terça-feira, agosto 17, 2010

E LÁ VOU EU MORRER DE NOVO

W.J. Solha

Quando saímos da sessão de O Salário da Morte, no antediluviano Cine Santo Antonio, na periferia de João Pessoa, meu filho – ainda bem menino – me disse, revoltado:

- Mas tu é mole, mesmo!

- O que houve?

- Deixou te matarem no filme!

Não adiantou explicar que eu não tinha nada a ver com meu personagem. Para Dmitri eu era pistoleiro, estava armado, e caíra bobamente numa tocaia. Guardo na memória minha imagem com o rigor mortis – a rigidez cadavérica – sendo levado por dois milicos, numa padiola, no meio da caatinga.

Isso foi em 69. Em 75 morri de novo em Soledade, filme de Paulo Thiago baseado nA Bagaceira. Zé Américo ficou furioso, pois seu romance fora tratado como um western spaghetti – um faroeste italiano. Tinha razão: eu, por sinal, usava um cinturão com dois revólveres, tinha um chapelão e vestia aqueles casacos longos típicos dessas produções que na verdade – segundo o nosso diretor – Sérgio Leone e os outros gringos haviam “sugado” do Antonio das Mortes, personagem do Glauber Rocha em Deus e o Diabo na Terra do Sol e O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro.

Eu estava bastante nervoso em meu primeiro dia de filmagem, numa fazenda antiga, lá em Pilar. Era eu da Paraíba, o resto do elenco todo global. Repetia e repetia minhas falas e nada de decorá-las. Pra minha sorte, começa a chover e Paulo Thiago decidiu:

- Vamos rodar a seqüência da morte do delegado, que é dentro do casarão.

Foi um alívio: nessa não havia falas. Eu atirava muito para fora da janela, contra um bando que depois, na montagem, apareceria lá, a cavalo, de repente levava um tiro dos cangaceiros de Pirunga – Nelson Xavier - e... pimba: capotava. Recomendação que recebi:

- Olha, não solte as armas quando morrer, porque o piso é original e não poderemos correr o risco de trincá-lo.

Prenderam-me um quadrado de couro no peito, com uma bolsa de sangue ligada a um explosivo de onde desciam dois fios de eletricidade pela calça e por uma das botas , atravessava a sala e o efeitista ficava noutro cômodo da casa, pronto para juntar positivo e negativo e provocar o estouro. Camisa colocada, paletó, chapéu, os dois revólveres, Paulo Thiago disse:

- Vamos rodar sem ensaio: você fica atirando nos hipotéticos cavaleiros que passam lá fora, dou um tiro no alpendre como sinal, sua bolsa de sangue explode, você cai pra trás, rasteja um pouco, agonizando, e morre.

- OK.

- Atenção... Luz! Câmera! Ação!

Avancei para a janela sacando as armas, fiz mira em alguém que passava à toda, puxei o gatilho, repeti o mesmo com o outro 38, e de novo, de novo, de novo, de repente o tiro no terraço, senti um murro no peito, um botão da camisa voou com um espirro de sangue, cai pra trás, numa curva louca, meti a cabeça no chão, o diretor de fotografia veio até perto de mim, com a câmera sobre os trilhos, reabri os olhos, gemi, arrastei-me... morri.

- Corta!

Aplausos, o homem da câmera saltou do carrinho de travelling para me cumprimentar, entusiasmado, senti uma dor de cabeça muito forte e... meses depois, vi o filme em estreia no hoje também extinto Cine Municipal. Tudo muito ruim, minha participação idem, mas permanecia, sempre, a certeza de que me redimiria na cena final. De repente estávamos nela e eu – que me imaginava num forte primeiro plano com direito a close e tudo – vi apenas aquele barbudinho de chapéu atirando lá longe, pau, pau, pau – de repente ele deu um saltinho pra trás e... c´est finis.

- Puta merda!

Nova morte, agora em A Canga. Tudo muito climb. Persigo um filho com o chicote, enfrento o outro, que se revolta por arar na caatinga seca, embora eu insista que estamos no dia de São José, chuto o ventre da nora grávida que me difama e, conflito armado, Everaldo Pontes grita “Pai!”, eu me volto, há o detalhe de um dedo dele pressionando o gatilho, Zezita Matos – “minha velha”, na história - aguarda o desfecho, tensa, estremece com o estrondo... e começa a chover.

