espírito absoluto hegeliano, Feuerbach subverteu o sagrado divinizando o homem e humanizando o divino. Já no prefácio do livro, parte para o ataque frontal ao antigo mestre: “Sou radicalmente diferente dos filósofos que arrancam os olhos para enxergar melhor. Encontrei minhas idéias em materiais que podem ser apropriados apenas através da atividade dos sentidos. Não produzo o objeto a partir do pensamento, mas o pensamento a partir do objeto. As proposições que uso como premissas não são inventadas, produtos da especulação: elas surgiram a partir da análise da religião”.
Muito bem. Mas o que é a religião para Feuerbach? “A religião é um sonho da mente humana. Mas mesmo nos sonhos não nos encontramos no vazio (empirismo), ou nos céus (teologia), mas na terra, no reino da realidade. O que ocorre é que vemos as coisas reais no esplendor mágico da imaginação, em vez da simples luz divina da realidade e da necessidade”.
Na sua crítica histórico-filosófica, Feuerbach esclarece que sua pretensão foi reduzir a teologia (estudos das questões do conhecimento da divindade, seu atributos e relações com o mundo e os homens) à antropologia (ciência inexata que descreve e analisa o homem com base nas características biológicas e culturais dos grupos sociais e suas variações em distintas épocas). Em estilo cristalino ele afirma que “o ateísmo é o próprio segredo da religião”, visto que o culto do homem pela perfeição divina, em suas distintas linguagens, não passa da projeção das suas próprias aspirações e desejos.
De posse do esquema dialético de Hegel, e impregnado da visão crítica ateísta de Feuerbach, que conduz a religião diretamente aos cânones antropológicos, Marx associou uma heresia à outra e, do caldo, saiu com uma heresia maior: o materialismo dialético, cuja feição determinista tinha por objetivo assegurar a tomada do poder pelo proletariado ou, nas suas próprias palavras, “o fim da pré-história da sociedade humana”. Ainda que considerando a obra de Feuerbach uma contribuição para a “luta do homem contra a escravidão espiritual”, Marx, no entanto, a exemplo do que sempre fez com os pensadores em que se nutria, logo descartou este, sob o pretexto de que não passava de “uma alma contemplativa”, voltada apenas para o ser individual, incapaz de perceber no revolucionário método dialético o impulso necessário para tornar a filosofia um “agente ativo”. (O que não deixa de ser irônico, pois anos mais tarde, na Rússia stalinista, um filósofo, A. M. Deborin (1881-1963), avaliou o marxismo como mera variante do pensamento de Ludwig Feuerbach – para logo cair em desgraça e perder o posto oficial de filósofo do regime).
No parecer do filósofo inglês Bertrand Russel (1872-1970), autor da concisa “História da Filosofia” (Ediouro, Rio, 2001) Marx é a expressão típica da efervescência do século 19, período em que os pensadores radicais buscavam uma teoria social com pretensões científicas em oposição ao romantismo reinante. Em uma palavra, o marqueteiro alemão compreendeu como ninguém a paixão da época pela mística da ciência. Então sistematizou as bases de um socialismo que, de forma oportunista, para impressionar, chamou de “científico” – e que prenunciava o fator econômico (e as forças de produção, divisão de trabalho e relações sociais) como chave motriz do desenvolvimento da história.
Aqui, convém antecipar um esclarecimento: exceto para pedir dinheiro ao pai e protelar o pagamento de empréstimos aos inúmeros credores, Marx nada entendia de economia e foi Friedrich Engels (1820-1895), parceiro, provedor e filho de rico industrial alemão do ramo têxtil, que o induziu a leitura dos economistas clássicos ingleses, em especial de David Ricardo, um self-made man de vasto conhecimento prático de economia (enriqueceu operando na bolsa), que, a partir de formulações concretas, concebeu vigorosa análise econômica e tornou-se, com “Princípios de Economia Política e Tributação” (Abril Cultural, São Paulo, 1978), um clássico da economia política universal . As várias contribuições de Ricardo à economia política dizem respeito, fundamentalmente, à criação das leis de associação e das vantagens comparativas e, na distinção entre custo e valor produzido pelo trabalho, à elaboração da célebre teoria do valor-trabalho, uma tentativa racional de se calcular o valor (preço) das mercadorias e dos salários.
De início Ricardo realça, na divisão do trabalho, o papel da cooperação humana como fator social básico a impulsionar de modo decisivo o aumento da produtividade quando relacionada com o trabalho individual auto-suficiente. Com respeito à lei da vantagem comparativa, que tem por objetivo ampliar o comércio internacional, o economista estabeleceu que a economia deve ser maximizada quando cada região (ou país) se especializar em bens e serviços em que for maior a vantagem comparativa - ou menor o custo comparativo – de produção.
Mas foi especialmente na teoria do valor-trabalho de Ricardo que Marx buscou fundamento para elaborar a sua insustentável mais-valia. O valor de uma mercadoria – diz Ricardo - é determinado pela quantidade de trabalho nela incorporado. Já o preço da mão-de-obra é determinado pela quantidade de capital disponível para o pagamento dos salários e pela dimensão da força de trabalho – o resíduo é o lucro. Não pode haver aumento no valor do trabalho sem uma queda nos lucros – vaticinou o inglês.
Possivelmente inspirado na teoria de Ricardo, o anarquista francês Joseph-Pierre Proudhon (com quem Marx travará mais tarde renhida polêmica), analisando em “O Que é a Propriedade?” (Paris, 1840) as relações entre capital e trabalho, descobre “um erro de conta proposital e constante” na composição do salário do trabalhador, que, assegura, “nada mais é do que uma apropriação da força coletiva do trabalho” pelo capitalista. Em obra posterior, “Sistema de Contradições Econômicas” (Paris, 1846), Proudhon trata das questões dos valores econômicos e da divisão do trabalho e procura demonstrar as falhas, a um só tempo, da economia política clássica e da falsa visão econômica do coletivismo socialista. No tocante a Marx, que considera um reles plagiário, Proudhon entende que o ódio deste por ele nasce do fato de ter “dito tudo antes dele”.
Mas o que é, afinal, a tão decantada mais-valia? Dela trataremos no nosso próximo artigo.
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