terça-feira, dezembro 08, 2009

Cartas da Alemanha


Querido Hugo

Esta semana tive a oportunidade de visitar Freiburg na Alemanha e enquanto caminhava pelas ruas olhando por onde pisava, percebi um brilho dourado no chão. Cheguei mais perto e vi que eram "pedras" douradas no formato quadrado como as demais e com gravações interessantes: identificação de pessoas (nomes para mim muito exóticos ou bonitos como Flora Bear). Quando as analisei direitinho, vi que se tratava de informações sobre alguém que viveu na casa onde a marca se encontra, mas não apenas isso. Eram dados sobre alguém que foi deportado (local e data) e assassinado pelos nazistas.

Um pouco atordoada perguntei à meu amigo que me acompanhava e pacientemente me observava diante desta descoberta um tanto chocante, se eu realmente havia entendido o que aquilo significava. Então ele me explicou o seguinte:

"Aqui você encontra muitas destas "Stoelpersteinen" que fazem parte de um projeto criado e realizado por um colega artista alemão chamado Gunter Demnig em memória às vítimas do nazismo que não foram apenas os judeus, mas também políticos perseguidos, ciganos, homossexuais, testemunhas de Jeová e vitimas da eutanásia. Com as pedras douradas gravadas em frente às casas, a lembranças destes seres humanos que viveram ali, permanece viva". Porque segundo o artista autor da obra: "Ein Mensch ist erst vergessen, wenn sein Name vergessen ist"(Um ser humano é esquecido quando o seu nome não é mais lembrado). Veja o site em alemão com fotos: http://www.stolpersteine.com/

Como as datas de deportação e assassinato existentes nas pedras precedem à data da guerra (Novembro e Dezembro de 1938), perguntei mais sobre o assunto e como resposta meu amigo me perguntou se eu conheço sobre o acontecimento denominado "Kristalnacht". Novamente fiquei confusa, afinal parece um nome tão bonito que lembra algo como noite cristalina ou algo relacionado com Natal, mas nada de cristão tem esse acontecimento. E de cristal somente os vidros estraçalhados das vitrines das lojas dos judeus destruídas na noite do acontecimento assim denominado.

Kristalnacht foi uma manifestação que precedeu o mês natalino na noite de 9 de Novembro de 1938 na Alemanha e foi organizada pelos nazistas e a polícia alemã durante o Regime Socialista Nacional com a finalidade de destruir a comunidade judaica.

Entre 7 e 13 de Novembro de 1938 foram assassinadas cerca de 400 pessoas ou mesmo induzidas à suicídio. Sinagogas, lojas, moradias e mesmo cemitérios judeus foram invadidos e destruídos. Depois de 10 de Novembro mais de 30 mil judeus foram enviados para campos de concentração, dos quais muitos foram assassinados e outros morreram por conta das conseqüências impiedosas do aprisionamento.

O dia 9 de novembro é dia muito marcado na Alemanha. Foi inicio de deportação dos judeus para os campos de concentração, foi marco de crise financeira com inflação assustadora (empobrecimento de muita gente e riqueza de outros através da desgraça alheia) e como conseqüência a manifestação acima dita. E por último, esse dia também é marco da queda do muro de Berlin.

Então as pedras douradas, a lembrar do metal nobre, é também uma tentativa de tirar as vítimas do anonimato, é uma confrontação com um fato nada nobre da humanidade e um monumento às vítimas.

A Alemanha tem um passado muito pesado. E disso eu sei desde criança, quando tive oportunidade de conhecer um amigo de meu pai, alemão judeu viajante de ótica, sobrevivente da guerra. Eu era muito pequena, não me lembro do rosto de Abraham (Abrão como eu o chamava). Mas lembro da pessoa dele e de certa vez quando brincava com minha boneca que até então não tinha nome. Ele me perguntou como ela se chamava e como eu ainda não sabia como chamá-la, Abraham pegou minha boneca em suas mãos e me perguntou que tal seria chamá-la de Lili? E lembro que sorri e disse sim. E notei suas mãos grandes e suas unhas defeituosas que me despertaram curiosidade por serem diferentes das que eu conhecia. E com a inocência de criança fiz espontaneamente a pergunta: Abrão, porque você tem unhas desse jeito?

Mas ao invés ouvir palavras eu vi que Abraham encheu os olhos de lágrimas e meu pai me disse para não perguntar mais explicando que isso deixava o amigo triste. Eu fiquei igualmente triste sem compreender por que eu havia ferido Abraham. Obedeci ao meu pai. Mas quando Abraham se foi eu "detonei" meu pai com perguntas que me disse simplesmente que alguns homens ruins haviam torturado o amigo. Resposta que não foi suficiente às perguntas sobre as quais ele nunca soube responder e que ainda hoje depois de tantos anos me ocupam e eu continuo sem entender, como pode tanta maldade e de que ela tem de humana? Ela é mesmo desumana!

Mas entre os desumanos, tantos humanos. E bons alemães que reconstruíram suas vidas dignamente à partir das cinzas deixadas como uma das conseqüências da maldade. A Alemanha é um País maravilhoso. Não sei qual o sobrenome de Abraham. Mas entre os humanos, dele eu também nunca vou me esquecer.

Um grande abraço

Fábia de Carvalho

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