Mais uma morte: essa no Ceará, setenta quilômetros ao sul de Fortaleza. Sou um latifundiário no final do Império, que não quer saber da abolição dos escravos. Meu irmão me odeia, sabe que estou muito doente e está seco pra ficar com meus bens... que resolvo deixar pra filha – Dira Paes - que tive como resultado do estupro numa escrava. No leito de morte, na Casa Grande, rodeado de velas acesas, muito mais velho do realmente sou, agonizo. Não sem passar todo o ódio que dedico ao irmão para a minha filha, que me ouve tão atenta quanto imóvel. Filmou-se toda a minha longa fala de um ângulo, pausa para a mudança da posição dos refletores e da câmera, repetimos a coisa toda de novo e, na nova pausa, comecei a me sentir mal. Senti quando Dira pegou na minha mão direita e ouvi quando sussurrou: “Rosemberg, o Solha não está nada bem”. Rosemberg me puxou pelas mãos, senti que ia cair, segurei-me nas hastes de dois spots, ouvi alguém dizer “Tragam sal, a pressão dele caiu!”, e foi quando entrou em cena a enfermeira que cuidava de um bebê que iria ser filmado em seguida (o nascimento da Lua Cambará, Dira Paes). Tirou-me a pressão, perguntou-me se eu sabia que era hipertenso.

- Não sou.

- É. Está com 16 por 14.

Tomado o remédio, comecei a me sentir melhor, mas a memória do texto... voou.

Essa hipertensão denunciou-se mais firmemente na minha morte seguinte, quando o Eliézer Rolim me chamou para uma pontinha no média-metragem Eu Sou o Servo. Eu seria o pai do Padre Ibiapina e me vi no meio de um juremal, todo emperequetado em roupas de época, mais “minha mulher” – Rosa Ângela Cagliani – e cinco filhos. E lá vem o padre num leito carregado por vários negros, seguido pela comitiva de beatas rezando. Aí ele passa por mim, ergue-se um pouco e diz “Meu pai!...”

- Corta!

Eliézer, então, me propõe:

- O pai do padre foi um revolucionário que acabou fuzilado no Rio de Janeiro. Estou ali com o pelotão de fuzilamento e iria filmar apenas o disparo, sem a vítima. Não quer fazer o personagem sendo morto?

- Tudo bem.

Assim, manietado, vendado, ouvi Eliézer dizer o queria de mim, antes da cena:

- Quando eu gritar “Pelotão, preparar...” faça o sinal da cruz, arranque a venda e encare os soldados.

- Hãham.

Concentrei-me, ouvi o “Câmera, Ação!”, fiz o sinal da cruz sentindo um músculo do rosto se contrair várias vezes, ouvi o comando “Atenção, pelotão!” Fiz o sinal da cruz com a mão direita tremendo, baixei o trapo pra fora de meus olhos, encarei a morte – na verdade Dib Luft filmando – Eliézer gritou “Fogo!!!”

- Corta!

Dib Luft:

- Vamos ter que refazer o take: perdi o enquadramento no que Solha ergueu a cabeça!

A insuportável tensão de novo, “Corta!”, não aguentei mais: tive uma crise de choro. Choro forte, sem pejo, diante de todo mundo.

Algum tempo depois, Durval Leal – produtor do filme – diz que a cena fora cortada.

- Por que?

- Porque você está muito ruim.

Bem, agora em julho parto pra nova morte, agora no longa O Som ao Redor, de Kléber Mendonça Filho, no Recife. Sou dono de um engenho no interior de Pernambuco e de mais da metade dos imóveis de uma rua do bairro de Setúbal. Mas Sebastião Formiga e Irandir Santos me apunhalam em meu apartamento de cobertura, pra vingar o pai que eu teria mandado matar quando eles eram meninos. Estivemos uma tarde toda ensaiando o momento terrível, mas a coisa não aconteceu. Ontem passei o dia vendo no youtube todas as versões disponíveis – e são muitas – da morte de Júlio César, que é apunhalado pela curriola de senadores, no Capitólio.

Mas vai sair. Agora: como já contei aqui em eltheatro, na noite anterior ao teste que fiz pra entrar ou não no filme, sonhei com meu pai – que morreu há quase vinte anos – dizendo-me que minha hora chegara. E eu:

- Quer dizer que não vou participar do filme?

- Vai. Mas não vai assisti-lo. (05-07-2010)

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