domingo, setembro 07, 2008

FALANDO DE COISAS ANTIGAS...


Carlos Mello

Hombridade, segundo o velho Caldas Aulete – numa definição seguida de perto pelo Houaiss e pelo Aurélio – é “consciência da própria dignidade; inteireza de caráter, nobreza de alma; altivez”. Tenho a impressão bem nítida de que essas palavras hoje soam como antigualhas, manias de macróbios, reminiscências devidamente sepultadas no baú da história. Mas esse brogue tem respeitado os direitos do idoso, de forma que me sinto à vontade para falar de coisas passadas com meus dois ou três leitores, gente de outras eras, lacustres, jurássicos. Os demais leitores, ávidos por novidades, tenham paciência. Logo, logo, chegará sua vez, na velocidade com que o tempo se precipita para o final dessa humanidade, na dança de Shiva, o final do kali yuga, de que nos fala a sabedoria védica. Mas isso é tema para outra conversa.


O que andei lendo um dia desses foi a deliciosa História dos hebreus, do historiador Flávio Josefo (na ótima tradução do Padre Vicente Pedroso). Testemunha ocular de fatos e feitos de grande significação para a história mundial, que nos conta aquele arguto observador? Um fato passado com o rei Herodes Magno, aquele mesmo que mandou massacrar as crianças na tentativa de assassinar Jesus (não confundir com seu filho, o tetrarca Herodes Antipas, que mandou executar nosso São Joãozinho somente para agradar aquela marafona que era sua amante). Pois bem, em que pese essa matança dos inocentes, o velho Herodes era um homem de caráter, segundo Josefo. Eis história:


O assassinato de Júlio César havia provocado uma luta ferocíssima pelo cetro romano, colocando de um lado Antônio, o abestalhado amante de Cleópatra, e do outro Otávio, que se tornaria o segundo César, com o nome de Augusto, ao derrotar o inábil casal e assumir o poder. Ora, Herodes apostara no cavalo errado. Amigo de Antônio, ajudara-o como pudera. E agora, derrotado, foi procurar Augusto. Mas não usou de embelecos nem falsidades, não mentiu nem fingiu que era “otavianista desde criancinha”, como costumam fazer nossos políticos, esses “tristres homens de cortiça, que sobrenadam a qualquer enxurrada”, como dizia o David Nasser.


Conta Josefo: Herodes compareceu à presença de Augusto “com todos os ornamentos de dignidade real, exceto a coroa, e jamais demonstrou maior coragem pela sua maneira de lhe falar. Pois em vez de usar de rogos e amáveis desculpas, para induzi-lo a perdoá-lo... prestou-lhe conta de seu proceder sem demonstrar o mínimo temor. Confessou-lhe que nada podia acrescentar ao afeto que havia tido por Antônio. Que tudo havia feito, conforme suas posses, a fim de conservar o império do mundo sob seu poder”. E acrescentou que se na época não estivesse em guerra com os árabes, “teria unido suas armas às dele”. Mas que mesmo assim lhe enviara trigo e dinheiro. Que “desejaria ter feito muito mais e empregado não somente seus bens, mas sua vida”, para lutar ao lado do amigo. Que podiam acusá-lo de outras coisas, mas nunca de que a mudança de sorte o tivesse feito mudar de idéia. E que nada o impediria de proclamar em altas vozes quão grande era sua amizade pelos interesses de Antônio e por sua pessoa.


Convenhamos que é preciso muito peito e muito amor à hombridade para falar essas coisas na cara de um homem que acabara de assumir o comando do mundo. Essa coragem impressionou Augusto, “pela maneira tão nobre de se justificar e de se defender”. Por isso, confirmou-o como rei e o exortou “a ser tão amigo seu como fora de Antônio”. E assim o velho rei dos judeus voltou à Judéia “com um novo acréscimo de honra e de autoridade, causou grande admiração a todos os que esperavam o contrário e só podiam considerar o fato como uma prova da proteção de Deus sobre ele.” Acrescenta Josefo que o comportamento de Herodes incutiu “tão grande estima no espírito de Augusto e dos romanos, que não se cansavam de louvá-lo e de dizer que nenhum outro príncipe o superava em magnificência e liberalidade”.


Não é uma delícia o texto josefiano? Pois bem, logo após essa leitura, comecei a caraminholar umas lembranças e veio-me à memória uma crônica de Machado de Assis (quem teria sido o animáculo que cunhou o infeliz epíteto de “bruxo do Cosme Velho” para o maior romancista da língua portuguesa? Confundir genialidade com bruxaria é coisa de um espírito baixo, sem a menor dúvida). Nessa crônica, escrita no início de sua carreira, quando Machado cobria as discussões parlamentares, conta ele de sua estupefação ao presenciar os abraços e tapinhas nas costas que se seguiam aos debates, quando os ilustres representantes do povo xingavam-se com impropérios. Esse triste espetáculo da baixeza humana é que fez o escritor desistir desse penoso trabalho de cronista político.


Mas, grande é o poder da memória, tem algo de terrível e uma infinita e profunda complexidade, como nos adverte Santo Agostinho. Pois sabem do que me lembrei em seguida? Daquele livrinho da Zélia Gattai, Um chapéu para viagem, em que ela, já então vivendo com Jorge Amado, fora com ele assistir a uma sessão da Câmara, onde presenciou o marido engalfinhar-se em debates desaforados com seus desafetos políticos. E também ela abriu uma boca desse tamanho ao verificar que logo depois os pretensos contendores abraçavam-se sorridentes no cafezinho, já esquecidos dos virulentos adjetivos com que há pouco se mimoseavam. Pena que a cronista tivesse um estômago bem mais resistente que o do Machado. Que, felizmente para todos nós brasileiros, passou à história não só como um grande escritor, mas também como um grande homem.

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