Tenho vivido uma experiência única. Depois de escrever, de enfiada, o poema longo Trigal com Corvos; a coletânea de 126 contos, um roteiro de longa e dois romances que formam minha História Universal da Angústia; além do romance inédito Dricas, do último trabalho publicado - Relato de Prócula -, e de estar, agora, em pleno parto doloroso de novo poema longo, veio-me – quando me sentia já saturado - a resposta daquilo que Mozart lindamente musicou no Réquiem, quando o coro, súplice, pede ao Ser Supremo:
- “Voca me, voca me”.
Daniel Aragão, que trabalhava na formação do elenco do filme O Som ao Redor, de Kléber Mendonça Filho, disse que me vira subir ao palco do Teatro de Santa Isabel, no Recife, no final do ano passado – para ser apresentado à plateia como o libretista da ópera Dulcineia e Trancoso, de Eli-Eri Moura, que acabara de ser apresentada - e decidira:
- É Seu Francisco!
Finalmente achara – contou-me – o ator com o “physique du rôle” (físico para o papel) para esse personagem. Avalisava-me, também, segundo ele, minha participação no curta A Canga, do Marcus Vilar. Como lhe respondi que decidira não mais me meter nessa, de ator, insistiu tanto, que lhe pedi para ver o roteiro. E... vi, no que li, minha derradeira oportunidade de participar de algo realmente grande, como nos velhos tempos de Fellini, Ford ou Bergman.
- OK, Daniel.
Ele veio, então, à minha casa, fazer um teste, que constou de um improviso. Kléber, ao ver o material, e sem me vincular ao brutal camponês de A Canga, achou-me “simpático demais” para seu personagem. Chamou-me para novo teste, agora no Recife, ao tempo em que provava, também, a performance do Sebastião Formiga, que – chamado para contracenar comigo - me propôs um ensaio no Thomas Mindello. Quando terminamos a cena, em Recife, no dia seguinte, Kléber disse a seus assistentes Leo Lacca e Juliano Dornelles:
- Arrepiante...
Já no meio das filmagens, bem depois, chegou para mim e, generosamente, me revelou:
- Foi naquele momento que passei a acreditar – realmente – no filme.
Bem, não tenho um papel extenso em O Som ao Redor. Mas eu o comparo ao de Pilatos, que fiz por três anos no Auto de Deus – espetáculo ao ar livre da Semana Santa, do Everaldo Vasconcelos - no qual eu não ficava muito tempo em cena, mas ciente de que, sem minha participação, Cristo não iria pra cruz! Trata-se de uma vantajosa troca do extenso pelo bem denso. Há especialmente dois diálogos de que participo, no filme, que são magistralmente construídos, numa tessitura complexa de ironia, crueldade, medo, violência... e graça. Uma delícia pra qualquer ator. Os ensaios intensos que tivemos antes e durante as filmagens, acrescentaram nuances incríveis ao roteiro, que já era muito bom. Kléber trabalhou nossa interpretação como um Rembrandt: através da sobreposição de várias camadas, das quais sempre surgiam luzes nas trevas e sombras nas luzes. Isso tudo com uma suavidade, segurança e uma fleuma que sua esposa – Emilie Lesclaux – considera, não sem razão, “britânica”.

Mas o que é O Som ao Redor? Não estou autorizado a dizer. Mas adianto – generalizando – que tem algo da suíte Quadros de Uma Exposição, de Mussorgsky. Ou mais. Tem qualquer coisa de Robert Kushner...





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