terça-feira, dezembro 12, 2006

RECUERDO 14 - VIDA DE PROFESSOR - Receitas & Despesas


HUGO CALDAS

E assim se passaram 40 anos...

Entrando e saindo de uma sala de aula para outra. Presenciando, convivendo, participando de tudo ou quase tudo. Namoros, casamentos - até fui padrinho de uma das minhas alunas. Outra, lembro bem, iniciou trabalho de parto na sala. Um belo dia, inesperadamente, mais outra aluna me pespega tremenda de uma mordida no braço, insatisfeita por haver sido admoestada.

Quanta ingenuidade se comparada às aberrações acontecidas hoje em dia. Ví nas folhas que lá em São Paulo, aluna aliou-se à sua mãe (dela, evidentemente) e juntas aplicaram um competente corretivo na professora de Geografia pela ousadia de ter colocado uma nota baixa na diligente discípula. Conheço, aqui mesmo, no Recife, vetustas instituições muito respeitadas por sinal, onde foi instaurado um regime do terror de fazer inveja a qualquer Pinochet da vida.

Lá disparam aos quatro ventos para tudo quanto é professor ouvir... "vocês são despesa os alunos são receita". Belo lema, não? E em nome deste slogan você professor, tem mais é que engolir caladinho qualquer coisa sob pena de ir pro olho da rua. Usa-se, via de regra, o imoral expediente das visitas inesperadas para saber se os professores estão efetivamente na sala de aula... dando aulas. Na UFPE, por exemplo, foram instaladas câmeras de TV à pretexto da segurança... Outra escola em São Paulo instalou também à pretexto da segurança, câmeras... nos banheiros...

Em um desses programas de govêrno, onde cheguei a atuar com as classes menos favorecidas, residentes na periferia da cidade, um energúmeno saiu-se com essa:

"Aí, pessoal, o professor aqui tá querendo aparecer nas folhas..."

Tudo porque fora admoestado pois estava perturbando o bom andamento das aulas. Acontece que o professor em questão era meu filho, e eu sabedor portanto, do que significava aquela ameaça mandei imediatamente cortá-lo do programa. Preferí vê-lo sem emprego em casa, porém vivo.

Tem mais, hoje em dia você além de não poder repreender ninguém, e se porventura estiver com idéias de fazê-lo repetir de ano, mesmo por absoluta incapacidade do capadócio, esqueça. Professora filha de um amigo, passou pelas forcas caudinas quando da entrega das notas de fim de estágio, de um determinado programa amparado também por um desses convênios do governo, envolvendo verba de institutos, sindicatos et caterva. Uma noite, recebeu a visita inesperada de uma comissão de bairro, cujo chefão dizia sem meias palavras:

"Nós vamos ficar muito chateados se alguém da comunidade for reprovado."

Penosamente, ela descobriu que ninguém poderia ser reprovado. "Você tem mais é que apresentar resultados sob pena de o FAT não mais repassar a verba". Que fez ela então? Teve que modificar todas as notas para 9,5 para todo mundo e pronto, estava salva a pátria e o emprego, quiçá a vida.

Não faz muito tempo, percebi que certa aluna de uns 17 anos, se muito, usava o curso que fazia como ... álibi; saía para a farra tão logo aparecia um coroa dirigindo um importado, que a tirava da sala e saiam juntos em plena tarde... Mas você também não podia colocar falta na caderneta. Nada disso, diz a minha coordenadora. Caderneta de frequência é para apresentar movimento de presença maciça. Para impressionar. Na minha terra isso é qualificado como falsidade ideológica portanto, crime.

"Não estou gostando nada da sua aula...muito monótona," disse-me certo dia um sujeitinho usando os farrapos de uma bermuda meia-coronha, tênis maior do que um tanque de guerra, na camiseta "Nova Yorque University"... Não é danado? O que aquele espiroqueta entendia de didática...? Quarenta anos de árduo trabalho, pra um fulano qualquer...ah, mas eu não sucumbi. Disse-lhe que se ele não conseguisse vaga em outra classe, onde um professor moderninho vivia gastando tempo precioso de aula com exercícos de dinâmica de grupo, ele podia voltar para minha sala. Trazendo evidentemente uma rede a fim de aproveitar o tempo monótono e ficar de papo pro ar.

Nos meus tempos de empresário, ser proprietário de uma pequena rede de seis escolas, não era o que se convecionava chamar de fácil tarefa. Eu dava também as minhas incertas e chegava mais ou menos de surpresa, mas nunca entrei em qualquer sala de aula sem permissão do professor titular da sala ... na minha concepção o professor é o senhor da situação na SUA sala. É como capitão de navio...prende, casa, descasa e manda por a ferros...

