Ipojuca Pontes
Anos atrás, dois diplomatas brasileiros entraram num bar da Rua da Palma, em Assunção, capital do Paraguai, paraíso do contrabando oficializado. Os funcionários do Itamaraty, bem vestidos e escovados, uma vez no bar, dirigiram-se ao balconista e pediram água mineral. Enquanto esperavam atendimento, iniciaram uma animada prosa na língua mater.
Ao lado dos diplomatas, dois paraguaios típicos, caras ensebadas, olhos repuxados, pegaram copos e garrafas (de “cerveza”) e se afastaram do balcão. Antes, encararam os brasileiros e um deles, mais insolente, arrancando catarro do peito, cuspiu de lado e, em tom de desprezo, soltou a voz:
- Brasileños...
O diplomata mais jovem, que era faixa-preta, quis revidar. O mais velho, no entanto, encarando-o firmemente, segurou-o pelos ombros e ciciou:
- Deixa pra lá... Deixa pra lá... No fundo, eles têm razão.
O diplomata mais jovem arrefeceu o ímpeto de revide, o mais velho pagou a conta e ambos deram no pé. Mas o que de fato queria expressar o paraguaio ensebado com aquela desdenhosa expressão... “brasileños”?
Para muita gente boa o brasileiro, depois de cinco séculos de existência, continua sendo um enigma em aberto. Para uns, mais generosos, ele seria um ser essencialmente lúdico, na verdade uma eterna criança grande para quem a vida não passa de uma simples brincadeira. Para outros, tidos como fatalistas, o brasileiro seria uma figura volúvel degradada pela natureza, marcada pelo sol abrasador dos trópicos.
O sociólogo de Pernambuco Gilberto Freyre desnudou em minucioso strip-tease a natureza mais profunda do caráter preponderantemente erótico e emocional da nossa sociedade, que leva o brasileiro a sentir mais do que pensar ou, mais precisamente, a pensar intuitivamente.
Já para o escritor paulista Paulo Prado, conforme registro no decantado “Retrato do Brasil”, o brasileiro se definiria como um ser triste, levado à melancolia pelo fastio da luxúria e da cobiça, querendo dizer com isso que somos um povo de moral ambígua, ou mesmo sombria.
Outro escritor paulista, Mário de Andrade, nos anos 30 do século passado, querendo ir ao centro da questão, avançou a teoria de que esse homem brasileiro é um ser sem caráter. O arguto Mário, como peça de ficção, para representar o brasileiro, distinguiu a figura de Macunaíma, herói sem nenhum caráter, malandro metido em eternas trapalhadas sob o manto de incontáveis metamorfoses.
Para ampliar o espaço de citações, lembro a tirada de um dolorido cronista dos anos 80 do século passado, José Carlos Oliveira. Para o ele, o brasileiro não passaria de um ser-no-vazio, tipo inacabado que, por qualquer razão primitiva, não percorreu o caminho evolutivo da espécie: “O brasileiro não é: ele se faz, mas não se faz em definitivo: ele se experimenta; troca de idéias como as cobras trocam de casca”. O brasileiro seria, assim, em princípio, um eterno agente do improviso.
Outro sociólogo paulista, por sua vez, qualifica o brasileiro como o “homem cordial”, sujeito que pensa com o coração, para confundir, pela manha herdada dos ancestrais ibéricos, o espaço público com o espaço privado, ou seja: impor o clientelismo cupincha como principal atribuição da vida política.
Eis aqui o âmago da questão: a cultura política do brasileiro, que mescla o interesse privado com a coisa pública, ultrapassa os limites da decência humana. Como exemplo emblemático, enfrentamos no momento o caso sobejamente conhecido da guerrilheira Dilma Rousseff, tida como uma das responsáveis, nos anos de chumbo, por ações beligerantes, contrabando de armas, roubos à mão armada e o assalto (no montante de 2.800 milhões de dólares) ao cofre de Ana Benchimol Capriglione, a amante do ex-governador (paulista) Ademar de Barros.
Vejam só: no pleito eleitoral em andamento, fala-se muito na deflagração da campanha “Ficha Limpa”, movimento de combate à corrupção na política, em especifico contra a candidatura de políticos em débito com a justiça.
Assim seja. Mas à frente nas pesquisas eleitorais ao cargo de presidente da República, Dilma Rousseff, a companheira preferida de Lula da Silva, jamais explicou onde foi parar tanto dinheiro saqueado por ela (entre outros) de um ser privado. E aqui vem o pior: a mesma gente que se diz ansiosa pela instauração de uma sociedade mais digna e justa, sequer exige da candidata oficial uma explicação compatível para o caso escabroso ou simplesmente aceita o fato como consumado: o que não tem remédio, remediado está.
Ver a coisa pública como patrimônio privado não é, de resto, uma postura exclusiva dos políticos. Ela campeia, como um ferrete infamante, entre as chamadas elites intelectuais. Abram-se, por exemplo, os jornais ou vejam-se as entrevistas repassadas nas televisões: não haverá um dia sem que representantes desta ativa confraria de ladinos não estejam, por vias postas e interpostas, a reclamar dinheiro público em troca de pretensão, água e vento.
Em nome da “cultura”, e da pretensa busca de uma abstrata “identidade nacional” – esta, uma espécie de peru sem cabeça, pois ninguém sabe ao certo o que é ou o que representa -, ensandecidas hordas de cineastas, músicos, pintores, escritores, produtores culturais os mais diversos, demandam furiosos pela grana fácil dos contribuintes acumulada nos cofres públicos gerenciados por políticos matreiros. “Um direito adquirido”, dizem eles, visto que ela, a cultura, não é só “um momento de recreação, ornamento social ou cortina rendada que se abre a papos mais sérios”.
Tudo isso acima exposto configura o quadro da miséria moral que contamina o ser nacional: as elites intelectuais, a pretexto de “defender o povo brasileiro”, terminam por sacar do estômago das massas ignorantes o alimento farto de que se nutrem.
Não é por acaso que o país naufragou em trauma profundo, alheio a uma moral compartilhada, mergulhado no horror da guerra civil, da exploração e da segregação social. Com um ser brasileiro assim ao natural, como não soçobrar?
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