sexta-feira, agosto 08, 2008

Recuerdo 33 - O Major Ambrósio


Hugo Caldas


"Lá vem você bulir aqui!"

Era assim que ele, deliciado com a minha costumeira visita, saudava a entrada da pequena criatura de dois para três anos de idade, manhã cedinho, ainda em pijamas, mãos nos bolsos, em sua oficina de marceneiro, numa das dependências do velho sobrado. Era o meu avô, o Major Ambrósio Pereira, que nos deixou quando eu, mais taludinho, andava pelos meus sete anos. Doença misteriosa. Lembro bem de uma espécie de bola no seu pescoço, a barba branquinha, por fazer. Duas manchas amarelas de tabaco no bigode branco. As dores lancinantes. Não havia remédio que as aplacasse. Somente a aplicação de injeções de morfina. Mortifica-me lembrá-lo dessa maneira. Dia da sua morte chamaram o primo Hélio para me levar ao cinema. Quiseram me poupar do sofrimento. Coisa mais sem jeito! Criança sabe das coisas.

- "Veja Seu Ambrósio, disse-lhe uma tarde o médico que o cuidava, já está mais do que na hora de o senhor parar com esse cigarro de uma vez por todas, homem! E concitando-o, eu mesmo parei há uns oito meses, e estou respirando bem melhor, me sinto outra pessoa. Mais confiante, mais forte."

- "Vais morrer com uma saúde de ferro!" Retrucou fuzilando o médico com seus pequenos olhos azuis. Foi o que efetivamente ocorreu. O médico faleceu em um acidente de automóvel coisa de seis meses depois.

Melhor mesmo será recordá-lo na convivência da minha primeira infância em Pilar, no seu sobrado. Recordar os felizes dias das férias, passados caçando borboletas nos jardins da praça principal da cidade. Da cidade que como prefeito, ele comandou por diversas vezes. Foi também delegado. Figura singular era o Major Ambrósio Pereira, meu avô. Cabelos quase totalmente brancos, olhos azuis, bigodinho ralo meio tirado a claro/escuro, brancão todo, baixa estatura, mas diziam à boca pequena, um gigante nas atitudes.

Descendia dos Pereira de São Miguel de Taipu, da linhagem de Francisco Antonio Pereira, irmão gêmeo de Antonio Francisco Pereira, o Barão do Bujarí, estabelecido em Goiana, PE. Esse era o meu "Vovô Ié-Ié!” Assim era que, por insondáveis desígnios eu, um pingo de gente, o chamava carinhosamente. Convivíamos afetuosamente, numa camaradagem própria de quem se entende acima de qualquer coisa. Uma piscada de olhos, um assovio contavam muito. Dizem, neto é filho com açúcar. Confesso que durante essa fase ele foi a minha referência paterna.

Era seu costume me colocar escanchado na sela junto com ele e sair troteando pela cidade para me exibir, orgulhoso. Eu era o seu primeiro e único neto homem. Havia uma neta que ele não conhecia morando na cidade de Campos, RJ. Encontrando seus amigos e correligionários políticos, parava o animal embaixo de um pé de fícus, outros amigos se achegavam trazendo cadeiras, e aí então tocavam uma prosa infindável. Eu amuado, não queria ficar ali parado. Queria andar mais. Quando eu reclamava para voltarmos ao passeio ele, invariavelmente, usava de um hábil e engenhoso artifício...

- Vamos parar um pouco! O cavalo deve estar cansado! E diante do meu olhar incrédulo continuava, matreiro...

- Pergunte a ele, vá!... Eu inocente, perguntava...

- Você está cansado, cavalo?

O Major Ambrósio astuciosamente puxava de leve as rédeas, fazendo o animal inclinar a cabeça para frente e para trás como que respondendo afirmativamente à minha ingênua indagação. Eu de besta, acreditava piamente. Longe de mim pensar que meu avô, tão dedicado, tão carinhoso comigo, que fazia carrinhos de madeira para mim, iria me enganar de maneira tão vil. Lembro que certa vez me fez uma pequena réplica de um carro de boi, com cana de açúcar dentro e tudo, em seguida encharcou o eixo e as rodas com uma mistura de querosene e carvão para dar aquele chiado característico.

