quarta-feira, novembro 21, 2007

LIBERDADE CONDICIONAL


Luiz Gonzaga Lopes


Hoje, acabei de completar dois anos e quatro meses de reclusão de uma condenação de quase seis anos que me foi imposta pelo motivo de sempre: furto. Aliás, furto e roubo. Mas, quero me emendar. Quando ganhar minha liberdade, passarei a agir com dignidade, manterei o firme propósito de ser gente.

O Delegado mandou-me chamar, disse que minha pena entrara no regime de progressão, o tempo que ainda faltava para o restante dela, eu cumpriria em liberdade. Liberdade condicional, explicou. Na mesma hora, fez uma série de advertências a mim, orientou-me sobre como deveria conduzir minha vida lá fora, falou manso como se fosse um pai.

Já na porta da rua, coberto com a mesma roupa surrada usada no dia em que fui preso, respirei fundo o ar da liberdade. Olhei para o céu como a buscar inspiração divina. Olhei para o lado direito da rua, depois para o lado esquerdo e, sem que houvesse sido ungido por qualquer toque celestial, decidi partir. Saí sem destino, caminhava ao sabor do vento. Aqui, acolá, parava para cascavilhar os depósitos de lixo existentes nas calçadas. Esperava encontrar neles algo que servisse para qualquer coisa, algo que me ajudasse a começar novo meio de vida.

Junto a uma das lixeiras, apanhei uma caixa de papelão, sem tampa. Logo calculei, poderia ser-me útil para juntar dentro dela bagulhos que eu pudesse transformar em dinheiro.

Continuei a caminhada, nada escapava de meus olhos atentos. Examinava papéis trazidos pelo vento, garrafas plásticas vazias, latinhas de refrigerantes, pedaços de madeira, sapatos velhos, um pé de sandália imprestável, tudo, enfim. De repente, ao passar em frente a uma casa de lindo jardim, cuja folhagem era bastante espessa, ouvi um breve cacarejar de galinha. Parei, soltei a caixa no chão, olhei para um lado e para o outro, cuidei de matar a curiosidade. Com as duas mãos separei a folhagem, abri o caminho para a minha visão. No mesmo instante, esqueci os conselhos do delegado, aquilo que eu estava vendo era presente de Deus, e presente de Deus ninguém recusa.

A galinha quietinha estava, quietinha continuou, não fez caso do estranho que era eu. De um bote, segurei-a firme, tive o cuidado de apertar-lhe o bico para evitar qualquer alvoroço denunciador. Corri a vista em redor, e logo descobri um providencial pedaço de embira. Amarrei os pés da presa, acomodei-a na caixa de papelão. Vi, também, que, no lugar de onde eu a tirara, havia uma porção de ovos. Não perdi tempo. Apanhei todos, coloquei-os na caixa. À medida que os recolhia, contava-os: treze, meu número da sorte. Chamou-me a atenção a temperatura deles, logo conclui era o calor da galinha, ela estava chocando, breve tiraria uma ninhada de pintos.

Rápido como quem rouba, coloquei a caixa com a preciosa carga na cabeça, parti apressado, teria que me afastar daquelas imediações o mais breve possível. Não daria chance a que ninguém, da rua ou da casa, me flagrasse na perigosa operação. Dobrei uma esquina, segui em frente, dobrei outra esquina, segui em frente, nova esquina, novamente em frente, até sentir-me seguro para pensar em negociar as mercadorias.

O nervosismo, entretanto, quase me fez botar tudo a perder. Por sorte, no momento do maior perigo ninguém me reconheceu. É que quando preparava a garganta para gritar anunciando galinha e ovos para vender, avistei uma viatura da polícia em minha direção. A proximidade do carro policial levou-me a sofrer violenta topada seguida de espalhafatosa queda, culminando por precipitar na calçada a caixa com galinha e ovos.

Felizmente, os policiais nada viram, sobretudo porque o acidente aconteceu ao lado de um automóvel estacionado junto ao meio-fio. O carro serviu de anteparo, protegeu-me da visão dos patrulheiros.

A grande surpresa para mim, e deleitosa admiração dos transeuntes, é que os ovos estavam fecundados e já no tempo exato de liberar os pintinhos. Quanta lindeza!

Não faltou quem mostrasse curiosa simpatia ao ver coisa tão maravilhosa, os pintinhos saindo dos ovos, um a um, e já famintos e piando. Entre as pessoas admiradas, dois guris que estavam no carro mostraram impacientes desejos de ficar com os pintinhos. Maravilhados, azucrinaram o juízo da mãe deles para comprar a galinha e a bela ninhada.

A mãe dos meninos era a proprietária do carro. Tratava-se de mãezona das mais carinhosas, logo acedeu aos apelos das duas crianças. Daí pra frente tudo aconteceu muito rápido, a transação foi imediata, igualzinha à minha ligeireza em juntar na caixa a galinha e os pintos, e colocar tudo dentro do carro. No seu instinto materno, a galinha logo amparou os filhotinhos, acomodou todos sob suas asas. Um encanto.

Não houve discussão em torno do valor a ser pago, o preço falado pela mulher foi imediatamente aceito por mim, o negócio concluído sem pechinchas. A mulher passou às minhas mãos diversas notas, que nem conferi, enfiei o dinheiro no bolso e parti acelerado, cuidei logo de me perder no meio do povo. O coração batucava, era todo excitação.

Quanto à compradora, estava satisfeita pela alegria proporcionada aos filhos. Estava feliz, também, pela perspectiva da nova alegria que a esperava quando chegasse em casa. Afirmo isso com toda a certeza, porque ouvi bem o que ela falou para os meninos. Disse que ia juntar a galinha e os pintinhos à outra galinha — a que deixara chocando entre as folhagens do jardim. De hoje para amanhã, a festa vai ser grande lá em casa, ela disse. Vai nascer pinto à vontade.

Muito distante dali, eu, já me sentindo seguro, parei para contar o dinheiro.

Meu coração continuava no batuque acelerado, e meu pensamento voltado para a mulher.

Não sei qual vai ser a cara dela quando constatar que a galinha escondida nas folhagens havia sumido. E os ovos, também.

2 comentários:

Anônimo disse...

Hugo, dizer que sempre me surpreende a qualidade dos artigos publicados no seu blog, é chover no molhado. O meu infelizmente ainda não está pronto e acredito que não será tão bem organizado. É assim mesmo, cada um faz como sabe. É pena que eu saiba tão pouco. Logo mandarei um dos meus contos e possivelmente uma foto. Posso?

Hugo Caldas disse...

Caro anônimo
Obrigado pelas lantejoulas. Pode mandar sua claboração com pequena biografia, mais retrato para:
hucaldas@gmail.com
Pena você continuar no anonimato.
Abraço. Hugo