segunda-feira, novembro 17, 2008

DOCE RECORDAÇÃO


Kátia Dias

O Criador do Mundo estabeleceu o Domingo como o dia dedicado ao descanso e ao lazer. Portanto, um dia unânime para adultos e crianças. De fato, os adultos gostam desse dia para curtir a casa, almoçar com a família, tirar um cochilo à tarde ou espreguiçar numa cadeira à beira da piscina de casa ou do clube. Quanto às crianças, sem exceção, adoram passear, visitar parques, museus, shoppings, ir ao clube, ao cinema...

De um domingo desses, guardo o registro mais doce de minha infância. Aconteceu como de costume; papai levantou cedo, foi à padaria, trouxe o pão, o leite, queijo, bolachas e bolinhos. Já em casa, juntamente com mamãe, prepararam o café da manhã. Quando acordamos, a mesa já estava lindamente posta, cheia de atrativos infantis, pão doce, mingau, bolachinhas, tudo o que nós adorávamos estava lá. Sentamos todos. O burburinho, igual ao de sempre, envolvia conversas, risadas, batidas de talheres... Papai chamando a atenção para a bagunça que o caçula fazia. A maninha, como de costume, astuciosa, escondendo a colher que mamãe iria usar. Eu, na certa, com outras travessuras.

Foi assim que aquele domingo começou.

Após a farra do café, enquanto a maninha e eu cuidamos de arrumar nossas camas, o caçula correu a ver um pouco de televisão, e mamãe se encaminhou para os afazeres do dia. Mãe nunca tem folga, mesmo no dia dedicado pelo Criador ao descanso e ao lazer. Apesar de ser domingo, foi cuidar dos intermináveis trabalhos da casa, começando a preparação para o almoço. Papai, por sua vez, foi à feira, como era seu hábito dominical. Lá pelas onze voltou, trazendo nossas frutas prediletas e os legumes necessários ao crescimento saudável do trio.

Naquele dia estávamos particularmente terríveis, mamãe não sabia mais o que fazer para amenizar a algazarra. Era pega-pega pela casa, briga pelo programa a assistir na TV, até bate-bola na sala tentamos jogar. Mamãe ficou de cabelos em pé quando viu a bola quicando em torno de seus vasos e bibelôs. Nesse momento, papai teve uma idéia que revolucionou nosso domingo. Chegou à porta e convidou-nos solene: ao quintal, vamos brincar de vendinha. Com as caras de interrogação nos entreolhamos, os três, como a perguntar; por Deus o que será isso?

Papai, já adivinhando os nossos pensamentos, logo emendou, venham depressa, vou explicar, disse, ja caminhando na direção do quintal. Como três foguetes, saímos disparados, nos acotovelando para ver quem chegaria primeiro ao destino e descobriria o que era a tal vendinha.

No quintal, ao invés de explicações, papai iniciou uma distribuição de tarefas. Peguem dois baldes na lavanderia. Mal terminou a frase, partimos os três novamente em louca disparada. Após pequena confusão, voltamos com os baldes à mão. Enquanto isso, papai já havia separado uma tabua grande e larga e, após ajustar os baldes lado a lado com certa distância entre eles, apoiou a tabua, que virou um pequeno balcão. Logo após, deu nova ordem: tragam um caderno velho de brincar e uma régua. Lá vamos os três doidivanas, correndo casa adentro. Quando voltamos com a última missão, já encontramos papai arrumando, laranjas, bananas, maçãs, pêras e até limões, distribuindo-os cuidadosamente sobre o pequeno balcão. Após a organização, arrancou algumas folhas do caderno, e foi cortando-as em pequenos pedaços retangulares. Enquanto fazia isso, nos olhava de rabo de olho, com aquela cara marota de quem também está fazendo arte, ou nos desafiando a dizer, então o que sairá daqui? Nos papeizinhos, de modo aleatório, escreveu números que variavam de um a dez. Só quando terminou, é que começou a esperada explicação.

Ok crianças, vamos brincar de vendinha. Eu sou o proprietário da venda, vocês, os compradores. Aqui, sobre o balcão, estão as mercadorias, já estes pequenos pedaços de papel são o dinheiro. Vou distribuir o dinheiro a vocês e depois cada um vem aqui comprar as mercadorias comigo. Eu entrego para vocês e vocês pagam para mim, entendido? Em algazarra, gritamos que sim, e antes que ele pudesse ditar o próximo passo, começamos a gritar: eu primeiro, eu, eu, então ele falou: por ordem de idade. Logo pensei comigo: droga eu sempre fico por último.

Mas vamos à brincadeira.

Após a distribuição do dinheiro cada um se aproximava e fazia seu pedido. Fiquei radiante quando chegou a minha vez. Estava ansiosa para fazer a minha compra. Enquanto meus irmãos escolhiam suas mercadorias, eu até já tinha formulado minha frase.

Agora era chegada a hora de comprar.

Com enorme brilho nos olhos e um largo sorriso nos lábios olhei bem para papai e disse: MOÇO, QUERO UMA MAÇÃ.

Até hoje, não entendo por que essa frase causou tanto impacto em mim. Não entendo porque guardo essa doce recordação.

Passados tantos anos ainda brinca dentro de mim a criança que fui quando lembro desse dia. O sorriso flui fácil à sombra dessa lembrança. Não sei o porquê, mas chamar meu pai de MOÇO foi a glória para mim.

Aquele domingo mudou os nossos domingos. Por muito tempo depois, já nas sextas-feiras começávamos a pedir a papai: vamos brincar de vendinha! E eu quase não agüentava esperar o domingo chegar para chamar meu pai de MOÇO, novamente.

MOÇO, QUERO UMA MAÇÃ.

Um comentário:

Anônimo disse...

Bela recordação Katia. Ao ler, fiz também uma viagem ao passado, mais especificamente ao quintal do meu Avô. Obrigado pelo texto.
Hugo