Hugo Caldas
“Esta é uma história de ficção baseada em fatos reais. Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações terá sido mera coincidência”. HC.
O domingo amanheceu radioso. O leve calor que fazia logo de manhãzinha talvez fosse o prenúncio de que este seria um dia muito especial. Uma brisa suave açoitava os coqueiros e as palmeiras imperiais plantadas pelo avô do Barão. O dia mal se iniciara e já se presumia que algo estaria por acontecer. O terreiro em frente a casa-grande estava um primor, bem varrido e bem cuidado, plantas regadas, graças aos caprichos de Bastião, negro forro que por absoluta dedicação aos seus amos e total acomodação se esquecia de cuidar da própria vida.
Virgínia, moça muito bonita, escrava prendada e branca de pele fina, era a única mucama da casa-grande. Mãos de fada para quitutes e acepipes principescos, dominava como poucas a arte de trançar o bordado com fios de ouro, além de tocar virtuosamente o piano e falar o idioma francês com regular desembaraço. Tinha o porte altivo de uma rainha e agia como tal, controlando tudo dentro e fora da casa-grande, a ponto de despertar uma certa ciumeira nas escravas que habitavam a senzala.
O motivo da inusitada agitação logo cedo era que o Barão pretendia homenagear o Dr. Marcos Menezes, jovem médico recém formado na capital que, dizia-se, teria pretensões de estabelecer consultório na cidade. A homenagem consistia em um lauto almoço com toda pompa e circunstância, o que significava a melhor prataria, a melhor porcelana chinesa, os cristais da Boêmia, tudo muito bem regado a bons vinhos e conhaques franceses sem esquecer naturalmente, os charutos cubanos. O Dr. Menezes seria mais uma figura importante a entrar para o rol dos amigos da família Ferreira Gomes. Estariam presentes personalidades da cidade, políticos, Dr. Joaquim Manoel de Oliveira, o intendente, Frei Tomás, prior da casa paroquial, o advogado Hermógenes da Silveira, chefe de polícia e até alguns desafetos políticos escolhidos a dedo a fim de, falastrões e mexeriqueiros, relatarem ipsis litteris o suntuoso acontecimento aos que não foram convidados. Havia quem comentasse à boca pequena que o Barão, estaria dessa maneira tecendo os pauzinhos, preparando o terreno para um futuro compromisso entre a mucama Virgínia e o Dr. Marcos.
O moleque Justino preparou com o maior esmero uma nesga de terreno, pequeno bosque formado por enormes baraúnas, perto do barreiro, para que os visitantes pudessem ali deixar seus coches, coupês, tipóias, cavalos e mulas. Da cozinha vinha o cheiro de comida gostosa invadindo a casa, tudo devidamente supervisionado pelo bom gosto e sabedoria de Virginia.
O Barão juntara-se à alguns convidados na varanda a fim de um cálice da boa aguardente produzida no engenho e todos iniciaram então uma conversa meio sem futuro sobre o tempo, a colheita do ano vindouro, a plantação de uma nova modalidade de cana... de súbito um grito lancinante corta o espaço...
- Virgínia está sangrando! Acudam! Era a voz desesperada do negro Bastião.
Tudo parou. As pessoas totalmente confusas, não conseguiam acreditar no que estava acontecendo. Sinhá Hermengarda, esposa do Barão, aflita, desfalecia no marquesão, recebendo a ajuda de Dona Francisquinha de Paula esposa do tabelião Oswaldo Lourenço Torres. Um vai-e-vem frenético dos escravos designados a servir a mesa, a trazer meizinhas e chás caseiros enfim, um reboliço, uma situação de pânico tal, como se um raio tivesse caído em plena sala da casa-grande.
- O que está ocorrendo, se perguntavam todos?
Num átimo o Dr. Marcos passou a mão na maleta de primeiros socorros - ainda bem que a havia trazido - e correu na direção dos gritos de Bastião. A tragédia acontecera na pequena horta ao lado da escadaria que dava para o celeiro. Virgínia pálida, desfalecida, sangrava muito. O médico chegou até ela, se ajoelhou e imediatamente cuidou de usar os seus conhecimentos a fim de estancar dois ferimentos graves e profundos. A custo conseguiu estancar o sangue.
Isto é ferimento de punhal, disse Dr. Marcos ao Barão... quem teria feito uma maldade dessas e por que?
Tudo o que fora programado não mais aconteceria. A casa-grande quedara-se no maior silêncio. Todos, passado o susto inicial, um por um voltaram às suas casas. Temiam pela reação do Barão que estava uma fera visto que Francisco, seu filho primogênito, havia desaparecido.
- "Eu vi sinhozinho Francisco sair da horta limpando o punhal numa folha de bananeira, murmurou Bastião. E acrescentou, ele vivia querendo agarrar Virgínia a toda hora". Logo foram contar ao Barão que chamou seus homens de confiança e esbravejou:
- "Tragam este sujeito até aqui, preferivelmente vivo!”
Francisco tratou de escapar do engenho e após reunir algum dinheiro com amigos na cidade conseguiu alcançar o Recife onde tomou um vapor da Mala Real para o Rio de Janeiro. Lá ficou homiziado por vinte longos anos...
Durante esse tempo graças a extremosos cuidados médicos Virgínia se recupera lentamente é alforriada e dada em casamento ao Dr. Marcos.
Por essa época irrompe no interior do estado uma epidemia de febre tifóide e o barão contrai a maldita doença. Em seu leito de morte ele apenas recebia umas poucas pessoas. Sinhá Hermengarda, Virgínia, o Dr. Marcos e Frei Tomás que invariavelmente implorava que o Barão perdoasse o filho Francisco, (recém-chegado do sul do país mas não se atrevia a passar além da varanda da casa) pois argumentava o frade, em assim agindo o céu lhe daria a felicidade de também ser perdoado dos seus próprios pecados.
- "Pois se a minha ida ao céu depender do perdão para esse sujeito prefiro mil vezes ir direto para o inferno".
E assim foi. Pouco tempo depois a doença se agravou e Antonio Fernandes de Ferreira Gomes, o Barão de Aragarças faleceu em uma tarde cinzenta do mês de junho de 1867. Alguns dias após o sepultamento, observadas as formalidades de praxe, ao iniciarem o processo do inventário, foi encontrada entre os seus papéis uma certidão de nascimento onde ele reconhecia a paternidade de Virgínia.
Ela era também sua filha, fruto de um grande amor da juventude.
3 comentários:
Impactante a historia da Virginia! Ipojuca
Mucama Virginia Leitura leve...muito boa...obg caro Hugo
Hugão
A estoria da moça/escrava fina e recatada, Virgínia me surpreendeu. Fantástica a narrativa e surpreendente o final.
Foi um ótimo entretenimento para uma noite fria de Londres. Até a volta, Mary
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