sexta-feira, dezembro 18, 2009

Recuerdo 36 - O meu Padim Ciço e o Padre Zé Coutinho


Hugo Caldas

(Foto: Plínio Palhano)


Não há nordestino que se preze que não tenha, por menor que seja, uma devoção para com o Padre Cícero Romão Batista - Padim Ciço. Em todos os lares do interior desse nordeste sofrido há impreterivelmente uma pequena imagem ou uma gravura desbotada do Padre. Dita imagem serve para tudo menos como decoração. O padim Ciço aqui no nordeste é encontrado desde suas imagens gigantescas em Juazeiro, passando pelas casas de pau-a-pique mais pobrezinhas até em palacetes de ricos e remediados. É sagrada, obrigatória até, a presença da conhecida e pequena imagem do padre Cícero em pé, apoiado num cajado.

Muito já se falou e escreveu sobre o Padre Cícero e me confesso incompetente para mais uma resenha sobre os seus feitos. Portanto não quero aqui me estender sobre sua história, seus milagres, sua politicalha, ou até mesmo o seu apadrinhamento com Virgulino Ferreira, O Lampião. O que desejo aqui relatar pode muito bem se tratar de coisa mais terrena, mais ao rés-do-chão, longe das beatitudes do padre, e seus seguidores.

Cerca de cinco anos atrás acompanhei um amigo na negociação e compra de pequena granja na periferia da cidade de Gravatá. No dia aprazado para os antigos donos entregarem as chaves da propriedade alguns objetos chamaram a minha atenção. No chão, apoiados na parede do grande terraço que circunda a casa, entre velhas selas, cordas, correntes e uma caveira de boi, sobressaiam um sino de bronze e uma estatueta do Padre Cícero.

Me interessei pelos dois últimos objetos. Tanto pelo capricho na feitura do pequeno sino quanto pelo inusitado da estatueta do Padre Cícero. Mas como, não são todas iguais, o padre em pé, apoiado no cajado? Não, aquela estatueta era absolutamente diferente. Única no mundo talvez, pelo menos para mim. Lá estava o Padre Cícero Romão Batista sentado em uma poltrona.

De imediato me veio à memória a figura saudosa e querida do Padre Zé Coutinho, este sim, um santo homem, que passou os últimos dias da sua vida na Paraíba, sentado em uma cadeira de rodas empurrada por dois garotos. Ele caminhava, mancando é bem verdade, mas caminhava. O que não conseguia era sair para longas andanças atrás de "coletar" o dinheiro para as suas obras. Aparecia nos lugares mais incomuns. Bares, restaurantes, cinemas e até na zona do meretrício. Sempre a nos descompor e açoitar com uma varinha de bambu reclamando dinheiro para manter vivo o seu trabalho. Não era figura agradável de se ver. Batina bufenta, mais para cinza, de tão desbotada. Não usava o colarinho eclesiástico, deixando antever uma camisa que há muito não via lavagem, a gola manchada de suor. Bolsos estufados com o dinheiro "confiscado". Barba por fazer, cabeça raspada à moda dos jogadores de futebol de hoje. Entretanto, era uma pessoa tão querida que sua igreja sempre estava cheia para ouvir suas pregações e assistir a missa. Certa noite de maio, Igreja das Mercês praticamente lotada, tive a oportunidade de perceber que a ladainha da Santíssima Virgem, em latim, era rezada por ele em rítmo de conga*... (tá-tá-tá-tá-tá-tum-tá-tá-tá-tum) Mater Creatoris...ora pro nobis...Mater Salvatoris... ora pro nobis...Virgo prudentissima...ora pro nobis...

Lembro de uma tarde em que eu e o pintor Ivan Freitas fomos até a casa paroquial, transformada em Instituto São José, onde ele abrigava pessoas carentes vindas do interior, ajudando-as a arranjar emprego e fazia funcionar vários cursos para quem precisasse: corte e costura, bordados à mão e à máquina, datilografia, flores, tricô, arte culinária, desenho artístico, enfermagem. Todos a funcionar de uma só vez em um único lugar. Nesta santa bagunça estudaram datilografia Paulinho e Ipojuca Pontes.

Dizia que fomos até lá porque o Ivan necessitava umas informações, não lembro bem sobre o que agora, e isento de qualquer malícia, talvez por força do hábito, perguntou na maior candura...

- Quem é o diretor desse negócio aqui...?

Levou evidentemente, uma descompostura: "A Casa de Deus não é casa de negócios", vociferou o Padre Zé imbuído da mais santa ira...

Mas, já tergiversei demais sobre o passado. Voltemos ao futuro!

Dizia eu que tinha tido a atenção voltada para as duas peças que repousavam no chão do terraço da casa grande. Notando o meu interesse, logo os amigos inventaram uma história mirabolante, que eu seria o novo padre missionário recém-vindo para a pregação das Santas Missões na cidade e, portanto seria um gesto bastante simpático se me presenteassem com a pequena relíquia. Com isso conseguiram vencer a resistência da proprietária, viúva recente, toda chorosa, junto com as filhas, sempre falando da vida feliz que todos ali tiveram por 45 longos anos.

Conversa vai, conversa vem, a lorota do suposto missionário vingou e eu terminei o dia ganhando de presente a imagem do Padim Ciço que hoje ocupa lugar de destaque na minha estante. Menos por devoção é claro, muito mais porque me resgata parte da juventude ao evocar a figura do Padre Zé Coutinho.

Quem o conheceu verá que guarda uma certa semelhança, é só dar uma espiada na ilustração acima.

* Para quem só entende de rap e outras aberrações da natureza, Conga é uma dança de salão, originária da América Central.



hucaldas@gmail.com
newbulletinboard.blogspot.com

3 comentários:

Alexandre disse...

Caro Professor Hugo,

Lembrei das nossas aulas de inglês onde cantávamos "...love and marriage.." e fiz uma versão em sua homenagem. Quando puder verifique no link abaixo se a poesia pode me liberar das bisarrices gramaticais que cometi.

http://alexdobrasil70.blogspot.com/2009/12/trem-das-onze-em-ingles.html

Quanto ao Padim Ciço, vou muito a Juazeiro a trabalho e vos digo que o lugar tem uma magia incontestável.

Aquele Abraço e Saudações Naftalinas

Fábia disse...

Delicioso o seu humor que me faz tanto rir e lembrar dos meus tempos de infância, dos termos usados frequentemente pelos os personagens que fizeram parte dela, inclusivo o "Padin Pade Ciço Romão Batista" e as tão faladas romarias.
Bateu uma forte saudade da Liquinha que voltou do Juazeiro com tantas estórias pra contar e do primo Rubem que se estivesse vivo com certeza iria trocar umas figurinhas de humor contigo!
Um grande abraço e Feliz Natal pra você e toda a sua familia!
Fabia

Carlos Mello disse...

Hugão
Eu sou um nordestino que se preza e não tenho nenhuma imagem do Padre Cícero, nem acredito nessa farsa. O povo brasileiro acredita em tudo, canoniza tudo, até Lampião, até Sarney. Essa idolatria idiota é a cara de nossa ignorância. Carlos Mello"