terça-feira, agosto 24, 2010

AO REDOR (e dentro) DO SOM

W. J. Solha

Tenho vivido uma experiência única. Depois de escrever, de enfiada, o poema longo Trigal com Corvos; a coletânea de 126 contos, um roteiro de longa e dois romances que formam minha História Universal da Angústia; além do romance inédito Dricas, do último trabalho publicado - Relato de Prócula -, e de estar, agora, em pleno parto doloroso de novo poema longo, veio-me – quando me sentia já saturado - a resposta daquilo que Mozart lindamente musicou no Réquiem, quando o coro, súplice, pede ao Ser Supremo:

- “Voca me, voca me”.

Daniel Aragão, que trabalhava na formação do elenco do filme O Som ao Redor, de Kléber Mendonça Filho, disse que me vira subir ao palco do Teatro de Santa Isabel, no Recife, no final do ano passado – para ser apresentado à plateia como o libretista da ópera Dulcineia e Trancoso, de Eli-Eri Moura, que acabara de ser apresentada - e decidira:

- É Seu Francisco!

Finalmente achara – contou-me – o ator com o “physique du rôle” (físico para o papel) para esse personagem. Avalisava-me, também, segundo ele, minha participação no curta A Canga, do Marcus Vilar. Como lhe respondi que decidira não mais me meter nessa, de ator, insistiu tanto, que lhe pedi para ver o roteiro. E... vi, no que li, minha derradeira oportunidade de participar de algo realmente grande, como nos velhos tempos de Fellini, Ford ou Bergman.

- OK, Daniel.

Ele veio, então, à minha casa, fazer um teste, que constou de um improviso. Kléber, ao ver o material, e sem me vincular ao brutal camponês de A Canga, achou-me “simpático demais” para seu personagem. Chamou-me para novo teste, agora no Recife, ao tempo em que provava, também, a performance do Sebastião Formiga, que – chamado para contracenar comigo - me propôs um ensaio no Thomas Mindello. Quando terminamos a cena, em Recife, no dia seguinte, Kléber disse a seus assistentes Leo Lacca e Juliano Dornelles:

- Arrepiante...

Já no meio das filmagens, bem depois, chegou para mim e, generosamente, me revelou:

- Foi naquele momento que passei a acreditar – realmente – no filme.

Bem, não tenho um papel extenso em O Som ao Redor. Mas eu o comparo ao de Pilatos, que fiz por três anos no Auto de Deus – espetáculo ao ar livre da Semana Santa, do Everaldo Vasconcelos - no qual eu não ficava muito tempo em cena, mas ciente de que, sem minha participação, Cristo não iria pra cruz! Trata-se de uma vantajosa troca do extenso pelo bem denso. Há especialmente dois diálogos de que participo, no filme, que são magistralmente construídos, numa tessitura complexa de ironia, crueldade, medo, violência... e graça. Uma delícia pra qualquer ator. Os ensaios intensos que tivemos antes e durante as filmagens, acrescentaram nuances incríveis ao roteiro, que já era muito bom. Kléber trabalhou nossa interpretação como um Rembrandt: através da sobreposição de várias camadas, das quais sempre surgiam luzes nas trevas e sombras nas luzes. Isso tudo com uma suavidade, segurança e uma fleuma que sua esposa – Emilie Lesclaux – considera, não sem razão, “britânica”.

A razão disso talvez esteja – também – no fato de que ele viveu seus anos de formação – dos 13 aos 18 – em Londres. Mas não é apenas isso. Embora O Som ao Redor seja seu primeiro longa-metragem, Kléber vem de uma série de curtas excepcionais. Sobre Vinil Verde, você pode ver em http://www.youtube.com/watch?v=750ywyKLCs8 o destaque especialíssimo que lhe dá o apresentador do BBC Culture Show ao cobrir o festival de filmes fantásticos de Bristol, Inglaterra, de que o curta fez parte. E eu mesmo vi, durante o último Fenart, no Cine Banguê, a consagração de outra criação sua: Recife Frio. Excepcional, também, é seu “Crítico”, de 65 minutos, em que temos a oportunidade única de ver o que dizem sobre os analistas da sétima arte cineastas como Gus Van Sant, Walter Salles, Carlos Saura, Eduardo Coutinho e muitos outros, além das colocações – várias delas geniais – dos próprios críticos. Por outro lado, Kléber é – ele mesmo – soberbo crítico de cinema – como nossos João Batista de Britto e o finado Antonio Barreto Neto – com a vantagem de ser, visceralmente... cineasta.

Mas o que é O Som ao Redor? Não estou autorizado a dizer. Mas adianto – generalizando – que tem algo da suíte Quadros de Uma Exposição, de Mussorgsky. Ou mais. Tem qualquer coisa de Robert Kushner...
Não. Acho que pende mais para... Martin Kippenberger...
Não, não. Acho que lembra mais... David Salle, ... sendo bem mais claro... e, paradoxalmente, sei lá...
Na verdade eu me sinto como... esse personagem aí, na horizontal. (23-08-2009)

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