O tal cavalo, um alazão com uma estrela branca na testa, quando descansado, na volta para o sobrado, cumpria um estranho ritual feito cavalo de padre, que pára na porta dos paroquianos. Sozinho, rédeas soltas, ia estancando em portas estranhíssimas, de onde surgiam umas mulheres mais estranhas ainda. Belas algumas, outras nem tanto. Não era mesmo, flor que se cheirasse, o meu avô Major Ambrósio. Certa noite, à mesa do jantar em comemoração ao noivado dos meus pais ele saiu-se com essa:

- "Pois é, Seu Américo, (meu pai) um homem tem que ter a matriz em casa e uma filial lá fora para que tudo dê certo no casamento”. Levou evidentemente, uma bela descompostura de Dona Maria Eugênia das Mercês Pereira (Dona Dondinha), minha avó.

Sobre o temperamento digamos, volúvel do Major Ambrósio Pereira, atrevo-me a comentar sobre um assunto tabu na família. Tinha-se como verdade as suas costumeiras aventuras amorosas. Nunca, entretanto que eu saiba, alguém chegou a fazer uma única menção, por mínima que fosse. Havia como que, um acordo tácito. Refiro-me à uma das filhas de uma amiga da família que tinha (e tem) todas as características das outras filhas do Major, minhas tias. Por compreensíveis mistérios todas se pareciam entre si, e cuidavam umas das outras com o maior carinho. Alguns anos atrás essa dita pessoa se submeteu a uma cirurgia delicada e foi o maior alvoroço, o maior cuidado. Nunca tirei nada à limpo, até porque a mim não competia, mas bem que eu gostaria de saber desse lado da história. Já que não mencionei o nome do santo, é de se supor que o tabu permanece.

Hoje, inexplicavelmente após sessenta e quatro anos de seu passamento, sinto uma imensa saudade do meu avô. Gostaria que, quando lá em cima eu chegar, o porteiro me informasse:

- "A marcenaria do Major Ambrósio é bem ali, na Alameda das Flores, nº 48." Então eu iria até lá e ele me abriria a porta dizendo, bonachão:

"Lá vem você bulir aqui!"

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5 comentários:

Unknown disse...

É muito bom quando temos essas lembranças da infância e especialmente com pessoas queridas, as vezes também me pego em sessão nostalgia e me lembro na minha época de criança onde tudo era mais facil... :D

Mas a parte do cavalo foi ótima!!!

Anônimo disse...

Hugão: transcreví (com vossa indulgência), o texto sobre vovô Ambrósio, no meu site Sim Paraíba. Parabéns pelo texto, velho. Arretado! Guy
PS. Que é feito do Barão?

Taciana disse...

Hugo, lembranças deliciosas. O final me deixou emocionada. Adorei. Como já disseram aí, arretado! Um abraço. Taciana Valença.

Marcia Barcellos disse...

Boa Noite, Hugo !

Gostei demais do txto que vc escreveu sobre vovô Ambrósio. Muita emoção sentir ao ler tantos fatos interessantes. A maneira como vc terminou seu relato é emoção pura... Parabéns!!!!!!

Abraços em todos. Márcia

Marcia Barcellos disse...

Olá primo Hugo ! Obrigada por enviar um texto tão maravilhoso, encantador como o que vc escreveu sobre vovô Ambrósio ! Que coisa mais linda ! Quanta poesia e emoção vc nos passa com estes escritos....é de emocionar profundamente...É lindo como vc discorre sobre os detalhes das várias situações......Maravilha !!!!!Continue nos brindando com seus escritos tão cheios de amor pela família..
Mamãe já havia comentado comigo sobre este texto, que ao ler agora, me veio a recordação do que ela havia me dito anteriormente. Adorei e estarei no aguardo de outros........Abraços Márcia