Mas não colecionei apenas dissabores. Tive também experiências muito ricas, até mesmo nestes programas do governo. Tenho pra mim que em algumas cidades do interior eu bem que poderia me candidatar a no mínimo vereador, tal a popularidade conseguida à custa de muito esforço e dedicação. Ver a satisfação estampada no rosto das pessoas que você acompanhou durante o curso... todo ouro do mundo não paga. Ganhar de presente galinhas, patos, verduras, frutas, artesanato... é para ficar para sempre na sua mente e no seu coração....

Todo o problema se resume na educação de base ... já disse muito bem o candidato em quem votei - Cristovam Buarque. Ainda levará um bom tempo e até lá... talvez nós possamos dizer como o adesivo que usavamos em tempos não tão distantes mas bastante sofridos:

Hei de Vencer, Mesmo Sendo Professor!

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4 comentários:

Anônimo disse...

Professor
sobre esse assunto tenho fatos recentes que me fizeram desistir,pelo menos por enquanto, de sala de aulas. Ha poucos meses passei a ministrar disciplina de Deontologia e Biossegurança, hoje rebatizada de Bioética (título mais restritivo embora mas modernoso), em escola de ensino superior. A princípio imaginei que os alunos se comportavam com muita liberdade por serem mais jovens. Aos poucos me deparei com a venda dentro da sala de aula de fatias de tortas, docinhos etc. Outras vezes alunos chegando com a aula ja iniciada, passavam pelos colegas conversando alto e sem cumprimentar ou pedir desculpas pela interrupção. Atropelos como chamadas pelo celular eram comuns e para culminar a turma cativa do fundo da sala resolveu formar um circulo com as cadeiras de costas para "estudarem" outra disciplina mais importante. Bom aí não me restou outra alternativa como pedir o chapéu obviamente depois de concluir o semestre mais longo de minha vida. Soube depois que estes alunos do primeiro e segundo período que jamais deveriam ter Bioética tão cedo, foram cobaias, arrebanhados na periferia da capital (municípios do interior)por uma van com alto falante prometendo vestibular como entrevista com agendamento além descontos de transporte e até 50% nas anuidades. Concluindo eram parte de estratergia de comercio,para atrair a classe média, precisava encher turmas com meninos semi alfabetizados. Hoje eu teria agido de outra forma mas a faculdade esta aí formando advogados, biomedicos, enfermeiros etc e tal todos sem a base da pirâmide que pode desabar amahã.
Desculpe o texto capenga e muito longo, até breve

Hugo Caldas disse...

Caro Desconhecido/a
Gostei muito do texto que você diz capenga e longo. Digo que é mais do que verdadeiro. É o retrato escarnado e esculpido da nossa atual "educação" assim com minúscula mesmo. Pena é que vosmicê não assinou. Daria mais força às sua declarações. Espero reve-lo/a qualquer dia. Se quizer pode fazer outra postagem dessa vez assinada.
Hugo Caldas

Anônimo disse...

Hoje o professor não passa de um mero facilitador. Não por culpa deles é claro, quem sabe do neo-liberalismo, do capitalismo moderno. Ou mesmo da cabeça tacanha do empresário-educador brasileiro. Politicagem e tudo o mais. Como você mesmo disse: "professor é despesa, aluno é receita". O que importa é que, seguindo essa premissa, qualquer pessoa pode abrir uma escola como o seu "negócio", pessoas sem qualificação nenhuma, sem conhecimento nenhum no ramo do ensino. Empresas dando lucros maravilhosos, mas esquecendo do principal que é educar. Aliás, que incoveniência é educar sem lucrar!

Realmente estamos formando profissionais maravilhosos para um futuro bem próximo.

Marcia Barcellos disse...

Que ótimo o texto ! Como disse você: "Não é danado?"
Este assunto é atualíssimo. Vivemos esta e demais situações todos os dias...
Estou querendo sair de sala para desempenhar atividades na secretaria, biblioteca ou na realização de projetos até completar idade para aposentar. E aí, vou estudar música, minha grande paixão !!! Quero aprender tocar teclado que herdei da minha querida avó Céu. E também entrar para um Coral.
Mas voltando ao assunto inicial, O que vc aborda no texto é tudo que acontece, diariamente.A escola está muito diferente, o professor cada vez mais acuado, amargurado. Os mais antigos são considerados "ultrapassados". Não está nada fácil enfrentar sala de aula. A "MODERNIDADE" está acabando com a condição mínima para trabalhar em sala: EDUCAÇÃO E RESPEITO.
Conteúdo???? Nada de cobrar isto dos alunos. Eles irão aprender um dia... Dizem alguns.
Tenho lembranças queridas das escolas por onde passei. Vivo mais destas lembranças, atualmente não está muito agradável lecionar. Abraços. Márcia