segunda-feira, janeiro 25, 2010

Vozes vindas do Haiti


Folha de São Paulo, 24/01/2010


A opinião de 5 intelectuais haitianos, 4 professores da Universidade do Haiti e 1 professor em Harvard, é um triste libelo contra tudo que tem sido feito de errado no Haiti. É um texto demolidor e se essa gente não for ouvida, não reerguerão nunca aquele país.

MICHÈLE ORIOL, socióloga, é professora de sociologia da Universidade de Estado do Haiti; DANIEL SUPPLICE, historiador, é professor de história da Universidade de Estado do Haiti; MICHEL SOUKAR é historiador;
ERIC BALTHAZAR é sociólogo;
JEAN-PHILIPPE BELLEAU, antropólogo, é professor de antropologia da Universidade Harvard. Todos os autores são haitianos.

Nós, acadêmicos, e intelectuais haitianos, revirando ainda os escombros de nossas casas e vidas destruídas, esperamos ser ouvidos por cima dos clamores de comentaristas e autoridades. Isso é tanto mais importante porque o futuro do Haiti se decide agora. Queremos apresentar aqui uma avaliação franca dos problemas que o Haiti enfrenta e oferecer uma nova maneira de pensar a respeito da reconstrução da capital, Porto Príncipe, e do Estado haitiano.

As perdas humanas e os danos materiais são extremamente pesados, tanto pela dimensão do tremor como pela surpresa com que foi vivido. Mas essa catástrofe foi anunciada. Vários cientistas haviam advertido quanto ao risco iminente de um terremoto na área da capital e propuseram medidas simples e não tão caras para preparar a população. As autoridades ignoraram completamente esses alertas.

Nenhuma criança haitiana foi orientada a buscar proteção sob um móvel ou sob o umbral das portas. O desastre deixou as autoridades completamente sem reação. As iniciativas mais importantes para a prevenção de riscos e resposta a emergências financiadas pela cooperação internacional nos últimos anos não tiveram nenhuma eficácia no longo prazo. Os bilhões de dólares gastos nos últimos 15 anos em infraestrutura geraram resultados pífios.

Para além das reflexões sobre a inevitabilidade dos desastres naturais, devemos tirar conclusões a partir da resposta às catástrofes de 2004 e 2008 no Haiti e dos US$ 600 milhões que custa a cada ano a presença da ONU. De outro modo, a ajuda será novamente engolida por um gigantesco buraco negro de inércia, corrupção e incompetência. Reciclar os mesmos projetos é uma receita para o fracasso. Ajuda mal planejada e mal implementada não produzirá os resultados esperados pela generosidade dos estrangeiros e pela boa vontade dos haitianos.

O que restava do Estado haitiano ruiu junto com a capital. O colapso do palácio presidencial, da Assembleia Nacional e da maioria dos ministérios serve como uma metáfora bem adequada. A destruição do Estado haitiano, iniciada há 50 anos, foi completada.

A população reconheceu a total incapacidade das autoridades para oferecer qualquer tipo de resposta à perturbação no país ou para coordenar os esforços internacionais. Um presidente abalado, desconexo, imóvel se mostrou incapaz de se dirigir a seu povo, a não ser para dizer que também ele estava desabrigado. Na verdade, a única personalidade política a falar publicamente e abordar a situação foi o presidente americano, Barack Obama.

Nenhum de nós chegou a se surpreender com a completa ausência de um Estado há muito morto. Nessas condições, ninguém deveria fingir que instituições nacionais tenham sobrevivido à catástrofe e sejam capazes de operar. Tememos inclusive que autoridades haitianas utilizem o desastre como uma oportunidade para permanecer no poder após o fim de seus mandatos em dezembro, defendendo a unidade nacional, a continuidade e a assim dita "estabilidade política".

Sem dúvida, o primeiro passo é a criação de uma estrutura centralizada, que deveria ser composta por haitianos investidos da mais alta autoridade e seus aliados mais sólidos, os países mais comprometidos e engajados. Mais importante, deveria ser inteiramente integrado e não constituído por duas alas, estrangeiros com seus projetos de um lado e ministros despreparados do outro. Foi-se o tempo em que governos estrangeiros podiam se esconder por trás da ONU ou dizer: "Aqui está o dinheiro, e assim fizemos a nossa parte".

Nos últimos seis anos, os arranjos estabelecidos entre um Estado falido e as desorientadas Nações Unidas e outras organizações multilaterais produziram um fracasso retumbante. Enquanto estas ofereciam os fundos de ajuda, aquelas legitimavam-nas e implementavam-nos, com resultados, na melhor das hipóteses, inexpressivos. À frente dessa nova estrutura de comando e coordenação somente poderiam estar os americanos ou franceses, uma vez que a liderança dos esforços multilaterais por países caribenhos ou latino-americanos nos últimos 15 anos simplesmente não funcionou.

Apenas grandes potências têm a vontade, a visão e os meios para responder no longo prazo pelos compromissos assumidos. O Haiti não tem condições de servir outra vez como tubo de ensaio para ambições de potências regionais, cujo papel nos últimos anos tem sido, na melhor das hipóteses, supérfluo. Erros repetidos não podem ser acobertados pelos escombros. A responsabilidade jamais assumida por resultados jamais alcançados não deve desaparecer numa vala comum.

O público internacional deve saber que, se o presidente haitiano está desacreditado aos olhos de seu povo, o mesmo acontece com a ONU. Se ela pretende desempenhar um papel, qualquer que seja, deve fazê-lo sob as ordens desse comando central. A partir daí, deveríamos enfocar o planejamento fundiário, a infraestrutura e a educação, conformando um modelo de planejamento nacional.

Qualquer coisa aquém disso fará com que daqui a dez anos todos se perguntem outra vez onde foram parar os bilhões investidos. Qualquer coisa além disso e nenhum grau mínimo de confiança mútua poderá ser restabelecido. E, enquanto a confiança se esvai e o povo haitiano se desespera, só nos resta contar com a boa vontade de nossos amigos da República Dominicana, do Brasil, do México e, falhando todos, de Deus.

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