quarta-feira, setembro 08, 2010

LASCADOS E FELIZES

Carlos Mello

Hesitei um bocado antes de escrever esta crônica, devido à inconveniência do tema. É sempre aflitivo falar da metamorfose de pessoas que um dia nos foram caras e que, por uma desmedida fantasia de poder & riqueza, se afastaram de seus velhos amigos. Não sou, infelizmente, um Rubem Braga, capaz de transformar qualquer assunto em uma brilhante peça literária. No entanto, creio na possibilidade de que algum jovem venha a lê-la, e assim se precate desde já contra essa quimera ascensional, que costuma atacar as mentes mais fracas e transformá-las naquelas caricaturas humanas tão bem ridicularizadas, no teatro e no romance, por Molière e por Balzac. E esta razão humanitária me é suficiente.

Sempre gostei do estilo direto e desassombrado do falar nordestino. O termo “lascado”, por exemplo, embora pareça chulo, é na verdade um eufemismo para outro, mais pesado, que se costuma indicar pelo gesto de bater com a mão direita aberta sobre a esquerda fechada. A expressão “tá lascado” indica que alguém entrou em uma alguma situação pavorosa e sem saída. Numa acepção mais ao gosto dos que se julgam vencedores, os “lascados” são pessoas de recursos financeiros limitados – pecado imperdoável na religião capitalista do “ter para ser”. Não se indaga das razões pelas quais alguém tem pouca renda, nem se tal situação foi desejada pela pessoa, como opção para manter sua integridade moral e sua liberdade. Muito menos se imagina que alguém possa ser “lascado e feliz”, usando do seu tempo como bem entenda e sem dar satisfações a ninguém. Ainda mais em uma grande cidade, onde se pode freqüentar exposições, ir ao cinema ou ao teatro e ouvir música de primeira qualidade a preços irrisórios. Ou receber amigos diletos em casa para um rango e uma garrafa de vinho. Aliás, não se pergunta nada. Faz-se apenas uma avaliação por alto, como quem avalia um carro ou um terreno. É patológico.

Fui compreendendo ao longo de anos que, dadas minhas condições financeiras, estava arquivado nessa classe por alguns ex-amigos, que se afastaram para bem longe dos que outrora foram companheiros e colegas, por não terem estes amealhado o suficiente para pertencer à classe econômica a que eles chegaram, às vezes por caminhos tortuosos e inaceitáveis. Os casos são curiosos, e fariam rir se, por sua mesquinhez, não despertassem o sentimento contrário. Ilustrarei brevemente, com alguns exemplos. Começo por uma ex-contraparente, pessoa de quem felizmente nunca precisei, e a quem ajudei algumas vezes, apesar de saber que se tratava de um caso gratuito e malsão de ódio à primeira vista. O insulto, como sempre acontece nesses casos, veio “por porta travessa”, porque a covardia moral é uma das características inalienáveis do arrivista.

Outro caso, acontecido também há muito tempo, foi o de um dileto colega de trabalho. Formávamos, na empresa, juntamente com um terceiro companheiro, um trio de amável convivência. Almoçamos juntos ao longo de vários anos, encontrávamo-nos ora na casa de um, ora na de outro, para jogar, beber e conversar até altas horas, ou sair para jantar. Quando deixamos a empresa e tomamos caminhos diferentes, mantivemos sempre o hábito de um encontro na época do Natal, para uma saudável confraternização e atualização de informações pessoais mútuas sobre família, planos etc. Até que chegou um fim de ano em que liguei para um deles, para indagar onde seria nosso encontro, e fui informado de que o outro lhe comunicara, já há algum tempo, sua decisão de proceder a uma triagem de suas amizades, a fim de descartar aquelas que não pudessem somar ao seu esforço de build-up.

Outra dessas figuras lamentáveis era um sujeito bacana, engraçado, cheio de observações certeiras e bem-humoradas. Mas foi amealhando sua pequena fortuna, alugou um studio em uma marina, para onde levou seu barquinho, comprou um carrão. E aí seu metabolismo foi-se alterando, ele começou a ficar sério, perdeu o bom-humor e a camaradagem e sumiu de nossas vistas. Andei por muito tempo preocupado, crente de que fora vítima de alguma fofoca. Procurei-o mais de uma vez, somente para confirmar a carranca e a impaciência. Até que, em contato com outros amigos comuns, fiquei sabendo da transformação. Nosso velho amigo era agora um rotundo burguês, de relógio de marca e chaveiro de ouro – símbolos primários dos viennent-de-parâitre. E se antes ríamos de suas piadas, agora rimos, com certo amargor, da figura que faz, como um personagem de opereta, grave e oco como o Conde de Gouvarinho.

A última ilustração não deveria ser surpresa, pois o tipo, desde a mocidade, assumira o papel de um Monsieur Grandet caboclo. No dizer popular, “carregava um caranguejo no bolso”, incapaz de pagar um cafezinho... para ele mesmo. Depois de muitos anos sem notícias, consegui seu telefone. Contou-me que estava “quase rico”e que gostava muito de viajar para Miami. Estranhei um pouco a escolha de um paraíso de contrabandistas e prostitutas, mas há gosto para tudo. Ele ficou de ligar, e como não o fizesse, tornei a procurá-lo. Repetiu-se a mesma cena. Foi quando soube, por um amigo comum, que o silêncio provinha dessa reflexão: sendo eu um “lascado”, tinha todo o tempo do mundo para jogar conversa fora, e ele não queria desperdiçar o seu, já que time is money, como dizem os gringos enfatuados que tanto admira. Soube também que as viagens a Miami não são recreio, mas business: ali adquire lotes de roupas, a preços de salvados do incêndio, para revender em sua loja, com lucros astronômicos. Assim, chegou à idade provecta na pouco invejável ocupação de sacoleiro. Eis aí outra característica do parvenu: a incapacidade de perceber seu próprio ridículo.

Um comentário:

Marco Seixas disse...

Sogro,

Este é ótimo e a conclusão que chego é somente: Amigos verdadeiros são poucos, muito pouco mesmo. Eu tenho um e colegas tenho 100.000. Quando estive desempregado, por exemplo, nenhum dos que trabalhavam comigo perguntavam ou ofereciam ajuda! Alguns, eu que indiquei para a empresa, a grande maioria fez entrevista e foi aprovado por mim, e devo confessar que nem todos tinham o conhecimento necessário para serem aprovados, mas o meu coração falava mais alto que a razão e os fiz serem aprovados.
Bem, amigos somente o Mauro, na alegria, na tristeza, na dor, em todos os momentos estamos unidos pelo amor fraternal!

Fica com DEUS