quinta-feira, abril 15, 2010

Sintonia e sinfonia


Germano Romero

A permanente preocupação com a saciedade biológica e com os perigos iminentes à integridade física é intrínseca à conduta dos bichos que, “teoricamente”, não raciocinam. E, se o que mais acentua a nossa semelhança com os animais “não humanos” é a prioridade em satisfazer necessidades imediatas de sobrevivência, o inverso parece ser verdade. Paradoxalmente, quando nos distanciamos das preocupações com o trabalho, a segurança material, com ambições mais primitivas, inerentes aos conflitos psicossociais como poder, dinheiro, posse e tudo o que provoca a equivocada sensação de superioridade, é que nos sentimos verdadeiramente superiores. Nenhum “insight”, nenhum estado “alfa”, nenhuma expansão de consciência ou sequer um prazer mental mais sutil pode ser experimentado se não pularmos a cerca do cotidiano, da rotina, da indiferença.

Essa poética e graciosa cantoria de grilos e girinos, que ora escuto vinda de uma verde relva naturalmente alagada com a chuva, por trás de nossa casa, me passaria despercebida se os pensamentos que trouxera da caminhada à beira-mar não houvessem levitado acima do dia-a-dia: o horizonte plúmbeo se espelhando no mar sereno, as ondas esparsas a se aproveitar da calmaria para “falar” mais alto, as lavandeiras bicando ciscos na areia macia, que o mar acabava de vitrificar com espumas brancas, e as marias-farinha correndo delicadamente, de um lado para o outro, desenhavam meu caminho para longe da razão.

Para completar, entrei no mar. Ninguém na praia, ninguém no mundo, nada à vista, mas, tudo comigo. Com a água no pescoço, ao nível do horizonte, o pensamento foi longe e confundiu-se com o céu. Éramos um. Como pareceu eterno aquele momento, dourado pelo sol, que longe descia... E o inverno já começava a aparecer por trás do duplo arco-íris, que encortinava o divino palco, no qual eu representava a calma e terna felicidade de ser. E de não ser...

Mas o céu fechava as portas do dia, e a outra vida me chamava, a dizer que a noite era hora de voltar. Felizes daqueles que têm prazer no regresso... Levantei-me. Senti escorrer da mente aos ombros, e corpo abaixo, a deliciosa água, ainda morna, do verão prestes a partir. E fui para casa.

A água que agora me molhava vinha do chuveiro, junto com aconchegantes lembranças do crepúsculo deixado na praia. Depois do banho, nada melhor do que acariciar o corpo com o balanço duma gostosa rede.

Do lado, o netbook mostrava-se disponível para me conectar a um mundo longe daquele que eu acabara de ver, e experimentar, mas sem nenhuma notícia das gaivotas...

Preferi os sapinhos a coachar sua sinfonia sem maestro, mas em invejável sintonia, adorando a lagoa que a chuva lhes deixara.

A mesma sintonia que me fez escrever essas bobagens, que nem sempre interessam...

Um comentário:

Maria Olindina disse...

Olá,
MBOM, o estilo, as ideias de uma bela crônica, bem como a maneira do autor enxergar a vida: uma verdadeira sintonia e sinfonia.
Ninguém esquece.
Parabéns!...