quarta-feira, dezembro 17, 2008

Tião Boca de Caçapa


Elpídio Navarro

Existem personagens reais ou inventados, de cujas façanhas a gente nunca esquece. As aventuras do abestalhado (nem tanto) Tião Boca de Caçapa, eram contadas por Mirócene Amorim, companheiro de muitas jornadas teatrais. Biró, como era chamado pelos mais próximos, tinha um vozeirão daqueles que a velhinha surda que se sentava na última fila do teatro, acordava toda vez que ele falava. Ele se vangloriava ao dizer: "Posso não ser um Paulo Autran, mas todo mundo ouve o que eu falo num palco". E eu acrescento: em qualquer lugar! Já com problemas sérios de saúde na última vez que nos encontramos, perguntei o que sempre se pergunta: Como vai você? E com o mesmo vozeirão de sempre foi taxativo: "Com um pé na cova!" Faleceu algum tempo depois.

Mas as histórias que Biró contava de Tião Boca de Caçapa eu sempre lembro, pela graça, pelo inusitado e até mesmo pelo nome/apelido que arranjou: colocava, de uma vez, cinco picolés na boca e conseguia chupá-los ao mesmo tempo. Era como uma caçapa de mesa de sinuca. Não lembro ao certo onde residia pois a memória falha. Mas era numa cidade dividida por um rio.

Certa vez, no período chuvoso, era preciso transportar uma mesa de bilhar para o outro lado da cidade. O dono do pesado objeto não encontrara nenhuma caminhoneta nem carro-de-boi para fazer o serviço, devido as grossas chuvas que caiam e o aumento do volume da água e correnteza do rio. Tião Boca de Caçapa apresentou-se como solução, dizendo que levaria a mesa na cabeça. Todos duvidaram. O interessado no transporte relutou um pouco mas, sem outra saída, resolveu topar a parada. Boquinha da noite, já havia tocado a Ave Maria no rádio, lá vai Tião Boca de Caçapa botando a tal mesa, coberta por uma lona, na cabeça protegida por um travesseiro e ajudado por mais quatro homens. Disse "Volto já já..." e desapareceu no escuro da noite. Deu mais de dez horas e nada de Tião voltar. Todos já estavam preocupados com o destino de Tião, quando avistaram um vulto se aproximando: era Boca de Caçapa de volta ainda com a mesa na cabeça, todo molhado e pedindo ajuda para tirar aquele incômodo de cima dele. "O que houve? O rio não deu passagem?", perguntaram. "Não, até que foi fácil. O ruim foi lá porque o endereço estava fechado e não tinha ninguém para ajudar descarregar. Então trouxe de volta..."

Tião morava sozinho num casebre até perto da farmácia, onde toda noite um grupo se reunia para jogar gamão na calçada, por conta da iluminação mantida pelo boticário na fachada do seu estabelecimento. Tião tinha sido amigado mas a mulher tacara-lhe um par de chifres fugindo com um boiadeiro de mudança para outra cidade. Ele achou melhor não ir atrás, preferindo ficar com uma cabrita que criava no fundo do quintal e não mais confiar em rabo de saia. Tião toda noite ia pilungar o jogo de gamão, mesmo sem entender nada do assunto. Gostava de espiar quem dava mais pontos com o bozó mas não entendia quando um outro resultado valia mais que dois seis. Os jogadores não gostavam das constantes perguntas dele sobre o jogo e um deles resolveu desafiá-lo com o objetivo de afastá-lo do recinto: "Tião, eu digo que você é macho mesmo se for agora ao cemitério, arrancar um cruz de um túmulo e trazê-la até aqui!" E os outros acrescentaram: "Vai nada, não tem coragem!" "E se aparece uma alma?" "Uma empreitada dessa é para quem tem culhões roxos!" E outras provocações mais. Tião Boca de Caçapa ficou por ali, desconfiado, sem dizer nada, foi se afastando e deu no pé. Gozação geral: "Até que enfim nos livramos dele..." disse alguém. O jogo continuou e depois de uns vinte minutos uma cruz suja de terra cai em cima do tabuleiro de gamão, jogada por Tião, dizendo: "Eu não sei ler não, mas tem o nome do dono escrito aí na cruz. Devolvam depois."

Não satisfeitos com a história da cruz, os parceiros do gamão resolveram fazer outra falseta com Tião, como troco ao susto que levaram. Propuseram um encontro na sexta-feira, à meia-noite, na porta do cemitério, para fazer uma oração pelos mortos. Todos iriam, eram seis. Tião topou. Nessa mesma noite, após todos terem ido para suas casas, foi até ao quintal agradar a cabrita já acostumada com sua visita e notou, não muito longe, um movimento de pessoas na parte de trás da casa do alfaiate. Imaginando tratar-se de ladrões querendo roubar, com cuidado aproximou-se. Eram seus desafiantes experimentando uma fantasia de "alma", um manto branco, capuz com abertura pros olhos. Entendeu tudo. Foi para casa e de um lençol branco fez a mesma vestimenta. Na sexta-feira, um pouco antes da meia-noite os seis apreciadores de gamão chegaram próximos ao cemitério, vestiram-se com as fantasias e esconderam-se enquanto esperavam a hora. Só não sabiam que Tião havia chegado primeiro e feito o mesmo. Quando deu meia-noite e Tião na aparecia, resolveram sair do esconderijo em fila indiana para esperá-lo no portão do cemitério. Quando chegaram, Tião que havia entrado no último lugar da fila, bateu no ombro da "alma" que estava à sua frente e perguntou: "Nós somos quantos?" Ouve como resposta: "Seis, cara! Por que?" Ao que Tião responde: "Por que eu estou contando sete..." Constatada uma "alma" a mais, todos disparam de volta sem olhar pra trás, inclusive Tião Boca de Caçapa que, por sua vez, correu para casa satisfeito, pensando fazer uma nova visita à sua cabrita de estimação.(15-12-2008)

Elpídio Navarro é professor universitário, dramaturgo e diretor teatral, além de editor do www.eltheatro.com

2 comentários:

Silvio Atanes disse...

Para o Elpídio, colega fã de Belchior. Dê uma olhada neste depósito virtual:

http://www.4shared.com/dir/12853918/f5542129/Belchior.html

Está muito boa, tem até a gravação da Bolachinha nº 1 do Bardo de Sobral, com excelente qualidade. Experimente!

um abraço,

Cabôco Fuçadô

PS: Mandei mais coisas por e-mail, mas a mensagem voltou...

Silvio Atanes disse...

Em tempo: o causo do Tião Boca de Caçapa é ótimo! Parabéns!

Silvio Atanes
escriba digital & repórter de papel